Em celebração do 80º aniversário de Julie
Andrews, aqui estão os meus pensamentos sobre o seu primeiro filme, que em si
contém, na minha opinião, o seu mais esplendoroso trabalho como atriz.
Não gosto muito de
usar a palavra “mágico” para descrever cinema, mas, tenho de preventivamente
avisar, essa palavra será profusa e francamente inescapável no texto que se
segue, não fosse o filme sobre o qual me proponho a falar Mary Poppins. Um filme onde o cinismo e ironia, tão populares no
pensamento crítico atual, não têm qualquer lugar e que, tal como a personagem
que lhe dá nome, é praticamente perfeito em todos os aspetos.
O filme foi dos
últimos projetos cinematográficos a dispor do completo empenho e investimento
de Walt Disney, tendo consumido anos de trabalho e tendo sido considerado por
Walt Disney como o seu filme favorito. Grande parte do trabalho de Disney
adveio da resistência de P.L. Travers, a autora dos livros que originaram a
personagem de Mary Poppins (Julie Andrews), em deixar que Disney adaptasse o
seu trabalho. A autora, como se pode verificar no muito atenuado e açucarado
filme Saving Mr. Banks, tinha uma
colossal aversão a deixar a sua obra ser tornada num musical adocicado e
simplista. No final, a autora, apesar de ter permitido o uso do seu trabalho,
detestou o filme, impondo terríveis limites aos seguintes usos do seu trabalho,
mas, há que dizer, por muito prestígio e respeito literário que Travers possa
em si deter, o seu gosto e sentido crítico cinematográfico deixam muito a
desejar.
O texto adaptado dos
textos de Travers é um guião de curiosa estrutura, com uma estranheza que
desafia o classicismo conservador que associaríamos com o estúdio. Mais que uma
estruturação narrativa usual com um desenvolvimento de ação, consequência e
personagem, o filme é mais um encadeamento meio caótico de acontecimentos, sem
grande consequência lógica ou racionalidade. Momentos de magia e fantasia que
se colecionam à volta de uma história de redenção familiar, em que o
desenvolvimento da unidade familiar, o inequívoco protagonista coletivo do
projeto, é mais incidental que consequente. No caso de Mr. Banks (David
Tomlison), cuja epifania e redenção são o píncaro emocional do filme, isto é particularmente
notório, sendo que, de uma personagem secundária e caricaturada, emerge, quase
que por simples insistência do tom encantador do filme, uma figura paternal
central a toda a salvação sentimental da família Banks. O filme tem um texto
que se revela num caos dissimuladamente preciso e elegante, criando uma
transformação familiar a partir da introdução da figura de Poppins, como que um
mecanismo narrativo sob forma humana, que vai, por sua vez, introduzindo uma
coleção de magia cinemática e sonhadoras sequências em que os estúdios Disney
disponibilizavam toda a espetacularidade dos efeitos visuais possíveis nos anos
60 em Hollywood. O texto é brilhantemente estranho em termos de estrutura e, no
entanto, completamente genial e fenomenalmente editado de tal modo que o filme
voa pelos nossos olhos apesar da sua extensa duração, sendo uma genialidade
bastante escondida pela simples inocência que encobre toda a experiência do
filme.
O filme, passado na
Londres Eduardina, centra-se, portanto, à volta da família Banks, cujo pai é um
banqueiro que investe toda a sua atenção e tempo no seu sucesso profissional,
que no início do filme se encontra em crise. A sua última ama foi afugentada
pelas duas crianças, Michael (Matthew Garber) e Jane (Karen Dotrice), e,
aquando da procura por uma substituta, aparece a sobrenatural figura de Mary
Poppins, que entra voando, como que uma força da Natureza trazida pelo vento. Ao
longo do filme observamos a ama-seca de outro mundo conjurar uma série de
acontecimentos maravilhosos e extraordinários, sendo que somos ocasionalmente
acompanhados, nesta viagem de magia e entretenimento, por Bert (Dick Van Dyke),
uma criatura tão estranha como Poppins, mas talvez não tão parecida com uma
imparável força da Natureza. Um episódio específico, no banco em que o pai trabalha,
acaba por despoletar a epifania patriarcal que tem por consequência a resolução
do conflito familiar e a subsequente partida de Poppins com a mudança do vento.
Há um mistério maravilhoso em relação ao filme em si e à figura de Poppins,
sendo que nada é explicado, deixando tudo simples, mágico, inexplicável em todo
o seu sublime absurdo. Poppins é uma metáfora e um mecanismo narrativo, mas,
mesmo assim, é impossível arrancar o olhar da sua figura, da sua expressividade
e pose e tudo isso se deve maioritariamente ao indubitavelmente miraculoso e
inigualável trabalho de Julie Andrews, que merecidamente arrecadou o Óscar de
Melhor Atriz por este, que foi o seu primeiro trabalho no cinema.
Como já disse, Mary é
mais mecanismo do enredo que ser humano, mas na sua postura e pose de ama-seca
sobrenatural e na sua rispidez curiosa, existe uma humanidade estranhamente
acessível. O seu impacto é inegável, sendo que é difícil duvidar do seu poder
quando somos confrontados com os seus números musicais, a parafernália de
fantasias que conjura, com a ajuda dos estúdios Disney, neste desfile de
ensandecido divertimento, mas especialmente quando somos expostos ao charme de
Andrews e suas dissimuladas complexidades. Na sua pose há uma rigidez pontuada
pelo ocasional momento de orgulho e vaidade, uma caricatura de eficácia
britânica tornada humana, uma açucarada disposição mesclada de uma acidez
pontual que impede a sua presença de se tornar insuportavelmente inconsequente
e forçada. Poppins é incrivelmente removida da nossa realidade mas nunca nos é
distante, há um paradoxo interessante na sua presença, tão distantemente
artificial e fria como humana e fácil de simpatizar. O mistério que a rodeia é
intransponível, mas, sem qualquer esforço visível por parte da atriz, é-nos
constantemente sugerida uma complexidade subtil em Poppins. Com mínimas
expressões, e apenas algumas oportunidades de se expressar vivamente, Andrews
consegue criar um dos mais singulares retratos na história do cinema de
entretenimento, sendo que os seus finais momentos, quando olha pela última vez
a família que tão ajudou, são de uma avassaladora simplicidade apesar do seu
melancólico impacto. Por detrás do seu sorriso e vitalidade há sempre a sombra
de uma tristeza, a sombra de uma humanidade, mas, devido à leveza absoluta que
consegue modular, Andrews é muitas vezes menosprezada, mas, a aparente falta de
esforço ou seriedade descarada, não são uma consequência de uma menos
espetacular criação enquanto atriz. Ela é a chave do sucesso do filme e um dos
mais triunfantes trabalhos de uma atriz em estreia cinemática alguma vez
capturados por uma câmara.
Mas o que seria Andrews, e o filme em geral,
sem a contribuição musical de Richard e Robert Sherman, cujas canções tornam Mary Poppins num musical originalmente
escrito para cinema, tão brilhante que encontrar algum filme comparável se
torna um desafio considerável. Se formos simples e concisos, mágico seria uma
boa descrição para este repertório musical, com canções tão icónicas como “Supercalifragilisticexpialidocious”
ou “Chim Chim Cher-ee”. Se tivesse de escolher favoritos provavelmente
apontaria “Feed the Birds” pela sua simples emoção, magnificamente expressa por
Andrews, mas, se considerarmos o número como apresentado no ecrã, “Step in
Time” é um claro píncaro na sua ebuliente e fervorosa energia, fazendo o filme
explodir numa supernova de euforia cinematográfica.
Mas o que seriam
números como “Step in Time”, ou toda a sequência passada dentro de uma paisagem
de filme de animação, sem os efeitos especiais que tanto caracterizam o filme. Mary Poppins é tanto um musical como é
um desfile de feitos tecnológicos no que diz respeito à criação de fantasia em
cinema. As partes que mesclam animação com imagens de atores em estúdio são
charmosas na sua simplicidade e leve rudimentaridade, mas são sequências como a
abertura do filme por entre as nuvens, ou mesmo uma escada criada por fumo
negro que realmente mostram as possibilidades do filme, criando imagens de uma
beleza simples e fácil de consumir. Uma beleza quase infantil na sua
simplicidade, mas que é de uma espetacularidade sem igual.
O design do filme em
geral parece seguir as mesmas regras estilísticas das suas sequências de
animação, vibrando em cores fortes e uma artificialidade palpável que nada retira
do encanto do filme, muito pelo contrário. A Londres que o filme expõe é uma de
puro artifício, mais uma ilustração tridimensional de um livro infantil que uma
visão naturalista da cidade, apesar de um detalhe e opulência que são
impossíveis de ignorar. O mundo do filme é distante do nosso, sendo obviamente
fictício, obviamente uma confeção de magia cinemática, onde qualquer correlação
com uma pressuposta realidade é encoberta por toda a sua exuberância
estilística. A imagem inicial que abre o filme, de uma Londres pintada em
formosa imagética de época, imensamente falsa mas bela, com a protagonista
nominal sentada numa nuvem, observando-se a si mesma e o mundo que se encontra
abaixo do seu repouso, é perfeitamente característico do filme. Observamos um mundo
que pertence ao mesmo tipo de irracionalidade mágica desta ama-seca voadora, o
que vemos será inocente, puramente sincero e imensamente encantador e aqui o
filme como que nos dá um choque inicial das suas intenções, antes de nos
afundarmos nesse mundo londrino.
Mas não é só música,
efeitos especiais, design elaborado e o génio de Andrews que convergem para a
triunfante magia deste filme, sendo que o elenco em geral é imensamente
prodigioso, e completamente apto a participar nos jogos de insanidade jovial em
que o filme se emaranha. Os atores infantis, por muito rígidos que possam
parecer, têm em si uma inocência transparente em que o seu nervosismo em termos
de postura e diálogo apenas salienta, acrescentando ao encanto do filme.
Glynnis Johns consegue tornar uma caricatura em algo infindavelmente charmoso e
palpavelmente afetuoso. Hermione Badley, Elsa Lancaster e Jane Darwell são
atrizes de imenso prestígio e que na sua presença têm um peso e impacto que
tornam, mesmos os seus mais fugazes momentos em pequenas gemas espalhadas pelo
filme. Van Dycke, com o seu horrendo sotaque, é um génio de comédia física,
celebrando a sua euforia infeciosa com toda a energia possível, e conferindo um
misticismo enigmático ao filme, que mesmo Poppins, sozinha não consegue
completamente transmitir. Mas é Tomlison, no papel de Mr. Banks que quase rouba
o filme à luminosa Andrews. Os finais momentos de evolução da sua personagem
nunca resultariam com um menor ator, e é a sua surpreendente sinceridade
sentimental que torna um final que poderia ser forçado e irremediavelmente
convoluto, num momento de lacrimosa alegria. Mesmo nos momentos iniciais do
filme, em que é basicamente uma caricatura de uma figura patriarcal severa, há
uma sugestão de afeto e ternura que nunca deixam a sua presença cair na acidez
que o tornariam impossível de simpatizar, sendo que a sua modulação ao longo do
filme, sem sair do registo leve e estilizado do filme, é de uma precisão cómica
e emotiva impressionante.
E é precisamente em
Mr. Banks, sua humilhação no banco e seu despedimento, que os mais negros
momentos do filme se revelam, mas, eu diria, que ao longo do filme há uma
constante sensação que o mundo adulto para o qual as inocentes crianças se
dirigem é algo em desequilíbrio inevitável. Pelas sufragettes e pelos discursos
iniciais do pai, temos uma visão de um mundo imperialista de fachadas colocadas
sobre um turbilhão social, do banco temos imagens de selvático capitalismo
tornado grotesco e repugnante, da senhora que alimenta os pássaros temos uma
visão de pobreza. Não estou a dizer que isto sejam imagens ou temas complexos
na sua exposição, mas há sempre algo de triste no filme, algo que desafia os
seus mais alegres momentos. Algo que é constante é o sentido de que tudo é, de
certo modo, passageiro e efémero. Tal como a infância das crianças, também a
presença de Poppins é temporária, com o mudar do vento e o avanço do tempo toda
esta magia inocente se torna em algo do passado, algo meio esquecido como uma
pintura em giz que desaparece com a chuva. A melancolia que parece
constantemente assombrar as mais exuberantes fantasias do filme é
particularmente impossível de ignorar no final do filme, mas mesmo assim
olhamos isto com um sorriso, e em frente seguimos. Há uma maturidade estranha
que se revela por entre a inocência e sinceridade ingénua do filme, como que se
o próprio filme admitisse o seu derradeiro artifício, e oferece-se o seu
espetáculo absoluto como um passageiro divertimento. De certo modo, este filme
consegue ser das mais transportadores e triunfais obras de cinema dito de
entretenimento, admitindo a melancolia da vida e oferecendo um artifício doce e
belo como momentâneo prazer.
E esse prazer devém
muito da leveza da obra, que é leve apesar dessa referida complexidade melancólica.
Com mais de duas horas, o filme passa num abrir e fechar de olhos, sendo que a
montagem é de uma precisão superlativa, navegando o caos errático da estrutura
com um jogo de ritmos fenomenais. Quando o filme pausa na sua euforia, fá-lo em
prol de um tipo de espetáculo mais calmo, os seus ritmos perfeitamente
modulados de modo a que não hajam momentos mortos e a que o pesar das suas
passagens dramáticas seja sentido sem engolir por completo o filme.
Mas o filme não é só
perfeição sem igual, pelo que a realização de Robert Stevenson é imensamente
desinspirada quando pensamos nas possibilidades que um material tão delicioso
oferece. Há uma competência simples e modesta na sua abordagem que desaponta em
igual medida ao modo como não permite o filme cair em devaneios estilísticos
alienantes. No filme, encontra-se um equilíbrio quase perversamente perfeito
entre o conforto de uma normalidade clássica e um jogo de criatividade
enlouquecida, que tornam o filme numa experiência unicamente reconfortante.
Nada desafia a audiência, mas nada a insulta na sua simplicidade. Eu diria
mesmo que a catástrofe que é o sotaque cockney
de Dick van Dyke contribui para este charme e equilíbrio deleitoso que o filme
consegue manter ao longo de toda a sua duração. Num filme menos extraordinário,
esta complacência estilística seria a sua perdição, aqui é apenas algo que
impede o filme de se tornar algo, talvez mais interessante, mas infinitamente
menos charmoso e deleitosamente simples.
Mary
Poppins é um dos suprassumos filmes de entretenimento alguma vez criados
por Hollywood. O escapismo cinematográfico tornado triunfo de inocência, onde a
magia é omnipresente desde o design aos efeitos visuais, e onde a música é de
uma magnificência incontornável e deliciosamente emotiva. O filme é avassalador
na sua sinceridade e, tal como ocorre com o outro inescapável musical que
Andrews protagonizou nos anos 60, é por isso muitas vezes menosprezado apesar
de ser, pelo menos para mim, um dos melhores filmes americanos de toda a década
e um dos melhores musicais que Hollywood alguma vez produziu, assim como o
melhor filme, que não seja de animação, alguma vez a emergir da produção dos
estúdios Disney. Um milagre, um triunfo, tão impossível de descrever em toda a
sua maravilha como será impossível de explicar o significado da palavra “Supercalifragilisticexpialidocious”.
É simplesmente mágico, como cinema, como experiência nostálgica como
entretenimento, como sonho tornado filme!
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