quinta-feira, 1 de outubro de 2015

MARY POPPINS (1964) de Robert Stevenson

 Em celebração do 80º aniversário de Julie Andrews, aqui estão os meus pensamentos sobre o seu primeiro filme, que em si contém, na minha opinião, o seu mais esplendoroso trabalho como atriz.


 Não gosto muito de usar a palavra “mágico” para descrever cinema, mas, tenho de preventivamente avisar, essa palavra será profusa e francamente inescapável no texto que se segue, não fosse o filme sobre o qual me proponho a falar Mary Poppins. Um filme onde o cinismo e ironia, tão populares no pensamento crítico atual, não têm qualquer lugar e que, tal como a personagem que lhe dá nome, é praticamente perfeito em todos os aspetos.

 O filme foi dos últimos projetos cinematográficos a dispor do completo empenho e investimento de Walt Disney, tendo consumido anos de trabalho e tendo sido considerado por Walt Disney como o seu filme favorito. Grande parte do trabalho de Disney adveio da resistência de P.L. Travers, a autora dos livros que originaram a personagem de Mary Poppins (Julie Andrews), em deixar que Disney adaptasse o seu trabalho. A autora, como se pode verificar no muito atenuado e açucarado filme Saving Mr. Banks, tinha uma colossal aversão a deixar a sua obra ser tornada num musical adocicado e simplista. No final, a autora, apesar de ter permitido o uso do seu trabalho, detestou o filme, impondo terríveis limites aos seguintes usos do seu trabalho, mas, há que dizer, por muito prestígio e respeito literário que Travers possa em si deter, o seu gosto e sentido crítico cinematográfico deixam muito a desejar.

 O texto adaptado dos textos de Travers é um guião de curiosa estrutura, com uma estranheza que desafia o classicismo conservador que associaríamos com o estúdio. Mais que uma estruturação narrativa usual com um desenvolvimento de ação, consequência e personagem, o filme é mais um encadeamento meio caótico de acontecimentos, sem grande consequência lógica ou racionalidade. Momentos de magia e fantasia que se colecionam à volta de uma história de redenção familiar, em que o desenvolvimento da unidade familiar, o inequívoco protagonista coletivo do projeto, é mais incidental que consequente. No caso de Mr. Banks (David Tomlison), cuja epifania e redenção são o píncaro emocional do filme, isto é particularmente notório, sendo que, de uma personagem secundária e caricaturada, emerge, quase que por simples insistência do tom encantador do filme, uma figura paternal central a toda a salvação sentimental da família Banks. O filme tem um texto que se revela num caos dissimuladamente preciso e elegante, criando uma transformação familiar a partir da introdução da figura de Poppins, como que um mecanismo narrativo sob forma humana, que vai, por sua vez, introduzindo uma coleção de magia cinemática e sonhadoras sequências em que os estúdios Disney disponibilizavam toda a espetacularidade dos efeitos visuais possíveis nos anos 60 em Hollywood. O texto é brilhantemente estranho em termos de estrutura e, no entanto, completamente genial e fenomenalmente editado de tal modo que o filme voa pelos nossos olhos apesar da sua extensa duração, sendo uma genialidade bastante escondida pela simples inocência que encobre toda a experiência do filme.

 O filme, passado na Londres Eduardina, centra-se, portanto, à volta da família Banks, cujo pai é um banqueiro que investe toda a sua atenção e tempo no seu sucesso profissional, que no início do filme se encontra em crise. A sua última ama foi afugentada pelas duas crianças, Michael (Matthew Garber) e Jane (Karen Dotrice), e, aquando da procura por uma substituta, aparece a sobrenatural figura de Mary Poppins, que entra voando, como que uma força da Natureza trazida pelo vento. Ao longo do filme observamos a ama-seca de outro mundo conjurar uma série de acontecimentos maravilhosos e extraordinários, sendo que somos ocasionalmente acompanhados, nesta viagem de magia e entretenimento, por Bert (Dick Van Dyke), uma criatura tão estranha como Poppins, mas talvez não tão parecida com uma imparável força da Natureza. Um episódio específico, no banco em que o pai trabalha, acaba por despoletar a epifania patriarcal que tem por consequência a resolução do conflito familiar e a subsequente partida de Poppins com a mudança do vento. Há um mistério maravilhoso em relação ao filme em si e à figura de Poppins, sendo que nada é explicado, deixando tudo simples, mágico, inexplicável em todo o seu sublime absurdo. Poppins é uma metáfora e um mecanismo narrativo, mas, mesmo assim, é impossível arrancar o olhar da sua figura, da sua expressividade e pose e tudo isso se deve maioritariamente ao indubitavelmente miraculoso e inigualável trabalho de Julie Andrews, que merecidamente arrecadou o Óscar de Melhor Atriz por este, que foi o seu primeiro trabalho no cinema.

 Como já disse, Mary é mais mecanismo do enredo que ser humano, mas na sua postura e pose de ama-seca sobrenatural e na sua rispidez curiosa, existe uma humanidade estranhamente acessível. O seu impacto é inegável, sendo que é difícil duvidar do seu poder quando somos confrontados com os seus números musicais, a parafernália de fantasias que conjura, com a ajuda dos estúdios Disney, neste desfile de ensandecido divertimento, mas especialmente quando somos expostos ao charme de Andrews e suas dissimuladas complexidades. Na sua pose há uma rigidez pontuada pelo ocasional momento de orgulho e vaidade, uma caricatura de eficácia britânica tornada humana, uma açucarada disposição mesclada de uma acidez pontual que impede a sua presença de se tornar insuportavelmente inconsequente e forçada. Poppins é incrivelmente removida da nossa realidade mas nunca nos é distante, há um paradoxo interessante na sua presença, tão distantemente artificial e fria como humana e fácil de simpatizar. O mistério que a rodeia é intransponível, mas, sem qualquer esforço visível por parte da atriz, é-nos constantemente sugerida uma complexidade subtil em Poppins. Com mínimas expressões, e apenas algumas oportunidades de se expressar vivamente, Andrews consegue criar um dos mais singulares retratos na história do cinema de entretenimento, sendo que os seus finais momentos, quando olha pela última vez a família que tão ajudou, são de uma avassaladora simplicidade apesar do seu melancólico impacto. Por detrás do seu sorriso e vitalidade há sempre a sombra de uma tristeza, a sombra de uma humanidade, mas, devido à leveza absoluta que consegue modular, Andrews é muitas vezes menosprezada, mas, a aparente falta de esforço ou seriedade descarada, não são uma consequência de uma menos espetacular criação enquanto atriz. Ela é a chave do sucesso do filme e um dos mais triunfantes trabalhos de uma atriz em estreia cinemática alguma vez capturados por uma câmara.

  Mas o que seria Andrews, e o filme em geral, sem a contribuição musical de Richard e Robert Sherman, cujas canções tornam Mary Poppins num musical originalmente escrito para cinema, tão brilhante que encontrar algum filme comparável se torna um desafio considerável. Se formos simples e concisos, mágico seria uma boa descrição para este repertório musical, com canções tão icónicas como “Supercalifragilisticexpialidocious” ou “Chim Chim Cher-ee”. Se tivesse de escolher favoritos provavelmente apontaria “Feed the Birds” pela sua simples emoção, magnificamente expressa por Andrews, mas, se considerarmos o número como apresentado no ecrã, “Step in Time” é um claro píncaro na sua ebuliente e fervorosa energia, fazendo o filme explodir numa supernova de euforia cinematográfica.

 Mas o que seriam números como “Step in Time”, ou toda a sequência passada dentro de uma paisagem de filme de animação, sem os efeitos especiais que tanto caracterizam o filme. Mary Poppins é tanto um musical como é um desfile de feitos tecnológicos no que diz respeito à criação de fantasia em cinema. As partes que mesclam animação com imagens de atores em estúdio são charmosas na sua simplicidade e leve rudimentaridade, mas são sequências como a abertura do filme por entre as nuvens, ou mesmo uma escada criada por fumo negro que realmente mostram as possibilidades do filme, criando imagens de uma beleza simples e fácil de consumir. Uma beleza quase infantil na sua simplicidade, mas que é de uma espetacularidade sem igual.

 O design do filme em geral parece seguir as mesmas regras estilísticas das suas sequências de animação, vibrando em cores fortes e uma artificialidade palpável que nada retira do encanto do filme, muito pelo contrário. A Londres que o filme expõe é uma de puro artifício, mais uma ilustração tridimensional de um livro infantil que uma visão naturalista da cidade, apesar de um detalhe e opulência que são impossíveis de ignorar. O mundo do filme é distante do nosso, sendo obviamente fictício, obviamente uma confeção de magia cinemática, onde qualquer correlação com uma pressuposta realidade é encoberta por toda a sua exuberância estilística. A imagem inicial que abre o filme, de uma Londres pintada em formosa imagética de época, imensamente falsa mas bela, com a protagonista nominal sentada numa nuvem, observando-se a si mesma e o mundo que se encontra abaixo do seu repouso, é perfeitamente característico do filme. Observamos um mundo que pertence ao mesmo tipo de irracionalidade mágica desta ama-seca voadora, o que vemos será inocente, puramente sincero e imensamente encantador e aqui o filme como que nos dá um choque inicial das suas intenções, antes de nos afundarmos nesse mundo londrino.

 Mas não é só música, efeitos especiais, design elaborado e o génio de Andrews que convergem para a triunfante magia deste filme, sendo que o elenco em geral é imensamente prodigioso, e completamente apto a participar nos jogos de insanidade jovial em que o filme se emaranha. Os atores infantis, por muito rígidos que possam parecer, têm em si uma inocência transparente em que o seu nervosismo em termos de postura e diálogo apenas salienta, acrescentando ao encanto do filme. Glynnis Johns consegue tornar uma caricatura em algo infindavelmente charmoso e palpavelmente afetuoso. Hermione Badley, Elsa Lancaster e Jane Darwell são atrizes de imenso prestígio e que na sua presença têm um peso e impacto que tornam, mesmos os seus mais fugazes momentos em pequenas gemas espalhadas pelo filme. Van Dycke, com o seu horrendo sotaque, é um génio de comédia física, celebrando a sua euforia infeciosa com toda a energia possível, e conferindo um misticismo enigmático ao filme, que mesmo Poppins, sozinha não consegue completamente transmitir. Mas é Tomlison, no papel de Mr. Banks que quase rouba o filme à luminosa Andrews. Os finais momentos de evolução da sua personagem nunca resultariam com um menor ator, e é a sua surpreendente sinceridade sentimental que torna um final que poderia ser forçado e irremediavelmente convoluto, num momento de lacrimosa alegria. Mesmo nos momentos iniciais do filme, em que é basicamente uma caricatura de uma figura patriarcal severa, há uma sugestão de afeto e ternura que nunca deixam a sua presença cair na acidez que o tornariam impossível de simpatizar, sendo que a sua modulação ao longo do filme, sem sair do registo leve e estilizado do filme, é de uma precisão cómica e emotiva impressionante.

 E é precisamente em Mr. Banks, sua humilhação no banco e seu despedimento, que os mais negros momentos do filme se revelam, mas, eu diria, que ao longo do filme há uma constante sensação que o mundo adulto para o qual as inocentes crianças se dirigem é algo em desequilíbrio inevitável. Pelas sufragettes e pelos discursos iniciais do pai, temos uma visão de um mundo imperialista de fachadas colocadas sobre um turbilhão social, do banco temos imagens de selvático capitalismo tornado grotesco e repugnante, da senhora que alimenta os pássaros temos uma visão de pobreza. Não estou a dizer que isto sejam imagens ou temas complexos na sua exposição, mas há sempre algo de triste no filme, algo que desafia os seus mais alegres momentos. Algo que é constante é o sentido de que tudo é, de certo modo, passageiro e efémero. Tal como a infância das crianças, também a presença de Poppins é temporária, com o mudar do vento e o avanço do tempo toda esta magia inocente se torna em algo do passado, algo meio esquecido como uma pintura em giz que desaparece com a chuva. A melancolia que parece constantemente assombrar as mais exuberantes fantasias do filme é particularmente impossível de ignorar no final do filme, mas mesmo assim olhamos isto com um sorriso, e em frente seguimos. Há uma maturidade estranha que se revela por entre a inocência e sinceridade ingénua do filme, como que se o próprio filme admitisse o seu derradeiro artifício, e oferece-se o seu espetáculo absoluto como um passageiro divertimento. De certo modo, este filme consegue ser das mais transportadores e triunfais obras de cinema dito de entretenimento, admitindo a melancolia da vida e oferecendo um artifício doce e belo como momentâneo prazer.

  E esse prazer devém muito da leveza da obra, que é leve apesar dessa referida complexidade melancólica. Com mais de duas horas, o filme passa num abrir e fechar de olhos, sendo que a montagem é de uma precisão superlativa, navegando o caos errático da estrutura com um jogo de ritmos fenomenais. Quando o filme pausa na sua euforia, fá-lo em prol de um tipo de espetáculo mais calmo, os seus ritmos perfeitamente modulados de modo a que não hajam momentos mortos e a que o pesar das suas passagens dramáticas seja sentido sem engolir por completo o filme.

 Mas o filme não é só perfeição sem igual, pelo que a realização de Robert Stevenson é imensamente desinspirada quando pensamos nas possibilidades que um material tão delicioso oferece. Há uma competência simples e modesta na sua abordagem que desaponta em igual medida ao modo como não permite o filme cair em devaneios estilísticos alienantes. No filme, encontra-se um equilíbrio quase perversamente perfeito entre o conforto de uma normalidade clássica e um jogo de criatividade enlouquecida, que tornam o filme numa experiência unicamente reconfortante. Nada desafia a audiência, mas nada a insulta na sua simplicidade. Eu diria mesmo que a catástrofe que é o sotaque cockney de Dick van Dyke contribui para este charme e equilíbrio deleitoso que o filme consegue manter ao longo de toda a sua duração. Num filme menos extraordinário, esta complacência estilística seria a sua perdição, aqui é apenas algo que impede o filme de se tornar algo, talvez mais interessante, mas infinitamente menos charmoso e deleitosamente simples.

  Mary Poppins é um dos suprassumos filmes de entretenimento alguma vez criados por Hollywood. O escapismo cinematográfico tornado triunfo de inocência, onde a magia é omnipresente desde o design aos efeitos visuais, e onde a música é de uma magnificência incontornável e deliciosamente emotiva. O filme é avassalador na sua sinceridade e, tal como ocorre com o outro inescapável musical que Andrews protagonizou nos anos 60, é por isso muitas vezes menosprezado apesar de ser, pelo menos para mim, um dos melhores filmes americanos de toda a década e um dos melhores musicais que Hollywood alguma vez produziu, assim como o melhor filme, que não seja de animação, alguma vez a emergir da produção dos estúdios Disney. Um milagre, um triunfo, tão impossível de descrever em toda a sua maravilha como será impossível de explicar o significado da palavra “Supercalifragilisticexpialidocious”. É simplesmente mágico, como cinema, como experiência nostálgica como entretenimento, como sonho tornado filme!


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