Jean Vigo morreu há,
faz hoje, 81 anos, vítima de tuberculose. Com a sua morte deu-se o final de uma
das mais promissoras vozes no panorama cinematográfico seu contemporâneo, uma
época de evolução e experimentação na arte do cinema em que este jovem génio
participou, com a sua diminuta mas magnífica filmografia. Em 1933, Vigo estreou
Zéro de conduite, um filme sobre um
grupo de estudantes, de um colégio interno cheio de regras e escasso em
liberdades, que travam uma revolução contra os órgãos de poder escolares,
delineando uma batalha simbólica entre Vigo e a sociedade francesa da sua
épica, suas hipocrisias e injustiças sociais. Este era um autor verdadeiramente
rebelde e nenhum dos seus filmes melhor transpareceu isso que esta obra, de apenas
41 minutos, cujo legado tem vindo a influenciar inúmeros autores ao longo da
história do cinema. Há um sentido de deliciosa experimentação no filme, uma
velocidade rítmica estonteante e um valor temático de imenso peso mas tratado
com uma leveza jocosa e quase delirante. Poucas vezes foi o cinema de carácter político
e de crítica social tão enervantemente divertido e fácil de ver, e também
poucas vezes o foi tão lírico e simplesmente belo como aqui.
A ambição e o génio de Vigo, para ser sincero, quase que
rebentam com a estrutura do filme, cuja curta duração parece sempre
irremediavelmente diminuta para tamanho material. A narrativa de Vigo seria
facilmente estendida a um filme de maior duração, sendo que a obra final
move-se a um ritmo estonteante, que leva, ainda mais que a abordagem formal, a
um estado próximo do surreal e do absurdo. As transições são bruscas, a
elegância da obra seguinte do autor a milhas de distância, mas o seu génio aqui
presente mesmo assim. Há algo, eu tenho de confessar, de deliciosamente incomum
em tal queixa da minha parte, sendo que não me atrevo a realmente criticar este
filme por qualquer excesso de ambição quando os resultados presentes são tão
magníficos como os que obtemos aqui e sua energia tão surpreendentemente
direta.
O filme abre com um jogo entre dois rapazes num comboio, uma
brincadeira obscena e juvenil, imatura e puramente adolescente, pontuada na
cena pelo uso de fumo que primeiro se manifesta como uma expressão do exterior
do comboio e rapidamente se torna no fumo de charutos, como que num jogo
plástico do próprio realizador para com a sua audiência. Logo aqui Vigo mostra
as suas finidades para com os jovens rebeldes, sendo que, depois de uma
introdução à vida dos rapazes na escola, a narrativa depressa se preocupa com o
início da revolução estudantil. Tal rebeldia tem o seu píncaro numa sequência
num dia de celebração, em que os estudantes, posicionados no telhado da escola
travam uma batalha feroz e completamente absurda com os adultos de poder, com
os símbolos da sua opressão, acabando por saírem vitoriosos deste conflito, não
fosse a obra de Vigo um dos mais fenomenalmente leves filmes políticos de
sempre, uma brincadeira cinematográfica com um toque de leve acidez temperando
a sua jocosidade.
Esses órgãos de poder, contra os quais os jovens rapazes se
rebelam, aparecem como caricaturas ridículas, quase como se saíssem de um
cartoon satírico de um jornal. Vigo não é subtil aqui, mas talvez dessa direta
impetuosidade venha tanta da sua energia e génio. O diretor é um anão com uma
barba postiça e até alguns dos atacados do final são apenas bonecos, a sua
organização e poder parece ser, sob os olhos de Vigo, um jogo de crianças, uma
brincadeira imatura e francamente estúpida entre pomposos e orgulhosos homens
de renome e suposta respeitabilidade. O encontro entre estudantes e o diretor
da escola é incrivelmente bizarro, por exemplo, em parte pela errática
montagem, o que confere algo de inegavelmente grotesco e horrendo ao poder
tirânico que se manifesta sobre a comunidade juvenil que acompanhamos na sua
rebelião. É uma crítica social aqui levada a níveis de fantástica caricatura, o
grosseiro combinado com o transcendente milagre do cinema poético de Vigo.
Formalmente o filme é um absoluto triunfo, sendo que a
fotografia e a música são de particular relevância. Vigo usou aqui a ajuda de
Boris Kaufman como seu diretor de fotografia e Maurice Jaubert como seu
compositor e o que os três conseguem alcançar não está longe da pureza de um
milagre cinematográfico. Há algo de particularmente fascinante no modo como a
escola é retratada como um ambiente, meio alucinação sonhadora, meio prisão
opressiva, como se o filme fosse um relato meio disperso e imaginado da
perspetiva de uma criança excitada, um conto de fadas revolucionário talvez. Este
tipo de abordagem é imensamente característico da curta filmografia do autor,
alcançando sua completa glória numa cena dentro dos dormitórios dos rapazes em
que uma batalha de almofadas depressa se torna num desfile revolucionário por
entre uma tempestade de penas que se espalham, como que fantasiosamente, pelo
ar.
A cena de luta de
almofadas é, portanto, simplesmente sublime e talvez o mais magnífico momento
na filmografia tragicamente curta de Vigo. Aqui ele brinca com tempo,
movimento, sequencialidade, o som e imagem, e cria algo que quase se torna
surreal no seu jogo formalístico. A câmara vai tremendo pelo filme, mas não lhe
confere grande noção de amadorismo, pelo contrário, parece reforçar a
vitalidade da obra e sua energia frenética, e nestes momentos de velocidade
anti naturalista, há um primor técnico absoluto combinado com a exuberância e
energia da cena. A música é aqui hipnotizante e modernista, o ritmo é suspenso
pela beleza da cena com penas a voar e a infestarem a atmosfera, enquanto a
rudeza dos adolescentes em cena é convertido em movimento quase balético na sua
magnificência desacelerada pelo olhar de Vigo, que aqui para o tempo,
suspende-o e deixa-nos observar o seu milagre. Talvez mais que qualquer
violência ou simbolismo fortemente politico, nesta cena o autor se mostre no cúmulo
da sua rebeldia, com que rompendo com as expetativas do cinema da época numa
explosão orgiástica de cinema.
Apesar de um prodigioso e relativamente inovador uso de som,
que parece apontar para um experimentalismo jovial, o filme apresenta-se,
especialmente no seu início quase como um filme mudo. À medida que o uso da
música e dos sons de ambiente se vai intensificando podemos claramente
verificar que não o é, mas há algo de curioso na relativa escassez de diálogo
falado que caracteriza muito do filme. Mas, nas cenas em que é posto em lugar
de relevo, o som é esplendoroso na sua utilização surreal meio expressionista.
Numa cena de jantar, por exemplo, a sonoridade é que revela o caos fulgurante
que se está a criar. Há algo de lírico e quase que juvenil nesta abordagem.
Nos momentos finais
da batalha e do filme, os rebeldes jovens, a manifestação humana do futuro da
nação, atacam o poder que controla o país naquele momento. O futuro
rebelando-se contra estruturação do poder presente em todo o seu absurdismo e
injustiça. “Abaixo a burguesia dos velhos, que viva um novo mundo de justiça!
Que viva a revolução dos jovens!”. Isto parece Vigo gritar nos finais momentos
vitoriosos do filme, cujas correntes inescapáveis de crítica social e política,
tornaram o filme numa obra de imensa polémica e controvérsia, chegando mesmo a
ser banido pelo seu impacto. Há algo de extraordinariamente alienante em tal
descrição de acontecimentos em relação a um filme, mas há que evitar subestimar
o poder do cinema e sua influência na mentalidade, especialmente quando o
cinema de que falamos é tão maravilhoso como este, e, gostaria de acrescentar,
tão assustadoramente relevante ainda nos dias de hoje. Não só é ainda relevante
pela sua experimentação formal, mas também pela sua fúria e luta pela liberdade
e justiça face a uma opressão dos mais poderosos contra os mais fracos na
sociedade moderna, aqui tornado devaneio adolescente.
O filme encerra-se
numa imagem de uma serenidade e precisão surpreendente. Vigo filma o céu e o
telhado em que os estudantes se encontram, os heróis da revolução vitoriosa
caminham para longe do nosso olhar como que ascendendo ao céu, como que
caminhando para a glória da sua liberdade numa imagem quase tornada pintura
pelo olhar formidável do seu autor cujo talento para momentos de transcendente
poesia visual aqui se manifesta em todo o seu avassalador poder. Gostaria de
acrescentar aos hipotéticos gritos de Vigo na sua derradeira sequência a minha
pessoal manifestação e celebração deste filme. Viva Vigo! Viva a liberdade! E
viva o cinema!
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