segunda-feira, 5 de outubro de 2015

ZÉRO DE CONDUITE (1933) de Jean Vigo



 Jean Vigo morreu há, faz hoje, 81 anos, vítima de tuberculose. Com a sua morte deu-se o final de uma das mais promissoras vozes no panorama cinematográfico seu contemporâneo, uma época de evolução e experimentação na arte do cinema em que este jovem génio participou, com a sua diminuta mas magnífica filmografia. Em 1933, Vigo estreou Zéro de conduite, um filme sobre um grupo de estudantes, de um colégio interno cheio de regras e escasso em liberdades, que travam uma revolução contra os órgãos de poder escolares, delineando uma batalha simbólica entre Vigo e a sociedade francesa da sua épica, suas hipocrisias e injustiças sociais. Este era um autor verdadeiramente rebelde e nenhum dos seus filmes melhor transpareceu isso que esta obra, de apenas 41 minutos, cujo legado tem vindo a influenciar inúmeros autores ao longo da história do cinema. Há um sentido de deliciosa experimentação no filme, uma velocidade rítmica estonteante e um valor temático de imenso peso mas tratado com uma leveza jocosa e quase delirante. Poucas vezes foi o cinema de carácter político e de crítica social tão enervantemente divertido e fácil de ver, e também poucas vezes o foi tão lírico e simplesmente belo como aqui.

 A ambição e o génio de Vigo, para ser sincero, quase que rebentam com a estrutura do filme, cuja curta duração parece sempre irremediavelmente diminuta para tamanho material. A narrativa de Vigo seria facilmente estendida a um filme de maior duração, sendo que a obra final move-se a um ritmo estonteante, que leva, ainda mais que a abordagem formal, a um estado próximo do surreal e do absurdo. As transições são bruscas, a elegância da obra seguinte do autor a milhas de distância, mas o seu génio aqui presente mesmo assim. Há algo, eu tenho de confessar, de deliciosamente incomum em tal queixa da minha parte, sendo que não me atrevo a realmente criticar este filme por qualquer excesso de ambição quando os resultados presentes são tão magníficos como os que obtemos aqui e sua energia tão surpreendentemente direta.

 O filme abre com um jogo entre dois rapazes num comboio, uma brincadeira obscena e juvenil, imatura e puramente adolescente, pontuada na cena pelo uso de fumo que primeiro se manifesta como uma expressão do exterior do comboio e rapidamente se torna no fumo de charutos, como que num jogo plástico do próprio realizador para com a sua audiência. Logo aqui Vigo mostra as suas finidades para com os jovens rebeldes, sendo que, depois de uma introdução à vida dos rapazes na escola, a narrativa depressa se preocupa com o início da revolução estudantil. Tal rebeldia tem o seu píncaro numa sequência num dia de celebração, em que os estudantes, posicionados no telhado da escola travam uma batalha feroz e completamente absurda com os adultos de poder, com os símbolos da sua opressão, acabando por saírem vitoriosos deste conflito, não fosse a obra de Vigo um dos mais fenomenalmente leves filmes políticos de sempre, uma brincadeira cinematográfica com um toque de leve acidez temperando a sua jocosidade.

 Esses órgãos de poder, contra os quais os jovens rapazes se rebelam, aparecem como caricaturas ridículas, quase como se saíssem de um cartoon satírico de um jornal. Vigo não é subtil aqui, mas talvez dessa direta impetuosidade venha tanta da sua energia e génio. O diretor é um anão com uma barba postiça e até alguns dos atacados do final são apenas bonecos, a sua organização e poder parece ser, sob os olhos de Vigo, um jogo de crianças, uma brincadeira imatura e francamente estúpida entre pomposos e orgulhosos homens de renome e suposta respeitabilidade. O encontro entre estudantes e o diretor da escola é incrivelmente bizarro, por exemplo, em parte pela errática montagem, o que confere algo de inegavelmente grotesco e horrendo ao poder tirânico que se manifesta sobre a comunidade juvenil que acompanhamos na sua rebelião. É uma crítica social aqui levada a níveis de fantástica caricatura, o grosseiro combinado com o transcendente milagre do cinema poético de Vigo.

 Formalmente o filme é um absoluto triunfo, sendo que a fotografia e a música são de particular relevância. Vigo usou aqui a ajuda de Boris Kaufman como seu diretor de fotografia e Maurice Jaubert como seu compositor e o que os três conseguem alcançar não está longe da pureza de um milagre cinematográfico. Há algo de particularmente fascinante no modo como a escola é retratada como um ambiente, meio alucinação sonhadora, meio prisão opressiva, como se o filme fosse um relato meio disperso e imaginado da perspetiva de uma criança excitada, um conto de fadas revolucionário talvez. Este tipo de abordagem é imensamente característico da curta filmografia do autor, alcançando sua completa glória numa cena dentro dos dormitórios dos rapazes em que uma batalha de almofadas depressa se torna num desfile revolucionário por entre uma tempestade de penas que se espalham, como que fantasiosamente, pelo ar.

 A cena de luta de almofadas é, portanto, simplesmente sublime e talvez o mais magnífico momento na filmografia tragicamente curta de Vigo. Aqui ele brinca com tempo, movimento, sequencialidade, o som e imagem, e cria algo que quase se torna surreal no seu jogo formalístico. A câmara vai tremendo pelo filme, mas não lhe confere grande noção de amadorismo, pelo contrário, parece reforçar a vitalidade da obra e sua energia frenética, e nestes momentos de velocidade anti naturalista, há um primor técnico absoluto combinado com a exuberância e energia da cena. A música é aqui hipnotizante e modernista, o ritmo é suspenso pela beleza da cena com penas a voar e a infestarem a atmosfera, enquanto a rudeza dos adolescentes em cena é convertido em movimento quase balético na sua magnificência desacelerada pelo olhar de Vigo, que aqui para o tempo, suspende-o e deixa-nos observar o seu milagre. Talvez mais que qualquer violência ou simbolismo fortemente politico, nesta cena o autor se mostre no cúmulo da sua rebeldia, com que rompendo com as expetativas do cinema da época numa explosão orgiástica de cinema.

 Apesar de um prodigioso e relativamente inovador uso de som, que parece apontar para um experimentalismo jovial, o filme apresenta-se, especialmente no seu início quase como um filme mudo. À medida que o uso da música e dos sons de ambiente se vai intensificando podemos claramente verificar que não o é, mas há algo de curioso na relativa escassez de diálogo falado que caracteriza muito do filme. Mas, nas cenas em que é posto em lugar de relevo, o som é esplendoroso na sua utilização surreal meio expressionista. Numa cena de jantar, por exemplo, a sonoridade é que revela o caos fulgurante que se está a criar. Há algo de lírico e quase que juvenil nesta abordagem.

 Nos momentos finais da batalha e do filme, os rebeldes jovens, a manifestação humana do futuro da nação, atacam o poder que controla o país naquele momento. O futuro rebelando-se contra estruturação do poder presente em todo o seu absurdismo e injustiça. “Abaixo a burguesia dos velhos, que viva um novo mundo de justiça! Que viva a revolução dos jovens!”. Isto parece Vigo gritar nos finais momentos vitoriosos do filme, cujas correntes inescapáveis de crítica social e política, tornaram o filme numa obra de imensa polémica e controvérsia, chegando mesmo a ser banido pelo seu impacto. Há algo de extraordinariamente alienante em tal descrição de acontecimentos em relação a um filme, mas há que evitar subestimar o poder do cinema e sua influência na mentalidade, especialmente quando o cinema de que falamos é tão maravilhoso como este, e, gostaria de acrescentar, tão assustadoramente relevante ainda nos dias de hoje. Não só é ainda relevante pela sua experimentação formal, mas também pela sua fúria e luta pela liberdade e justiça face a uma opressão dos mais poderosos contra os mais fracos na sociedade moderna, aqui tornado devaneio adolescente.

 O filme encerra-se numa imagem de uma serenidade e precisão surpreendente. Vigo filma o céu e o telhado em que os estudantes se encontram, os heróis da revolução vitoriosa caminham para longe do nosso olhar como que ascendendo ao céu, como que caminhando para a glória da sua liberdade numa imagem quase tornada pintura pelo olhar formidável do seu autor cujo talento para momentos de transcendente poesia visual aqui se manifesta em todo o seu avassalador poder. Gostaria de acrescentar aos hipotéticos gritos de Vigo na sua derradeira sequência a minha pessoal manifestação e celebração deste filme. Viva Vigo! Viva a liberdade! E viva o cinema!


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