Com O Solista Joe Wright realizou aquele que
é o seu mais atípico trabalho até agora. Longe das adaptações de clássicos
literários e da inspiração em contos de fadas que marcam o resto da filmografia,
o seu terceiro filme é baseado numa história verídica. Ao contrário do resto
das suas obras, aqui a ação passa-se nos EUA, nomeadamente em Los Angeles, o
que retira muitas das caras usuais dos filmes do autor, e, talvez o mais
importante, é o seu único filme que utiliza a malfadada e cliché estrutura do
filme inspirador.
O guião foi
construído com base no livro de Steve Lopez (Robert Downey Jr.), e segue a
história de um jornalista, Lopez, que descobre nas ruas de Los Angeles
Nathaniel Ayers (Jamie Foxx), um prodígio musical que em tempos estudou em
Julliard mas, devido aos seus problemas com esquizofrenia, acabou por se
encontrar a viver como um sem-abrigo. A partir desta relação, desta amizade
mesclada de interesses profissionais, O
Solista desenrola-se numa previsível narrativa em que Lopez vai tentando
ajudar Ayers, acabando por encontrar uma espécie de redenção para si mesmo,
como é usual neste tipo de histórias. Pelo caminho o filme vai tentando abordar
uma coletânea de temáticas como os problemas sociais latentes na condição de
Ayers, o modo como a sociedade trata pessoas com problemas de saúde mental, a
vida das comunidades de sem-abrigos, questões raciais, os problemas pessoais de
Lopez e Ayer, etc.
O que no final acaba
por acontecer é que o filme é uma obra de curiosa falta de foco e direção. A
estrutura usual do filme inspirador está aqui, especialmente nos flashbacks da
juventude de Ayers e no final completo com voz-off de Downey Jr., mas pelo meio
a narrativa vai-se perdendo por essas outras ambições temáticas, sem nunca
conseguir injetar grande complexidade ou nuance. Para além de provavelmente ser
o mais desapontante e pouco característico dos filmes de Wright (ainda não vi Pan), este é certamente aquele que
possui pior texto, que apenas alcança algum triunfo no seu retrato intimista de
Lopez, mas isso também é grande responsabilidade do trabalho do ator.
Tal como nos outros
filmes do realizador, o elenco é de louvar, desde os atores que apenas têm
alguns momentos passageiros como Jena Malone e Lorraine Toussant até aos dois
protagonistas. Muitos dirão o mesmo de
Expiação, mas O Solista é o filme
de Wright que mais parece suplicar a atenção dos prémios de cinema, sendo que
todo o edifício do filme parece ser construído em prol de exibir algum do
melhor trabalho que Downey Jr. e Foxx alguma vez produziram. Como Ayers, Foxx
consegue encontrar uma fascinante vulnerabilidade por entre os seus tiques e
trejeitos, tornando palpavelmente humano o que poderia ser uma irritante
criação de técnica vazia, como eu penso que o ator fez no papel que lhe valeu
um Óscar. Mas, muito melhor que Foxx, e abençoado com uma personagem
infinitamente melhor escrita, temos Donwney Jr. que consegue sempre evitar
tornar Lopez num santo ou num anti-herói comum em trajetória de redenção
simplista. Não se enganem, a redenção e auto reflexão aparecem na narrativa,
mas misturadas com as fobias, sua compaixão e sua surpreendente opacidade,
criam uma visão reticente de um ser humano complexo e cujas motivações nunca
nos são perfeitamente claras ou insultuosamente simplistas. Nunca a persona
arrogante e carismática do ator foi tão bem modulada e aproveitada por um
realizador e talvez apenas por isso, valha a pena rever este filme.
Tenho estado a
relatar como este filme é algo atípico na oeuvre
do seu realizador, no entanto, tal como no que diz respeito ao trabalho de
atores, o toque usual de Wright está inegavelmente presente nesta obra,
permitindo a O Solista manter-se
longe da banalidade devastadora de tantos outros filmes supostamente
inspiradores. Algo que se torna impossível de ignorar é o gosto do realizador
pelo movimento da câmara, aqui tão exuberante como em Expiação, não tendo a
opulência romântica desse outro filme no que é capturado pela câmara. Planos que
atravessam escritórios, que sobrevoam comunidades de sem-abrigos, que dançam por
entre convidados numa festa, tudo isto com o toque de excesso sublime que tanto
parece ter vindo a caracterizar o estilo deste autor inglês.
Outro, óbvio, aspeto
será o papel da música na mise-en-scène do filme, sendo que é absolutamente
inescapável na narrativa. A banda-sonora é uma mistura luxuriante de música
clássica, especialmente Beethoven, com composições originais de Dario
Marianelli, um frequente colaborador do realizador, ajudando a mover o filme a
um elegante ritmo. Na mais singular e maravilhosa cena do filme, Wright filma
Foxx a ouvir uma orquestra tocar Beethoven num auditório vazio. A câmara
afasta-se, retratando-o como um ponto luminosos na escuridão absoluta, de
seguida passando a uma abstrata visão de luz e cor, onde manchas luminosas se
movem em ritmo com a música. Neste momento de abstração, Wright cria algo de
imersivo e apaixonante, uma pausa na estrutura do filme, que enche o espetador
de vitalidade e, melhor do que qualquer cena de exposição, dá-nos uma
oportunidade de vislumbrar a paixão de Ayers e a glória que este encontra na
música. O ato de ouvir convertido em experiência visual que pode ser acusada de
uma certa falta de originalidade, mas não é por isso que é menos comovente ou estonteantemente
bela.
O design do filme é bastante
menos opulente que o que se regista no resto do trabalho do realizador, estando
preso a uma noção de realidade contemporânea inédita no trabalho do realizador.
Mesmo assim, os flashbacks para a infância de Ayers, a cor e excentricidade,
levemente desconfortável, da vida do músico e outros doentes mentais, concedem
ao filme alguns momentos em que mostrar a cenografia e figurinos vistosos que
tanto se evidenciam em filmes como Expiação
e Anna Karenina.
O Solista acaba por ser um trabalho menor na filmografia de Wright,
mas é fascinante de observar, tanto pelo trabalho do elenco como pelo modo como
coloca o realizador num terreno geográfico, temporal e temático que não se
regista em mais qualquer filme seu. As suas limitações textuais e franca falta
de nuance ou perspicácia na representação de suas facetas sociais, impedem o
filme de emergir como uma obra de relevância por entre a banalidade soporífera
dos filmes inspiradores baseados em factos verídicos, mas, pelo menos, aqui
encontra-se alguma originalidade fugaz, alguns momentos de imersiva emoção, e
alguns vislumbres de um retrato duplo muito menos elegíaco e aborrecido do que
seria de esperar.
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