Um amigo pessoal, e leitor deste blog,
enviou-me uma lista de vários filmes, sobre os quais gostaria de saber os meus
pensamentos, sendo que já aqui escrevi sobre Georgia de Ulu Grosbard. Hoje é o seu aniversário, pelo que decidi
responder a mais um dos pedidos que ele me enviou com este texto. Espero que
ele aprecie e tenha um excelente aniversário.
Revisitar filmes
depois de vários anos em que não os vimos pode ser algo arriscado. Obras que
outrora tivemos na nossa mente como magníficas criações podem-se revelar como
desilusões encobertas pela doçura de uma inocência nostálgica, no entanto,
também acontece que, ocasionalmente, filmes acabam por surpreender quando
revistos. O que outrora pareceria absurdo e medíocre, revela-se agora como
mestria cinemática. As razões para isto acontecer são variadas, sendo que a
passagem do tempo é invariável no modo como altera as nossas opiniões e espírito
crítico, mas não são as razões deste fenómeno que eu quero aqui explorar, mas sim
um dos resultados que a mim me surpreenderam. Falo de Birth, o segundo filme de Jonathan Glazer, um filme que eu em
tempos vi e achei bastante frio, medíocre, desinteressante e sufocante na sua
seriedade, num modo que não parecia acompanhar o seu conteúdo ou visão geral.
Tendo-o revisto pela primeira vez há cerca de dois anos, a minha opinião
alterou-se de modo radical. Da mediocridade com que antes considerava o filme,
passei à admiração inquestionável por uma obra magnífica, sendo que, hoje em
dia, considero este filme como um dos grandes filmes americanos que se fizeram,
até agora, no século XXI.
A narrativa do filme
é bastante convoluta e alienante para quem não ceder a deixar algum ceticismo e
arrogância à porta do cinema. Anna (Nicole Kidman) é a nossa protagonista,
sendo que, no início do enredo, se encontra a planear o seu casamento com
Joseph (Danny Huston). Este será o seu segundo casamento, sendo que o seu
primeiro marido, Sean, morreu dez anos antes dos eventos principais do filme.
Numa misteriosa sequência de eventos, observamos a morte de Sean, a festa de
noivado de Anna e Joseph e a mulher do irmão de Sean, Clara (Anna Heche),
enterrar um presente de noivado para a protagonista. Há uma opacidade alienante
que marca todos estes primeiros momentos, mas esta confusão é necessária para o
resto do filme, cujos principais conflitos começam a deflagrar quando um
misterioso rapaz (Cameron Bright) aparece durante uma festa de aniversário da
mãe de Anna (Lauren Baccall) e afirma ser a reencarnação de Sean. O que se
segue é uma claustrofóbica espiral de ilusões, desejos silenciosos e angústia à
volta desta criança e seu efeito em Anna e na sua família que, ao contrário da
protagonista, nunca deixam de suspeitar das alegações do jovem Sean. O místico
e o perverso juntam-se nesta narrativa, culminando num final em que nenhuma
expiação é concedida a nenhuma das figuras e onde apenas desespero parece
existir.
Algo que terão
reparado é que este é um filme de um colossal peso, sendo que é alarmante e
asfixiante na sua depressiva atmosfera. Presumo que isto tenha sido das razões
que me levaram a renegar o filme aquando da minha primeira visualização, pois
aqui não há qualquer insinuação de leveza. Tudo é triste, duvidoso, e sob uma
constante aura que lembra um solene funeral. Isto deve-se, em parte, à rigidez
magistral com que Glazer torna esta narrativa numa visão de frieza absoluta.
Apesar do amor e da paixão que transcende os limites da vida serem algo
impossível de retirar da história do filme, o filme não cede qualquer sombra de
conforto ou emoção exuberante à sua audiência. A fotografia de Harris Savides é
um dos grandes culpados destas visão glacial, encontrando algo de alienante e
corrosivamente distante numa paleta de cores que parece apenas variar em tons
de âmbar, pérola e preto. De algum modo, a luz dourada ou branca nunca é quente
ou nostálgica, sendo que dos interiores supostamente confortáveis e calorosos,
a câmara de Glazer e Savides consegue extrair qualquer insinuação de vida ou
calor humano. Mesmo as pessoas parecem existir como que manifestações elegantes
deste mundo de conforto falso, sempre em roupas quentes de Inverno em preto ou
em tonalidades suaves que parecem extensões da sua pele. Apenas as pessoas fora
do mundo hermético da família de Anna parecem fugir aos alienantes códigos
visuais que tornam os humanos em objetos cénicos de funérea presença. Há uma simplicidade
que parece convidar à experiência acolhedora mas que é horrendamente áspera, o
filme logo aqui jogando com as suas belas superfícies em que a vida humana,
apesar de se verificar, parece não ter lugar para existir na sua desordem e
emoção.
Um mundo tão frio
como a neve que adorna a magistral sequência inicial do filme, e que é habitado
por algumas das mais oblíquas e fascinantes criações do cinema fictício
americano deste século presente. A mais fascinante de todas essas figuras não é,
no entanto, o jovem misterioso, mas sim Anna, uma personagem que é aqui representada
por Kidman como um turbilhão silencioso e em absoluta quietude. Anna passa o
filme a lutar e a aceitar os seus desejos num ciclo vicioso de dúvida e
perversa rendição, sem nunca explodir no melodrama que tal enredo parece
sugerir. O lado mais glacial da persona de Kidman nunca foram melhor empregues
ou contrariados que aqui, sendo que é impossível olhar para Anna e não ver nela
uma fragilidade absoluta, como que uma boneca de porcelana vulnerável, à beira
de se estilhaçar irremediavelmente. No final, no entanto, as explosões começam
a emergir da superfície de porcelana e são algo espetacular de se ver,
especialmente na sua fúria e desespero que parece escapar à compreensão da
própria protagonista, mas, no entanto, nada têm em si que se compare à
intensidade transcendente da famosa cena na ópera. Nessa cena, observamos Kidman
em grande plano durante o que parece uma eternidade, e nela observamos algo de avassalador
mas misterioso, algo de impenetrável mas imensamente emocional, um turbilhão
emocional personificado sem, no entanto, demasiado espelhar na sua face e
vítreo olhar. Há um medo que assombra todos os momentos que Anna está no ecrã,
um medo de algo inefável, mas que por vezes parece ser o terror de aceitar os
seus próprios desejos e o apelo delicioso da mentira e da ilusão que constrói
para consigo própria.
Agora que já escrevi
o obrigatório elogio a Kidman devo também referir a magnificência superlativa
do resto do elenco. Todos os membros estão de parabéns, mesmo aqueles que estão
presos em papéis extremamente difíceis de apreciar ou separar da sua condição
como ferramentas narrativas, nomeadamente Bright, cuja desumanidade é tão
estranha e repelente como é opaca e horrendamente sedutora no seu mistério.
Mas, aparte de Kidman, a verdadeira joia do filme, em termos de atores, é Anne
Heche, naquela que é, para mim, a melhor prestação da sua carreira. Ela
consegue conjurar uma malícia misturada com perda que ameaça desmoronar todo o
filme. Quando Clara, uma figura central a todo o desenlace do mistério,
confronta o jovem Sean, há algo em si que é quase obsceno na sua crueldade
remota e assustadoramente comum. Não há grande espetáculo ou invulgaridade glorificada
na sua pessoa, mas na sua normalidade e sua perniciosa superioridade face ao
rapaz encurralado, há algo de magnífico. Se não fosse ela, o filme não seria,
nem de perto, o espetáculo de crueldade fria e subtil que se revela ser no
final, mas também não seria tão impactante ou gloriosamente doloroso como é na
sua totalidade final.
Tanto já elogiei e
ainda nem sequer referi o génio que é o trabalho de Alexandre Desplat que, tal
como Heche, Savides e talvez Kidman, alcança aqui o píncaro da sua carreira.
Tal como a fotografia impecável, há algo de imensamente elegante na música, mas
aqui, ao invés da frieza dos interiores desumanamente gélidos, temos uma beleza
sonora inquestionável com que tudo parece contrastar de modo tão abominável
como genial. A sequência de abertura é particularmente estonteante, contendo,
na sua representação de uma morte uma das mais belas peças de música alguma vez
compostas pelo compositor francês.
O filme é como que
uma reticência de mistério e frieza tornado cinema. Para muitos, eu presumo que
o filme seja algo entediante, imensamente absurdo na sua representação de
comportamentos tão irracionais como distantes, ou mesmo no seu final
angustiante, mas há algo de inegável na sua beleza, na sua melodiosa precisão,
na segurança incomum em como a história se desenrola, sem uma pinga do
melodrama que tal premissa pudesse sugerir. Birth
nunca será uma experiência confortável, mas na sua alienação abrasiva mesclada
de intimidade cruel encontra-se uma das mais singulares obras do cinema
americano da contemporaneidade, assim como um dos mais fascinantes retratos de
uma personagem fictícia que o cinema americano tem para oferecer, relembrando
as magnificas visões que foram aparecendo nos anos 70 sob a direção de autores
como Cassavetes ou Altman. Só há algo negativo que, atualmente, o filme me
provoca, e isso é uma fúria entristecida com o facto de que, em 15 anos,
Jonathan Glazer apenas criou três filmes, todos eles fascinantes e dignos da
apreciação e atenção que têm arrecadado. Tal reticência da parte do autor é tão
cruel e dolorosa para com a audiência como os humanos dentro de Birth conseguem ser uns para os outros e
para consigo mesmos, mas suponho que, quando os resultados do seu esporádico
trabalho são desta genial magnitude, mais vale apenas mostrar-me grato pelo
facto de Sexy Beast, Birth e Under the Skin existirem como luminosas criações de magistral
cinema.
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