segunda-feira, 12 de outubro de 2015

BIRTH (2004) de Jonathan Glazer

 Um amigo pessoal, e leitor deste blog, enviou-me uma lista de vários filmes, sobre os quais gostaria de saber os meus pensamentos, sendo que já aqui escrevi sobre Georgia de Ulu Grosbard. Hoje é o seu aniversário, pelo que decidi responder a mais um dos pedidos que ele me enviou com este texto. Espero que ele aprecie e tenha um excelente aniversário.


 Revisitar filmes depois de vários anos em que não os vimos pode ser algo arriscado. Obras que outrora tivemos na nossa mente como magníficas criações podem-se revelar como desilusões encobertas pela doçura de uma inocência nostálgica, no entanto, também acontece que, ocasionalmente, filmes acabam por surpreender quando revistos. O que outrora pareceria absurdo e medíocre, revela-se agora como mestria cinemática. As razões para isto acontecer são variadas, sendo que a passagem do tempo é invariável no modo como altera as nossas opiniões e espírito crítico, mas não são as razões deste fenómeno que eu quero aqui explorar, mas sim um dos resultados que a mim me surpreenderam. Falo de Birth, o segundo filme de Jonathan Glazer, um filme que eu em tempos vi e achei bastante frio, medíocre, desinteressante e sufocante na sua seriedade, num modo que não parecia acompanhar o seu conteúdo ou visão geral. Tendo-o revisto pela primeira vez há cerca de dois anos, a minha opinião alterou-se de modo radical. Da mediocridade com que antes considerava o filme, passei à admiração inquestionável por uma obra magnífica, sendo que, hoje em dia, considero este filme como um dos grandes filmes americanos que se fizeram, até agora, no século XXI.

 A narrativa do filme é bastante convoluta e alienante para quem não ceder a deixar algum ceticismo e arrogância à porta do cinema. Anna (Nicole Kidman) é a nossa protagonista, sendo que, no início do enredo, se encontra a planear o seu casamento com Joseph (Danny Huston). Este será o seu segundo casamento, sendo que o seu primeiro marido, Sean, morreu dez anos antes dos eventos principais do filme. Numa misteriosa sequência de eventos, observamos a morte de Sean, a festa de noivado de Anna e Joseph e a mulher do irmão de Sean, Clara (Anna Heche), enterrar um presente de noivado para a protagonista. Há uma opacidade alienante que marca todos estes primeiros momentos, mas esta confusão é necessária para o resto do filme, cujos principais conflitos começam a deflagrar quando um misterioso rapaz (Cameron Bright) aparece durante uma festa de aniversário da mãe de Anna (Lauren Baccall) e afirma ser a reencarnação de Sean. O que se segue é uma claustrofóbica espiral de ilusões, desejos silenciosos e angústia à volta desta criança e seu efeito em Anna e na sua família que, ao contrário da protagonista, nunca deixam de suspeitar das alegações do jovem Sean. O místico e o perverso juntam-se nesta narrativa, culminando num final em que nenhuma expiação é concedida a nenhuma das figuras e onde apenas desespero parece existir.

  Algo que terão reparado é que este é um filme de um colossal peso, sendo que é alarmante e asfixiante na sua depressiva atmosfera. Presumo que isto tenha sido das razões que me levaram a renegar o filme aquando da minha primeira visualização, pois aqui não há qualquer insinuação de leveza. Tudo é triste, duvidoso, e sob uma constante aura que lembra um solene funeral. Isto deve-se, em parte, à rigidez magistral com que Glazer torna esta narrativa numa visão de frieza absoluta. Apesar do amor e da paixão que transcende os limites da vida serem algo impossível de retirar da história do filme, o filme não cede qualquer sombra de conforto ou emoção exuberante à sua audiência. A fotografia de Harris Savides é um dos grandes culpados destas visão glacial, encontrando algo de alienante e corrosivamente distante numa paleta de cores que parece apenas variar em tons de âmbar, pérola e preto. De algum modo, a luz dourada ou branca nunca é quente ou nostálgica, sendo que dos interiores supostamente confortáveis e calorosos, a câmara de Glazer e Savides consegue extrair qualquer insinuação de vida ou calor humano. Mesmo as pessoas parecem existir como que manifestações elegantes deste mundo de conforto falso, sempre em roupas quentes de Inverno em preto ou em tonalidades suaves que parecem extensões da sua pele. Apenas as pessoas fora do mundo hermético da família de Anna parecem fugir aos alienantes códigos visuais que tornam os humanos em objetos cénicos de funérea presença. Há uma simplicidade que parece convidar à experiência acolhedora mas que é horrendamente áspera, o filme logo aqui jogando com as suas belas superfícies em que a vida humana, apesar de se verificar, parece não ter lugar para existir na sua desordem e emoção.

 Um mundo tão frio como a neve que adorna a magistral sequência inicial do filme, e que é habitado por algumas das mais oblíquas e fascinantes criações do cinema fictício americano deste século presente. A mais fascinante de todas essas figuras não é, no entanto, o jovem misterioso, mas sim Anna, uma personagem que é aqui representada por Kidman como um turbilhão silencioso e em absoluta quietude. Anna passa o filme a lutar e a aceitar os seus desejos num ciclo vicioso de dúvida e perversa rendição, sem nunca explodir no melodrama que tal enredo parece sugerir. O lado mais glacial da persona de Kidman nunca foram melhor empregues ou contrariados que aqui, sendo que é impossível olhar para Anna e não ver nela uma fragilidade absoluta, como que uma boneca de porcelana vulnerável, à beira de se estilhaçar irremediavelmente. No final, no entanto, as explosões começam a emergir da superfície de porcelana e são algo espetacular de se ver, especialmente na sua fúria e desespero que parece escapar à compreensão da própria protagonista, mas, no entanto, nada têm em si que se compare à intensidade transcendente da famosa cena na ópera. Nessa cena, observamos Kidman em grande plano durante o que parece uma eternidade, e nela observamos algo de avassalador mas misterioso, algo de impenetrável mas imensamente emocional, um turbilhão emocional personificado sem, no entanto, demasiado espelhar na sua face e vítreo olhar. Há um medo que assombra todos os momentos que Anna está no ecrã, um medo de algo inefável, mas que por vezes parece ser o terror de aceitar os seus próprios desejos e o apelo delicioso da mentira e da ilusão que constrói para consigo própria.

 Agora que já escrevi o obrigatório elogio a Kidman devo também referir a magnificência superlativa do resto do elenco. Todos os membros estão de parabéns, mesmo aqueles que estão presos em papéis extremamente difíceis de apreciar ou separar da sua condição como ferramentas narrativas, nomeadamente Bright, cuja desumanidade é tão estranha e repelente como é opaca e horrendamente sedutora no seu mistério. Mas, aparte de Kidman, a verdadeira joia do filme, em termos de atores, é Anne Heche, naquela que é, para mim, a melhor prestação da sua carreira. Ela consegue conjurar uma malícia misturada com perda que ameaça desmoronar todo o filme. Quando Clara, uma figura central a todo o desenlace do mistério, confronta o jovem Sean, há algo em si que é quase obsceno na sua crueldade remota e assustadoramente comum. Não há grande espetáculo ou invulgaridade glorificada na sua pessoa, mas na sua normalidade e sua perniciosa superioridade face ao rapaz encurralado, há algo de magnífico. Se não fosse ela, o filme não seria, nem de perto, o espetáculo de crueldade fria e subtil que se revela ser no final, mas também não seria tão impactante ou gloriosamente doloroso como é na sua totalidade final.

 Tanto já elogiei e ainda nem sequer referi o génio que é o trabalho de Alexandre Desplat que, tal como Heche, Savides e talvez Kidman, alcança aqui o píncaro da sua carreira. Tal como a fotografia impecável, há algo de imensamente elegante na música, mas aqui, ao invés da frieza dos interiores desumanamente gélidos, temos uma beleza sonora inquestionável com que tudo parece contrastar de modo tão abominável como genial. A sequência de abertura é particularmente estonteante, contendo, na sua representação de uma morte uma das mais belas peças de música alguma vez compostas pelo compositor francês.

 O filme é como que uma reticência de mistério e frieza tornado cinema. Para muitos, eu presumo que o filme seja algo entediante, imensamente absurdo na sua representação de comportamentos tão irracionais como distantes, ou mesmo no seu final angustiante, mas há algo de inegável na sua beleza, na sua melodiosa precisão, na segurança incomum em como a história se desenrola, sem uma pinga do melodrama que tal premissa pudesse sugerir. Birth nunca será uma experiência confortável, mas na sua alienação abrasiva mesclada de intimidade cruel encontra-se uma das mais singulares obras do cinema americano da contemporaneidade, assim como um dos mais fascinantes retratos de uma personagem fictícia que o cinema americano tem para oferecer, relembrando as magnificas visões que foram aparecendo nos anos 70 sob a direção de autores como Cassavetes ou Altman. Só há algo negativo que, atualmente, o filme me provoca, e isso é uma fúria entristecida com o facto de que, em 15 anos, Jonathan Glazer apenas criou três filmes, todos eles fascinantes e dignos da apreciação e atenção que têm arrecadado. Tal reticência da parte do autor é tão cruel e dolorosa para com a audiência como os humanos dentro de Birth conseguem ser uns para os outros e para consigo mesmos, mas suponho que, quando os resultados do seu esporádico trabalho são desta genial magnitude, mais vale apenas mostrar-me grato pelo facto de Sexy Beast, Birth e Under the Skin existirem como luminosas criações de magistral cinema.

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