Apesar de em Citizen Kane, Orson Welles ter criado um
dos mais magníficos filmes alguma vez concebidos em Hollywood, assim como uma
espécie de catálogo em forma de filme dos variados avanços cinematográficos que
se tinham desenvolvido na história do meio, o seu trabalho não obteve na sua época
o mesmo tipo de culto que tantos cinéfilos por ele praticam hoje em dia. Isso
não deteve ou conteve nenhuma da ambição do jovem realizador que de seguida se
aventurou por um projeto infinitamente mais complexo e desafiador, decidindo-se
a adaptar The Magnificent Ambersons
de Booth Tarkington ao cinema, com o uso dos mais inovadores milagres técnicos
imagináveis e um olhar sobre a expressividade da arte do cinema que poucos
realizadores alguma vez alcançaram. O projeto final poderia ter sido uma obra
que eclipsaria eternamente a luminosidade quase lendária do génio do seu
primeiro filme mas, devido às horrendas interferências da RKO, e à ausência de
Welles durante o final do processo de montagem devido a filmagens que o
realizador estava a fazer no Brasil, o filme foi vítima de um dos maiores
crimes da história do cinema. A obra épica em tema, ambição e simples audácia,
foi esquartejada pela produtora, cenas foram refilmadas e a segunda metade do
filme foi deixada em ruínas. É um absoluto milagre que mesmo assim, The Magnificent Ambersons seja um dos
mais fascinantes filmes a sair de Hollywood na década de 40, sendo que os
grandes fãs de Wellles anseiam, desejosos, o dia em que por qualquer força
divina ou magia sobrenatural, a versão original do filme aparecerá. Até lá
temos de nos contentar com a versão que temos ao nosso dispor e, apesar de
limitações, continua a ser uma obra de inequívoco génio.
O filme retrata a
história da família mais rica de Indianapolis aquando da viragem do século
passado, focando-se principalmente em George Amberson Minafer (Tim Holt), e
recontando a queda em desgraça da família com o avançar do tempo e a colisão da
sua anacrónica existência de aristocratas com a modernidade do século XX. O
filme é principalmente sobre o implacável processo da passagem do tempo,
mostrando numa família, uma visão de um mundo em morte e nascimento, sendo que
também o filme em si é uma espécie de impiedoso avançar do cinema, recusando os
tradicionalismos impostos pelo regime dos estúdios e indo na direção de uma
nova perceção espacial e de uma apuração mercurial da montagem como elemento
essencial do cinema. O filme apresenta, devido tanto à sua estrutura narrativa
como às interferências da RKO, três atos de distinto desenvolvimento. Primeiro
temos a introdução das personagens e do seu mundo que decorre, mais ou menos,
até um marcante funeral, aqui a interferência da RKO ainda não se fez sentir na
totalidade, sendo que, apesar disso, um dos mais magníficos exemplos do génio
de Welles, um plano sequência que viajava pelo extenso cenário em fluido
movimento foi esquartejado pelo estúdio. Na segunda secção, o tom torna-se
decididamente mais negro, e os cortes da RKO começam a fazer-se notar muito
mais. O terceiro segmento, a parte do filme que se foca maioritariamente no
destino do protagonista e resolução das vidas miseráveis de suas personagens, é
uma catástrofe horrenda, incoerente, e visivelmente recortada pela sanguinária
mão do estúdio. Nesta terceira fase, algo ainda mais demoníaco aconteceu ao
filme, sendo que foram filmadas novas cenas, facilmente reconhecidas pela sua
convencionalidade e falta de profundidade focal, entre elas o horrendo e
incrivelmente inapropriado final que concede uma luz de esperança ao filme. No
total, cerca de 50 minutos do filme despareceram, sendo que, segundo as informações
a que temos dispor hoje em dia, a maioria do material foi destruído pelos
estúdios.
Apesar de toda esta
tragédia, o filme é ainda uma obra de ambição monumental, sendo que,
especialmente no primeiro segmento de narrativa, o génio de Welles é claro,
especialmente na miraculosa introdução. A relação entre som e imagem, e entre
imagens sequenciais, foi poucas vezes tão magistralmente exato e brincalhão
como na introdução do filme, narrada pela voz de Welles, que aqui nunca mostra
sua face, apenas usando a sua voz de narrador omnipresente. As imagens ora
respondem em ritmo preciso à narração, ora parecem criar relações entre si, que
a contrariam. Em momentos de cristalino uso do cinema na sua mais requintadamente
pura forma, Welles introduz-nos a um mundo, uma coleção de complexas
personagens e, talvez o mais crucial, seu tom e pensamento. Também em
sequências em que a mão de Welles ainda se sente, temos montagens de imenso
poder, como quando somos expostos a uma morte a partir do corte repentino para
um funeral num só plano na perspetiva do morto, ou numa montagem que expõe o
progresso e a passagem do tempo numa sequencialidade de pontos de vista em
movimento de uma rua.
Também o seu som,
mais manifestamente chamativo na sua narração, é imensamente crucial, tecendo
uma teia de sonoridades complexas em que a relação som e imagem é tão fulcral
como a relação dos sons entre si, Numa mistura de verismo e expressionismo,
Welles insistia em conseguir o som dos atores a falar num exterior frio de modo
a conseguir a atmosfera palpável que ansiava, ao mesmo tempo que noutras cenas
manipula o som de modo a este se tornar quase impressionista na sua condição de
melódica abstração.
Mas, mais que a
montagem ou o som, cuja interferência da RKO realmente prejudica, o modo como
Welles aqui filma o espaço não tem paralelos na história do cinema até então. Parte
da sua ambição no que diz respeito à inovação da representação do espaço em
cinema, manifestou-se na opulência sem igual dos cenários da casa, tendo sido
criado um gigantesco edifício dentro dos estúdios, completamente interligado e
com três andares, de modo a que a câmara intrépida de Welles se pudesse ir
movimentando de sala para sala e mesmo de andar para andar sem interrupções ou
forçosas simplificações. Para quem aprecia fotografia complexa e o movimento
primoroso de uma câmara, este filme é quase orgástico, sendo que a sequência de
um baile que enche grande parte do primeiro terço do filme é a sua mais
gloriosa celebração de seu espaço. Mesmo quando estáticas, as composições de
Welles são magistrais e paralisantes na sua pura magnificência. Os jogos de
sombra e luz conjugam-se com uma profundida focal imensa, tornando a casa numa
caverna de detalhes sobrepostos e possibilitando algumas das melhores
composições de atores na história do cinema. Uma imagem consegue ter a mesma
densidade que um filme completo, tal é a sua precisão e maravilha, e tal é o
entendimento de Welles do poder da imagem no cinema, cristalizando em momentos
congelados um nível de detalhe temático, narrativo e psicológico, que muitos
realizadores nunca conseguiram alcançar na sua filmografia completa.
Mas o filme não se trata
apenas num dos mais gloriosos exercícios de técnica alguma vez concebidos,
sendo que também em si contém uma visão implacavelmente cruel e direta do
processo pelo qual culturas, modos de vida e vidas são perdidas pelo avançar
implacável do tempo. Parte da complexidade do filme devém do modo como Welles
não julga as suas personagens humanas em demasia, apenas mostrando uma crítica
direta a George, o que permite ao filme uma certa ambiguidade que fascina tanto
como frustrará alguns. O mundo que o realizador retrata é um de continuo
movimento, de continuo avançar e inovação, enquanto os Amberson se encontram
como que congelados na sua caverna de madeira torneada e luxo de um passado
glorioso. O filme é como que uma colisão destrutiva entre a nostalgia romântica
do passado com a inovação do progresso futuro, sendo que o passado é
completamente destruída e esquecido face ao progresso, provocando um infindável
sofrimento aos humanos que nele ficam presos, algo que é mostrado com uma certa
compaixão e piedade, que simultaneamente parece contrariar e complicar a
ideologia do filme. Há algo de dissecação da imagem de uma América como nação
de progresso e inovação que honra e glorifica o seu passado, do mesmo modo que
em Kane, Welles dissecou essa imagem
tão americana do milionário que sobe da pobreza ao poder e glória. Na oeuvre deste autor, tais sonhos simplificados
são complicados, e tais imagens de luminosa esperança são pervertidas em
estilhaçadas criações de miséria e constante questionamento.
Há uma exuberância
nessa dissecação que em momentos a torna quase onírica, e em parte isso é uma
consequência do trabalho de ator que o filme testemunha, sendo que o elenco
varia grandemente entre o meramente sólido em Tim Holt ao simplesmente divino
em Agnes Moorehead. Apesar da sua complexidade, o retrato que o filme faz é um
que não teme o grotesco ou o desconforto e isso nunca é mais notório que em
Moorehead, aqui tornada uma harpia sofredora, uma presença histérica que oscila
entre a explosão emocional estridente e um silencia fortemente teatral, gelado
e melancólico. O seu trabalho é de um excesso quase inconcebível, como se na
sua pessoa a mansão dos Amberson acha-se veículo humano para sua expressão, tal
é a monumentalidade da sua criação e presença. Tanto ela, como os restantes
atores trabalham num balanço imensamente arriscado entre esse registo quase
operático e a natureza humana e trágica da narrativa, sendo que nos melhores momentos,
os atores são como que uma extensão natural da mise-en-scène do realizador. Que
o estúdio ordenou que uma das cenas mais fortes de Moorehead fosse refilmada
depois de audiências de teste se rirem da sua performance, é apenas mais uma
marca na lista de crimes contra arte que a RKO executou sobre este filme.
Depois de toda esta
elegíaca celebração de The Magnificent
Ambersons, eu gostaria de mencionar uma cena de um filme que,
aparentemente, nada terá a ver com a segunda longa-metragem de Orson Welles. Em
Shakespeare in Love, há uma cena em
que um desgostoso bardo atira a sua última criação, uma peça completa, para as
chamas, sendo que a câmara se estanca e observa os momentos em que as palavras
se começam a desvanecer no fogo. Nesse momento, quem adorar a obra do
dramaturgo renascentista, certamente estremecerá, imaginando tal perda do que,
possivelmente, seria outra das suas obras geniais. Ver The Magnificent Ambersons é esse momento estendido por 88 minutos,
só que aqui, para maior castigo da audiência, temos a oportunidade de
vislumbrar a insinuação de génio que a obra destruída continha.
Penso que já bastam
de lamentações e melodramáticas acusações contra a RKO, o facto é que,
impendentemente do seu estado ruinoso, o segundo filme do enfant terrible
de Hollywood é uma obra essencial para qualquer cinéfilo, sendo que, para fás
de Orson Welles, será uma experiência quase religiosa, tanto na sua divina e
radical ambição, como na sua sacrílega e incompleta ruína.
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