sábado, 10 de outubro de 2015

THE MAGNIFICENT AMBERSONS (1942) de Orson Welles


 Apesar de em Citizen Kane, Orson Welles ter criado um dos mais magníficos filmes alguma vez concebidos em Hollywood, assim como uma espécie de catálogo em forma de filme dos variados avanços cinematográficos que se tinham desenvolvido na história do meio, o seu trabalho não obteve na sua época o mesmo tipo de culto que tantos cinéfilos por ele praticam hoje em dia. Isso não deteve ou conteve nenhuma da ambição do jovem realizador que de seguida se aventurou por um projeto infinitamente mais complexo e desafiador, decidindo-se a adaptar The Magnificent Ambersons de Booth Tarkington ao cinema, com o uso dos mais inovadores milagres técnicos imagináveis e um olhar sobre a expressividade da arte do cinema que poucos realizadores alguma vez alcançaram. O projeto final poderia ter sido uma obra que eclipsaria eternamente a luminosidade quase lendária do génio do seu primeiro filme mas, devido às horrendas interferências da RKO, e à ausência de Welles durante o final do processo de montagem devido a filmagens que o realizador estava a fazer no Brasil, o filme foi vítima de um dos maiores crimes da história do cinema. A obra épica em tema, ambição e simples audácia, foi esquartejada pela produtora, cenas foram refilmadas e a segunda metade do filme foi deixada em ruínas. É um absoluto milagre que mesmo assim, The Magnificent Ambersons seja um dos mais fascinantes filmes a sair de Hollywood na década de 40, sendo que os grandes fãs de Wellles anseiam, desejosos, o dia em que por qualquer força divina ou magia sobrenatural, a versão original do filme aparecerá. Até lá temos de nos contentar com a versão que temos ao nosso dispor e, apesar de limitações, continua a ser uma obra de inequívoco génio.

 O filme retrata a história da família mais rica de Indianapolis aquando da viragem do século passado, focando-se principalmente em George Amberson Minafer (Tim Holt), e recontando a queda em desgraça da família com o avançar do tempo e a colisão da sua anacrónica existência de aristocratas com a modernidade do século XX. O filme é principalmente sobre o implacável processo da passagem do tempo, mostrando numa família, uma visão de um mundo em morte e nascimento, sendo que também o filme em si é uma espécie de impiedoso avançar do cinema, recusando os tradicionalismos impostos pelo regime dos estúdios e indo na direção de uma nova perceção espacial e de uma apuração mercurial da montagem como elemento essencial do cinema. O filme apresenta, devido tanto à sua estrutura narrativa como às interferências da RKO, três atos de distinto desenvolvimento. Primeiro temos a introdução das personagens e do seu mundo que decorre, mais ou menos, até um marcante funeral, aqui a interferência da RKO ainda não se fez sentir na totalidade, sendo que, apesar disso, um dos mais magníficos exemplos do génio de Welles, um plano sequência que viajava pelo extenso cenário em fluido movimento foi esquartejado pelo estúdio. Na segunda secção, o tom torna-se decididamente mais negro, e os cortes da RKO começam a fazer-se notar muito mais. O terceiro segmento, a parte do filme que se foca maioritariamente no destino do protagonista e resolução das vidas miseráveis de suas personagens, é uma catástrofe horrenda, incoerente, e visivelmente recortada pela sanguinária mão do estúdio. Nesta terceira fase, algo ainda mais demoníaco aconteceu ao filme, sendo que foram filmadas novas cenas, facilmente reconhecidas pela sua convencionalidade e falta de profundidade focal, entre elas o horrendo e incrivelmente inapropriado final que concede uma luz de esperança ao filme. No total, cerca de 50 minutos do filme despareceram, sendo que, segundo as informações a que temos dispor hoje em dia, a maioria do material foi destruído pelos estúdios.

  Apesar de toda esta tragédia, o filme é ainda uma obra de ambição monumental, sendo que, especialmente no primeiro segmento de narrativa, o génio de Welles é claro, especialmente na miraculosa introdução. A relação entre som e imagem, e entre imagens sequenciais, foi poucas vezes tão magistralmente exato e brincalhão como na introdução do filme, narrada pela voz de Welles, que aqui nunca mostra sua face, apenas usando a sua voz de narrador omnipresente. As imagens ora respondem em ritmo preciso à narração, ora parecem criar relações entre si, que a contrariam. Em momentos de cristalino uso do cinema na sua mais requintadamente pura forma, Welles introduz-nos a um mundo, uma coleção de complexas personagens e, talvez o mais crucial, seu tom e pensamento. Também em sequências em que a mão de Welles ainda se sente, temos montagens de imenso poder, como quando somos expostos a uma morte a partir do corte repentino para um funeral num só plano na perspetiva do morto, ou numa montagem que expõe o progresso e a passagem do tempo numa sequencialidade de pontos de vista em movimento de uma rua.

 Também o seu som, mais manifestamente chamativo na sua narração, é imensamente crucial, tecendo uma teia de sonoridades complexas em que a relação som e imagem é tão fulcral como a relação dos sons entre si, Numa mistura de verismo e expressionismo, Welles insistia em conseguir o som dos atores a falar num exterior frio de modo a conseguir a atmosfera palpável que ansiava, ao mesmo tempo que noutras cenas manipula o som de modo a este se tornar quase impressionista na sua condição de melódica abstração.

 Mas, mais que a montagem ou o som, cuja interferência da RKO realmente prejudica, o modo como Welles aqui filma o espaço não tem paralelos na história do cinema até então. Parte da sua ambição no que diz respeito à inovação da representação do espaço em cinema, manifestou-se na opulência sem igual dos cenários da casa, tendo sido criado um gigantesco edifício dentro dos estúdios, completamente interligado e com três andares, de modo a que a câmara intrépida de Welles se pudesse ir movimentando de sala para sala e mesmo de andar para andar sem interrupções ou forçosas simplificações. Para quem aprecia fotografia complexa e o movimento primoroso de uma câmara, este filme é quase orgástico, sendo que a sequência de um baile que enche grande parte do primeiro terço do filme é a sua mais gloriosa celebração de seu espaço. Mesmo quando estáticas, as composições de Welles são magistrais e paralisantes na sua pura magnificência. Os jogos de sombra e luz conjugam-se com uma profundida focal imensa, tornando a casa numa caverna de detalhes sobrepostos e possibilitando algumas das melhores composições de atores na história do cinema. Uma imagem consegue ter a mesma densidade que um filme completo, tal é a sua precisão e maravilha, e tal é o entendimento de Welles do poder da imagem no cinema, cristalizando em momentos congelados um nível de detalhe temático, narrativo e psicológico, que muitos realizadores nunca conseguiram alcançar na sua filmografia completa.

 Mas o filme não se trata apenas num dos mais gloriosos exercícios de técnica alguma vez concebidos, sendo que também em si contém uma visão implacavelmente cruel e direta do processo pelo qual culturas, modos de vida e vidas são perdidas pelo avançar implacável do tempo. Parte da complexidade do filme devém do modo como Welles não julga as suas personagens humanas em demasia, apenas mostrando uma crítica direta a George, o que permite ao filme uma certa ambiguidade que fascina tanto como frustrará alguns. O mundo que o realizador retrata é um de continuo movimento, de continuo avançar e inovação, enquanto os Amberson se encontram como que congelados na sua caverna de madeira torneada e luxo de um passado glorioso. O filme é como que uma colisão destrutiva entre a nostalgia romântica do passado com a inovação do progresso futuro, sendo que o passado é completamente destruída e esquecido face ao progresso, provocando um infindável sofrimento aos humanos que nele ficam presos, algo que é mostrado com uma certa compaixão e piedade, que simultaneamente parece contrariar e complicar a ideologia do filme. Há algo de dissecação da imagem de uma América como nação de progresso e inovação que honra e glorifica o seu passado, do mesmo modo que em Kane, Welles dissecou essa imagem tão americana do milionário que sobe da pobreza ao poder e glória. Na oeuvre deste autor, tais sonhos simplificados são complicados, e tais imagens de luminosa esperança são pervertidas em estilhaçadas criações de miséria e constante questionamento.

  Há uma exuberância nessa dissecação que em momentos a torna quase onírica, e em parte isso é uma consequência do trabalho de ator que o filme testemunha, sendo que o elenco varia grandemente entre o meramente sólido em Tim Holt ao simplesmente divino em Agnes Moorehead. Apesar da sua complexidade, o retrato que o filme faz é um que não teme o grotesco ou o desconforto e isso nunca é mais notório que em Moorehead, aqui tornada uma harpia sofredora, uma presença histérica que oscila entre a explosão emocional estridente e um silencia fortemente teatral, gelado e melancólico. O seu trabalho é de um excesso quase inconcebível, como se na sua pessoa a mansão dos Amberson acha-se veículo humano para sua expressão, tal é a monumentalidade da sua criação e presença. Tanto ela, como os restantes atores trabalham num balanço imensamente arriscado entre esse registo quase operático e a natureza humana e trágica da narrativa, sendo que nos melhores momentos, os atores são como que uma extensão natural da mise-en-scène do realizador. Que o estúdio ordenou que uma das cenas mais fortes de Moorehead fosse refilmada depois de audiências de teste se rirem da sua performance, é apenas mais uma marca na lista de crimes contra arte que a RKO executou sobre este filme.

 Depois de toda esta elegíaca celebração de The Magnificent Ambersons, eu gostaria de mencionar uma cena de um filme que, aparentemente, nada terá a ver com a segunda longa-metragem de Orson Welles. Em Shakespeare in Love, há uma cena em que um desgostoso bardo atira a sua última criação, uma peça completa, para as chamas, sendo que a câmara se estanca e observa os momentos em que as palavras se começam a desvanecer no fogo. Nesse momento, quem adorar a obra do dramaturgo renascentista, certamente estremecerá, imaginando tal perda do que, possivelmente, seria outra das suas obras geniais. Ver The Magnificent Ambersons é esse momento estendido por 88 minutos, só que aqui, para maior castigo da audiência, temos a oportunidade de vislumbrar a insinuação de génio que a obra destruída continha.

 Penso que já bastam de lamentações e melodramáticas acusações contra a RKO, o facto é que, impendentemente do seu estado ruinoso, o segundo filme do enfant terrible de Hollywood é uma obra essencial para qualquer cinéfilo, sendo que, para fás de Orson Welles, será uma experiência quase religiosa, tanto na sua divina e radical ambição, como na sua sacrílega e incompleta ruína.

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