Em Anna Karenina, o quinto filme de Joe
Wright, temos o que é provavelmente o mais divisivo filme do realizador. Mas a
disparidade de opiniões não devém certamente de banalidade ou falta de ambição,
pois este é um filme que inexoravelmente explode em ambição criativa, propondo
uma corajosa visão de um dos clássicos da literatura ocidental que mais tem
sido adaptado para os cinemas ao longo da história do meio. O esqueleto da
obra-prima de Leo Tolstoi ainda se encontra na adaptação de Wright, escrita por
Tom Stoppard, mas o que aqui temos é uma interpretação do autor sobre o
material textual que desafia o tipo de adaptação passiva que estamos habituados
a ver no panorama do cinema contemporâneo. Concordo completamente com a visão
de Wright sobre o texto de Tolstoi? Não. É o filme uma prova da hubris de um
realizador enlouquecido pela sua criatividade formal? Talvez. É Anna Karenina um dos mais
impressionantes e delirantes espetáculos cinemáticos que tenho tido o prazer de
ver nos últimos anos? Definitivamente sim.
O filme segue o
enredo básico da sua origem literária, dando uma enorme atenção à narrativa de
Levin (Domnhall Gleeson), uma figura quase autobiográfica para Tolstói. Penso
que mais nenhuma adaptação na língua inglesa deu tanta relevância a esta
narrativa paralela à da protagonista nominal da obra, aqui interpretada por
Keira Knightley. Estruturalmente isto é extremamente arriscado e não paga
grandes dividendos, sendo que toda a energia ebuliente da história de Anna vai
morrer na maioria das cenas de Levin, nomeadamente depois de abandonar o teatro
do filme.
Quando falo de
teatro, não estou a ser poético ou metafórico pois o filme passa-se
maioritariamente no interior de um teatro, onde todo o espaço é gloriosamente
aproveitado e utilizado como um mundo de estratificações codificadas. O desenho
de cenografia de Sarah Greenwood é uma maravilha de proporções monumentais,
usando técnicas classicamente teatrais na construção do ambiente que está num
constante estado de transição. Em séculos passados, grande parte do prazer do
teatro provinha da sua opulência e na magia conjurada pelos cenários em
mudança, sendo que aqui Wright e Greenwood parecem negar na ideia da transição
cenográfica e aplicá-la de um modo ensandecido e glorioso. Tal como os atores
se movimentam numa constante coreografia balética, os cenários também o fazem e
com eles a câmara de Seamus McGarvey, cujos movimentos são tão gloriosos como
os mais ambiciosos planos de Expiação,
mas com uma complexidade caótica acrescentada. Como um espetáculo de pura beleza
e técnica cenográfica, é difícil encontrar melhor filme que este.
Mas se o cenário se
baseia em volta do teatro do século XIX, o desenho dos figurinos de Jacqueline Durran
inspira-se numa base bastante distinta. A sociedade russa dissecada por Tolstoi
na sua obra, era obcecada com França, sendo que a aristocracia falaria mais
francês que russo, e isso é espelhado do modo mais excessivo imaginável nos
figurinos que de subtil nada têm. Numa mistura da moda da década de 70 do
século XX com a moda francesa dos anos 50 do século XX, Anna Karenina apresenta um elenco vestido com uma dos mais
gloriosos guarda-roupas dos últimos anos, com um nível de opulência e elegância
que, para alguém com o meu tipo de interesses, é simplesmente extasiante.
Knightley, em particular, é uma Anna vestida com a elegância francesa da Dior
aquando do New Look, coberta de joias da Chanel, com o cabelo em constante
turbilhão de sedutores caracóis e uma emoção que, apesar de manienta e teatral
como todo o filme, pulsa de uma intensidade por vezes aterradora.
A acrescentar a este
glorioso conjunto de cenografia, fotografia, figurinos, caracterização e
movimento coreografado temos uma sonoridade luxuriante. A banda-sonora de Dario
Marianelli é uma louca orgia de sons tipicamente russos com o seu romantismo
usual. O ritmo estabelecido pela música é essencial para a velocidade precisa
que o filme impõe à narrativa de Tolstoi, e aí também os efeitos sonoros,
muitas vezes exagerados e imensamente expressivos, são cruciais. A glória
máxima de toda esta construção formal nunca é melhor experienciado que em sequências
como o baile em que Anna dança com Vronsky (Aaron Taylor-Johnson), seu amante e
responsável pelo despoletar da sua espiral cataclísmica, pela primeira vez. Não
é uma sequência subtil (tal palavra não tem lugar neste filme) mas é
apaixonante, seguindo Anna e seu futuro amante numa dança que mistura uma valsa
clássica com movimentos declarativamente contemporâneos e alienantes. À sua
volta, os restantes pares apenas se começam a movimentar depois do par principal
por eles passar. A câmara, como que embriagada pela visão dos dois futuros
amantes, vai-se aproximando deles os dois, acabando por subir com Knightley
quando o seu par a eleva no ar. Quando com ela descemos e nos afastamos, o
casal está sozinho no espaço. A luz muda e eles dançam num foco luminoso por
entre a escuridão, num momento reminiscente de dança semelhante em Orgulho e Preconceito, não fosse que aqui o estilo é elevado a um nível quase
chocante no modo como é desavergonhadamente vistoso e apaixonado pela sua
própria beleza.
Esse tipo de paixão,
explodindo em excesso cinemático é bastante comum em todo o filme, por vezes
resultando em cenas menos opulentas mas não por isso menos prazerosas. Os
momentos de sexo entre Anna e Vronsky são de particular realce e contêm em si a
melhor utilização que o filme tem para Taylor-Johnson, cuja atraente superfície
é sua única salvação. Ele é dos piores e mais desinteressantes Vronskys já
capturados por uma câmara, se bem que como adereço desnudo Wright consegue nele
encontrar algo que se aproveite. O resto do elenco, em contraste, é bastante sólido,
a maioria dos atores, percebendo as necessidades estilísticas do filme e nunca
impondo nenhum naturalismo excessivo e indesejado nos procedimentos. Já elogiei
o trabalho estudadamente artificial mas emocionalmente explosivo de Knightley,
mas falta-me referir o trabalho absolutamente perfeito de Jude Law no papel de
Karenin, o marido de Anna. Esse papel já foi tantas vezes vilificado ao longo
da história do cinema que a delicada e entristecida presença de Law é uma
revelação estonteante. Há uma palpável benevolência e valor no seu Karenin,
fazendo de suas contidas indignações e rasgos de crueldade momentos não de
malevolência simplista, mas de dolorosa e rígida humanidade.
Taylor-Johnson não é,
contudo, o único problema que eu tenho com o filme. Voltando ao texto do filme,
tenho que reforçar quão desastrosa é a decisão de investir tanto tempo e
relevância à narrativa de Levin, sendo o que resulta em literatura não necessariamente
eficaz numa estrutura cinemática. Também as constantes utilizações de imagética
de comboios, se bem que presente na prosa de Tolstoi, parece-me forçosa de mais
e um pouco descoordenada com o resto da dança cinemática orquestrada pelo
realizador, a não ser numa sequência específica, onde num reflexo o comboio
serve como que pontuação expressiva no ritmo ensandecido do momento. A escolha
de, ocasionalmente, sair do edifício teatral é outro problema de Anna Karenina. Em tais cenas, Wright
parece começar a perder-se por entre a tempestade de ideias formais que aqui
desenvolve. O plano que encerra o filme e conjuga as duas realidades presentes
no filme, o exterior “real” e o artifício teatral, é de particular confusão
ideológica.
Tudo isto resulta em
algo pelo qual muitos criticaram o filme, que é o modo como o teatro parece ser
um modo de Wright criticar a sociedade russa mas é, ao mesmo tempo, o mais excitante
aspeto do filme. Não sou um particular apoiante de tal crítica pois penso que
existe uma precisa modulação do ambiente teatral que, pelo fim do filme, se
tornou claustrofóbico e opressivo nos seus espaços fechados e desenho
sufocante, onde a própria violência cromática das paredes azuis do cenário de
um hotel é suficiente para causar desconforto na audiência. Para além disso,
algo pode ser belo, prazeroso e delirante, e ao mesmo tempo ser destrutivo,
cruel e injusto, não fosse esta a história de uma mulher que, para além de ser
destruída por uma sociedade, também é vítima do poder destrutivo das suas
paixões e do amor em si.
Como uma adaptação
fiel do texto, ideias e intensões de Tolstoi, o filme parece-me ser uma
catástrofe apoplética, mas nunca me parece estar a propor-se a tal julgamento.
O que aqui temos é mais interpretação que adaptação e penso que por isso mesmo
é de um incalculável valor. Há uma coragem na abordagem e ousadia de Wright
que, apesar de por vezes resultar em alguns aspetos menos positivos, tem como
final resultado a mais fascinante versão de Anna
Karenina que alguma vez vi em cinema. Mesmo quem deteste as ideias de
Wright ou o artifício maniento aplicado a tudo o que a vista alcança, penso ser
inegável que como básica experiência sensorial o filme é um triunfo que convida
as suas audiências a simplesmente se deixarem embriagar pela sua assombrosa
beleza.
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