Expiação, a adaptação de Joe Wright do célebre livro de Ian McEwan,
é aquilo que usualmente denominamos de romance trágico. Normalmente, eu diria,
que todos os mais bem-sucedidos romances têm um toque de tragédia, sendo que
mesmo quando deixamos os amantes juntos e felizes no final de uma obra, há
sempre a sombra do tempo e da morte que se abate sobre o seu amor. Quando a
tragédia encerra o romance na história, como na opressivamente célebre tragédia
de Shakespeare sobre Romeu e sua Julieta, temos, pelo menos, algo belo
eternamente preservado, sendo que os amantes morrem na plenitude da sua paixão.
Neste filme há algo que parece exceder mesmo a pontuação trágica de romances
como esse que referi e é algo que se evidencia especialmente no seu final,
sendo que é impossível falar deste filme sem referir seu fim (quem temer spoilers não deverá ler
este texto). Em Expiação,
temos uma elegia ao poder da ficção em si, e aí contido temos um romance, cuja
verdadeira tragédia, mais que a morte, parece ser a de não ter a manhã de
felicidade que marca a história de amor dos amantes de Verona, aqui há algo de
absolutamente incompleto, apenas curado pela imaginação piedosa do autor, tanto
do filme como a autora dentro da própria narrativa.
A narrativa em si
gira à volta de três principais figuras, Robbie (James McAvoy), um homem
falsamente acusado de um crime que não cometeu por Briony Tallis (Saoirse
Ronan, Romola Garai e Vanessa Redgrave), uma jovem aristocrática e imaginativa
cuja irmã Cecilia (Keira Knightley) se tinha acabado de envolver com Robbie na
noite em que os eventos decisivos para toda a narrativa ocorrem. Não é só o
protagonismo que é tripartido, sendo que o filme está rigidamente separado em
três secções bastante distintas com uma coda que encerra o filme e onde nos
apercebemos que toda a história que fomos acompanhando é em si uma
ficcionalização da autora protagonista, aqui concretizada sob o olhar romântico
e exuberante de Wright. De certo modo temos aqui uma dose de ficção que se
revolve sobre si mesma numa espécie de celebração do poder da imaginação, assim
como uma mostra do seu horrendo poder destrutivo.
No seu âmago, mais que uma história de amor,
Expiação é uma exploração da estratificação social ossificada numa Inglaterra
de outrora, e isto nunca é mais percetível que na primeira secção do filme,
passada na casa da família Tallis durante um dia e noite de Verão durante o
período que antecedeu a segunda Guerra Mundial. Robbie é o filho de uma das
cozinheiras da família, e sua educação foi assegurada pelo nunca visto
patriarca num gesto de benevolência aristocrática. Apesar da acusação de Briony
que traça o seu destino, uma perversa aura de elitismo consome todo o enredo,
como se o verdadeiro crime de Robbie não fosse a agressão sexual com que é
acusado mas a ousadia de tocar ou almejar a algo que transpõe os limites
sociais, que apenas a caridade condescendente das classes altas se pode atrever
a traspor. É aqui também que Wright se permite ser mais desenfreadamente
exuberante na sua abordagem, movendo a câmara em delirante movimento pelos
magníficos cenários da casa, e filmando tudo com uma exposição elevada que tem
a consequência de tornar a imagem quase que impressionista na sua luminosidade
e cor ao mesmo tempo que opressivamente quente, como que transpirando com o
calor desse dia de Verão. A música de Dario Marianelli, que vai enfatizando as
proporções quase divinas da escrita de Briony ao usar uma máquina de escrever
como instrumento, mescla-se com este movimento e faz de Briony algo de
ameaçador e estranhamente puro, como um fantasma vestido de branco que assombra
todos os procedimentos do filme. É na sua observação e nas suas palavras que a
tragédia é despoletada e Wright não consegue ser mais óbvio no modo como isto
salienta, especialmente em sequências onde cenas são repetidas de dois pontos
de vista separados.
No segundo capítulo
de desenvolvimento narrativo, temos Robbie como claro protagonista, aqui como
um soldado em França durante a 2ª Grande Guerra. Sua figura é a de um herói
trágico que tenta regressar a casa, como que se movendo numa odisseia pelos
horrores da Europa destruída em direção a Dunkirk onde se situavam os navios
para regressar a Inglaterra. Se a exuberância romântica de Wright tem o seu
mais intenso nível de expressão no capítulo anterior, aqui é o seu dramatismo e
simbolismo melancólico. De uma aguarela luminosa, o visual do filme passa a ser
o de paisagens cinzentas e desoladas, onde momentos fugazes de beleza, como um
campo de papoilas excessivamente simbólicas, apenas servem para estabelecer um
desesperante contraste com o horror do resto da narrativa. É aqui que Wright
coloca o seu mais famoso feito técnico, ao filmar toda a praia de Dunkirk num
plano sequência que substitui os movimentos desenfreados e rapidamente editados
da primeira parte, com uma vagarosa precisão tão fatalista no seu movimento
como a história no seu conteúdo. É durante flashbacks que aqui aparecem, que o
lado mais afetado e nostálgico de Expiação começa a emergir, assim como a sua
curiosa frieza, revelando um encontro que deveria explodir em emoção, numa
manienta troca de palavras entre duas figuras tão reprimidas nas suas emoções
como rígidas na sua apresentação e existência.
Longe da nostalgia de
um Verão idílico mas perverso, e da tragédia dramaticamente expressiva que
marcam os dois primeiros terços do filme, a terceira porção narrativa
posiciona-nos, de novo, com Briony como nossa protagonista. Aqui ela é uma enfermeira
sediada em Londres durante o auge da Guerra, atormentada pelas consequências
que a sua mentira despoletou. O movimento e ritmo da primeira porção voltam a
se manifestar aqui, como que seguindo Briony pela sua interpretação de si
própria, mas ao invés de beleza e euforia, aqui apenas dor e espetáculos de sofrimento
são revelados pelo estilo. Dois momentos de pausa, um deles marcado por um
soldado francês moribundo (Jeremie Renier) e o outro por um encontro entre
Briony e os enfurecidos amantes que protagonizam o romance central, são de
referência, não pela sua calma ou serenidade mas pelo modo como estilhaçam
qualquer inocência e quase que cospem a culpa de Briony na sua face. Se outrora
Wright retratou Briony como uma presença quase divina, aqui ela é quase
criminosa e a audiência quase é convidada a participar na sua martirização.
Nestes três capítulos
regista-se uma opulência que apenas se pode chamar de simples, ou subtil,
quando comparada com a espetacularidade teatral de Anna Karenina na filmografia
de Wright. O design, tanto como o texto, contribui para a noção de três secções
separadas e de vários níveis de ficção. A casa dos Tallis é primeiro avistada
sob a forma de uma casa de bonecas, um brinquedo onde as crianças são o deuses
do mundo, e os seus interiores quase que reforçam esta artificialidade latente
ao brinquedo. Há uma estratificação absoluta no próprio edifício, onde as áreas
de passagem são opressivas e em madeira escura, onde os quartos e áreas de
repouso são explosões de padrões pálidos que quase ameaçam o kitsch, e áreas da
criadagem, onde as paredes são pintadas de verde, quase lembrando hospitais na
sua simplicidade contrastante. As paisagens de guerra são como paisagens
apocalípticas pintadas com uma delicadeza que desafia a sua destruição,
tornando o espaço físico numa extensão da desolação humana, completamente
removido do kitsch aristocrático, e da simplicidade da reprodução estudada dos
ambientes exatos do hospital da terceira secção narrativa. Mas, para além dos
magníficos cenários de Sarah Greenwood e da fotografia de Seamus McGarvey,
também os figurinos de Jacqueline Durran são essenciais, criando um mundo de
romantismo extremo, que desafia o próprio verismo histórico com criações como o
vestido verde tão celebremente usado por Knightley e cuja delicadeza é obtida a
partir de cortes a laser absolutamente impossíveis na época. Com o trabalho de
Durran, Cecilia é uma constante presença saída de uma Vogue da época, Robbie um
herói romântico caído em tragédia e Briony ora é uma visão de hipócrita pureza
na infância, ora é uma mulher congelada no tempo do seu crime, em que os únicos
traços de cor forte, como uma capa do uniforme de enfermeira, apenas lhe
conferem a imagem de um anjo de morte marcado pelo vermelho sanguíneo.
É claro que também o
elenco é de louvar, sendo esta, talvez, a melhor coleção de atores que Wright
já reuniu. Os três protagonistas são particularmente bem interpretados, havendo
diferenciações suficientes nas suas abordagens para não tornarem inverosímil a
revelação de falsidade que marca o final do filme. Keira Knightley é de
particular relevo, quando falamos dos amantes, pontuando a sua elegância de
estrela de cinema e carnalidade subliminal, com momentos de feiura e snobismo
irrevogável, como se num retrato glamoroso e elegíaco de uma irmã, algumas impressões
de elitismo repugnante permanecessem. Mas é no papel tripartido de Briony que Expiação tem o seu mais valoroso
sucesso, obtendo em Ronan, Garai e Redgrave, três visões de uma mulher tão
distintas como semelhantes. Ronan é uma visão quase diabólica, injetada com a
teatralidade estilística da sua parte da narrativa, Garai é rígida como que
imobilizada pela culpa e sempre pronta à martirização que o texto impõe sobre a
sua pessoa e, finalmente, Redgrave é avassaladora, despojada das escolhas
estilísticas das suas antecessoras, ela transmite a corrosão da culpa assim
como o crescimento pessoal em apenas alguns momentos finais, transmitindo, no
seu olhar, toda uma vida de arrependimentos.
Na final revelação
que o que até agora vimos é uma ficcionalização feita por Briony sobre sua
vida, Wright e Christopher Hampton, que adaptou o texto, tornam o epílogo numa
entrevista televisiva, direta e sem grandes devaneios formais. Os amantes nunca
chegaram a viver unidos depois da noite fatídica, sendo que ambos morreram
antes de tal acontecer, e assim a autora culpada da sua separação criou um
final feliz, e tudo o que vimos foi a sua história baseada na realidade por ela
percecionada e investigada. Uma história escrita, contada e depois filtrada
pelo ouvinte, aqui Wright, que tornou o texto introspetivo da prosa de McEwan
num exercício de observação romântica e estilizada, acrescentando níveis de
ficção que apenas parecem reforçar o papel que a imaginação e criar de
historias têm nesta narrativa.
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