Tenho que confessar
que a Revolução Francesa é um tema que tem, há anos, capturado o meu interesse
e fascínio, sendo que, face a um filme que se debruce minimamente sobre este
período histórico, o meu interesse é invariavelmente despertado. Na exploração,
especialmente no que diz respeito ao cinema, desse evento histórico, político,
social, etc. uma das mais representadas figuras tem sido a da rainha Marie
Antoinette (Diane Kruger), cuja aura de tragédia tem criado como que uma
atração à sua história. Neste filme de Benoît Jacquot, observamos a rainha de
um modo pouco usual, a partir dos olhos devotos de uma serva, e vemo-la
envolvida numa relação romântica com a Duquesa Gabrielle de Polignac (Virginie
Ledoyen), algo que não parece passar de um rumor da época. Mas, apesar de ter
várias dúvidas em relação à integridade histórica deste filme, acho que devemos
olhar esta obra como uma obra de ficção social, um melodrama que ameaça o
sensacionalismo e que, mesmo assim, é imensamente eficaz e até surpreendente na
sua abordagem a tão recriada épocas e figura histórica.
O filme começa logo a
revelar a sua perspetiva invariavelmente moderna aquando do seu início. Abrimos
Les Adieux à la Reine com um brusco
despertar, o de Sidonie Laborde (Léa Seydoux), uma serva da rainha. Aqui vemos
logo o ritmo apressado do filme, o seu sentido de ação imediata e direta,
observamos as más condições higiénicas, o modo como a figura se veste, como tem
os braços cobertos de picadas dos mosquitos originados nas águas estagnadas dos
jardins do palácio. Um filme de época, mas não por isso um filme que evite a
visceralidade da vida nessa mesma época, como que aqui demonstrando um impulso
meio realista. Seguimos esta protagonista pelas suas atividades, encontros
tensos de adoração e indiferença com a rainha, e suas manipulações em busca de
informação. Estamos no dia da queda da Bastilha, e vamos observar a relação de
Sidonie com a sua rainha nos dias que se seguiram a este cataclísmico início da
Revolução. O fervor do pânico e angústia vai-se intensificando ao longo dos
dias, os corredores cheios de informações espalhadas em nervoso burburinho, a
rainha observa o seu mundo ameaçar o desabamento, e tenta assegurar, a todo o
custo, a segurança da sua amante, da sua preferida, a duquesa de Polignac. No
final, um pedido imensamente cruel é feito à devota Sidonie, cujos sentimentos
pela rainha há muito excederam o simples dever e devoção, e o filme encerra-se
com uma fuga do mundo hermético de Versalhes, de onde o nosso olhar quase nunca
se desvia. Um retrato fugaz, mas inesperado, no modo como explora, não só a
fantasmagórica e fatalista presença da rainha, mas também a estruturação rígida
de toda a sociedade da corte, como que mostrando os bastidores do teatro do
quotidiano de Versalhes.
Por todo o filme, o
realizador consegue criar uma atmosfera de crescente ansiedade, havendo,
especialmente nas cenas com a rainha, um colossal fatalismo que se abate sobre
a obra. Um sentimento de destruição iminente, uma morte para as pessoas
presentes no filme e seu estilo de vida, seu mundo, é constante, influenciado
cada movimento, cada comportamento, cada ação na narrativa. Mas é a figura da
rainha que sempre se apresenta como uma etérea presença, como um fantasma vivo
que antecipa a sua perdição.
Nas mãos de Kruger,
Marie Antoinette é uma figura de pose e presença imperial, enganadoramente
sedutora e de uma delicadeza quase fantasmagórica. Na segunda metade do filme,
uma constante paranoia aparece infiltrar-se na interpretação de Kruger, criando
uma monarca em constante tensão e cujo olhar é tão narcisista como distante e
assutado. Antoinette é, mesmo assim, apresentada como um poço de egoísmo sem
limites, quase grotesca não fosse a sua delicada elegância e simples
desinteresse no lugar onde normalmente esperaríamos observar malícia. Há uma
incompreensão da sua parte para com os acontecimentos à sua volta e Diane
Kruger consegue assim transmitir um espetáculo de egocentrismo absoluto, uma
mistura de inocência e autoridade, imatura, caprichosa e inconscientemente cruel.
No seu final pedido, que também acaba por marcar a última vez que a vimos, a
rainha apenas mostra quão dispensável considera a vida da sua adoradora serva,
apenas mostra como, apesar de toda a simpatia que Kruger consegue arrecadar da
sua presença hipnotizante, a rainha é uma figura de puro egoísmo, como que
isolada do resto do mundo na sua insular consciência. No final, nada é mais
cruel que a indiferença e a atriz consegue manter um equilíbrio formidável sem
nunca caricaturar o comportamento errático da monarca, ou a elevar a um
estatuto de lenda viva, mas, mantendo-a a uma palpável distância, e conseguindo
assim criar um dos mais fascinantes retratos desta personagem histórica alguma
vez presentes num filme.
Mas a rainha é por nós
observada sempre da perspetiva da protagonista que em Seydoux é caracterizada
pelo seu intenso olhar, onde o seu desejo silencioso arde sem nunca ser
totalmente exteriorizado. Vemo-la cumprir ordens, a realizar a sua rotina, a
simplesmente observar e daí obtemos um retrato curioso, de alguém cuja
identidade se parece ir dissolvendo ao longo do filme. A chave para a
personagem é que ela é ninguém, é uma serva, anónima, uma não entidade para a
rainha e para a aristocracia, mas, por detrás da sua fachada de subserviência
silenciosa, encontra-se um turbilhão de tempestuosa emoção. No silêncio e
repressão está a real intensidade intoxicante do filme, maioritariamente uma
consequência do maravilhoso trabalho de atriz e da atenção obsessiva de Jacquot
na sua protagonista, aproximando a câmara, celebrando a sua fisicalidade, os
seus olhares, o seu desconforto e nervosismo crescentemente enervante. O desejo
angustiado tornado olhar silencioso seria uma boa descrição do trabalho de Lea
Seydoux neste filme, cuja expressividade por detrás da sua fachada de constante
rigidez é sublime, sem nunca cair no óbvio ou no melodramático barato.
O resto do elenco é
bastante consistente na sua qualidade, com especial relevância para o trabalho
modestamente preciso de Noémie Lvovsky como Madame Campan. Apenas Ledoyen se
poderia salientar como um problema do filme, mas isso deve-se maioritariamente
à estrutura e abordagem do realizador que vão insistindo em olhar Polignac como
uma ideia, uma imagem, um corpo sedutor, sem nenhuma da preocupação intensa que
é dada à rainha. Devido à sua centralidade no enredo isto provoca uma certa
falta de balanço no filme, se bem que é um desequilíbrio que consegue ter o seu
interesse ao nos prender ainda mais na perspetiva de Sidonie. Num filme sobre
desejo, obsessão e o olhar subserviente, a presença de Polignac como uma figura
de pura e confusa carnalidade não parece completamente despropositada. Há um
erotismo perverso nas observações voyeurísticas da protagonista e na redução de
Polignac a uma incompreensível mas sedutora cifra há algo de tematicamente apto
em relação a este tipo de registo.
Falando numa perspetiva mais técnica e formal,
o filme deve muito do seu impacto e atmosfera à direção, montagem e trabalho de
câmara que injetam uma visceralidade completamente moderna aos procedimentos
narrativos, dando ao filme um estilo que se assemelha á televisão ou mesmo a
documentários, cheio de câmara ao ombro e zooms constantes e quase distrativos.
A montagem, apesar e ser central na criação da tensão que afeta todo o filme,
tem a tendência a tornar-se um pouco errática e arte caótica em ocasiões de maior
velocidade rítmica, criando um filme que quase se movimenta em soluços
rítmicos. Mas a câmara grosseira e o olhar forçosamente moderno de Jacquot
fazem de Versalhes algo mais semelhante a uma claustrofóbica prisão que a um
luxuoso palácio. O único pormenor técnico que gostaria de salientar numa
apreciação negativa, seria mesmo o desenho de figurinos de Christian Gasc e
Valérie Ranchoux, que com a sua aparência francamente barata e até feia, sem
sombra de veracidade histórica, acabam por ser inexoravelmente distrativos.
Percebo a tentação de usar uma teatralidade quase grotesca nos figurinos quando
o resto do filme é tão empenhado numa superficialidade realista, mas aqui o
efeito é de simples desleixo visual, sendo que a elegância das figuras que
passam pelo filme é constantemente traída pela deselegância atroz das roupas
com seus cortes absurdos, histórica e pragmaticamente ridículos e cores
garridas e de um contraste que, mais do que revelador, é simplesmente uma dor
na vista da audiência. O jogo de estilização e contraste destes figurinistas
resulta muito melhor em Madame Bovary
de Sophie Barhes, em que o filme realmente parece utilizar a estranheza das
suas roupas como parte integral do seu estilo. Aqui o efeito é de simples
desleixo e inescapável feiura, demasiado colorida e detalhada para ser
completamente ignorada.
Talvez seja a minha recente exploração do
trabalho de Rossellini, mas este filme quase relembra uma abordagem
neorrealista feita a um melodrama, em tudo menos nos desgraçados figurinos.
Estamos sempre, tal como as personagens, aprisionados na opressiva atmosfera
insular de Versalhes, num jogo de distanciamentos, que mostra um certo impulso
realista, mescla-se com uma intriga de corte e uma tempestade emocional
interior, com o fogo da revolução em constante ameaça exterior. Esta distância
que o filme mantém com as suas figuras deixa o filme estranhamento frio e
desconfortável, mas também evita os mais deploráveis aspetos de sensacionalismo
melodramático em que poderia ter caído. O clímax final do filme é, por
consequência, de uma frieza monumental, uma devastação silenciosa e distante,
uma prova de devoção que aqui chega a um nível de completa e deprimente
insanidade, tudo num cruel voz-off em que a devoção obsessiva da serva a
consome até que ela se torna uma não-entidade, e fica para si mesma como é para
a rainha, alguém anónimo e dispensável. Um filme sobre o processo de alguém se
tornar ninguém por meio de amor e subserviência febril, uma obra de
complexidade surpreendente e de impulsos melodramáticos deliciosos que nunca se
tornam excessivos pela precisa, se bem que não muito criativa, direção de
Jacquot.
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