Com este terceiro
volume, encerra-se a trilogia épica de Miguel Gomes sobre a austeridade em
Portugal. Nos textos que anteriormente escrevi sobre os dois volumes iniciais,
já falei sobre o método que o realizador utilizou na construção desta sua obra,
pelo que não me parece necessária uma repetida explicação. A estrutura deste
volume, no entanto, difere um pouco da dos outros dois volumes, sendo que
anteriormente cada volume continha em si três contos narrados por Xerazade
(Crista Alfaiate), tendo o primeiro uma espécie de introdução tanto à estrutura
do filme como a toda a experimentação aqui desenvolvida. Em O Encantado, não temos os usuais três
episódios, mas sim um enorme episódio sobre passarinheiros que criam tentilhões
e com eles entram em competições, inserindo-se pelo meio deste conto, um
minúsculo episódio sobre uma imigrante chinesa chamada floresta em chamas. O
filme também conta com a mais desenvolvida porção da trilogia sobre Xerazade, a
contadora de histórias que sempre é uma constante nestes filmes,
assemelhando-se quase à introdução que abre o primeiro volume, mas num registo
imensamente mais fantasioso.
A observação feita à
comunidade dos passarinheiros irá possivelmente testar a paciência de muitos
cinéfilos, aqui aparecendo o mais direto e observacional de todos os episódios,
assim como o mais longo. Há uma densidade temática e informacional de
impressionante monumentalidade nas histórias de vida dos passarinheiros, aqui
capturados num retrato de uma comunidade em que, apesar do registo
maioritariamente realista, temos a usual mistura de realidade e fantasia que
tanto têm caracterizado toda a construção do épico de Gomes.
Neste estranho
exercício de retrato e observação intimista, o realizador captura algo de
curiosamente tocante e sério sem deixar de ser delirantemente excêntrico. A
montagem nunca foi nesta trilogia mais precisa que neste episódio, aqui
entrecortando variadas histórias individuais numa imensa tapeçaria de vidas
humanas, em que se entrelaça o peso da História nacional e comunitária assim
como uma fúria social acídica e gritante na sua intensidade. Quando, por entre
a interminável cacofonia do cantar de pássaros que, aparentemente, cantam tanto
que morrem de esforço melódico, Gomes insere o cantar do hino nacional por
manifestantes durante o 25 de Abril, há algo de indescritivelmente avassalador
que emerge. Na miséria e sofrimento, as pessoas viram-se para a religião, para
o desporto, para algo que ocupe o vazio do desespero, viram-se para os
tentilhões, e aí se consome a sua vida. Há algo de simples neste episódio
quando comparado com as criações exuberantes d’“As Lágrimas da Juíza” ou d’“Os Homens
de Pau Feito”, e precisamente a partir dessa simplicidade se encontra o final
perfeito para tão complexa criação como este filme. Um homem solitário que,
depois de libertar uma criatura sobrenatural de uma rede e recusar compensação,
anda pela paisagem natural, uma dedicação a uma filha que só no futuro poderá
apreciar a criação de um pai, e assim termina o filme.
De certo modo, este
volume revela-se como o mais melancólico dos três, não havendo grande
quantidade do humor irreverente que tanto marca os seus antecessores. E a
melancolia é tão verificável no episódio dos passarinheiros que fecha a
trilogia como na introdução por meio da história de Xerazade. Passamos um dia
com a rainha que vai narrando os seus contos como método de se manter viva, e
acompanhamo-la no encontro de várias figuras tão fantasiosas e extravagantes
como alegóricas, sendo um diálogo numa roda gigante uma das mais belas
sequências de toda a trilogia, tanto pelo seu movimento hipnotizante que lembra
a cena no casino no anterior filme de Gomes, como pelas suas entristecidas
palavras em que o fatalismo e o simbolismo da figura de Xerazade aparecem na
sua mais bela expressão.
Assim se encerram as minhas divagações acerca
desta obra de Gomes, que será o inquestionável evento cinematográfico do ano.
Um épico tão ambicioso na sua crítica e observação como na sua forma, uma
orgiástica explosão de criatividade e experimentação como poucas vezes se tem
registado nos cinemas internacionais dos últimos anos e um dos mais belos
exemplos da fúria do cinema político, aqui tornado magnífica epopeia
cinemática. Um filme imperdível e indispensável, cujo único defeito que tenho a
apontar é o facto de terminar e assim nos privar de mais horas das suas
fantasias e absurdos retratos de uma realidade tão dolorosa de viver como é
extasiante de observar nesta trilogia.
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