Referenciando tudo desde Val Lewton e Jacques Tourneur a
Stanley Kubrick, Guillermo del Toro oferece em Crimson Peak um hipnotizante espetáculo nostálgico, uma verdadeira
celebração do cinema de terror clássico.
Numa das mais
características cenas de Crimson Peak: A
Colina Vermelha, o novo filme de Guillermo del Toro, duas mulheres encontram-se
num parque, a observar borboletas nos seus últimos momentos de vida. Os
magníficos insetos não conseguem sobreviver ao frio e falta de sol,
estremecendo enquanto morrem. Uma delas pega numa das borboletas e com a sua
asa acaricia a sua face e a da sua companheira, antes de a atirar para o chão,
onde a borboleta é devorada por formigas. No mundo deste filme, subtileza não
tem lugar para existir. Para além do diálogo cheio de presságios óbvios e
simbolismos descarados, a própria borboleta e o seu cruel fim são horrendamente
observados por del Toro, em planos em CGI que se vão aproximando do animal à
medida que este é violentamente devorado. A beleza e a carnificina sanguinária
existem em uníssono neste mundo conjurado por del Toro, um mundo onde qualquer
noção de realismo moderno foi substituído por uma extravagância artificial que
normalmente observamos em filmes de terror clássicos, quer sejam as coloridas obras
de giallo, quer sejam as sombras expressionistas dos filmes de terror dos anos 20
e 30.
Estas duas mulheres
são Edith (Mia Wasikowska), filha de um americano industrial que sonha em se
tornar escritora, e Lucille Sharpe (Jessica Chastain), uma sombria aristocrata
inglesa cujo irmão Thomas Sharpe (Tom Hiddleston) seduz Edith e acaba por casar
com ela depois da morte violenta do seu pai. O enredo é bastante simples, uma
herdeira americana é seduzida por um misterioso europeu, casa-se e vai para um
mundo de escuridão e sombras ameaçadoras numa mansão assombrada. Junte-se a
isto um pouco de perversidade hitchcockiana que relembra Notorious e temos a história de Crimson
Peak. Não temos aqui nada de muito complexo ou difícil de digerir, mas sim
uma estrutura narrativa que lembra os apressados e imensamente eficazes guiões
dos filmes de terror da Universal de outrora.
No início, o
classicismo nostálgico do filme é impossível de ignorar, infetando todos os
elementos do filme. Mesmo os atores trabalham sob uma atmosfera de nostalgia estilística,
sendo Wasikowska uma perfeita substituta para uma Joan Fontaine delicada e
constantemente amedrontada, simples e sem grandes complexidades. Hiddleston é
um herói típico vitoriano, meio Lord Byron, meio Mr. Rochester, com uma pitada
de perversidade que o faz parecer uma parte transplantada de um filme da Hammer
Film Productions. Até Charlie Hunman, no seu papel de um amigo de Edith, o
herói decente e imensamente aborrecido, é perfeito na sua rigidez. Ele é um típico
herói do cinema de terror clássico, um Jonathan Arker que é apenas necessário
para contrastar com a monstruosidade exuberante do seu filme. E esse monstro,
longe de ser um dos espíritos que vão aparecendo, é Lucille Sharpe,
maravilhosamente encarnada por Chastain num registo que parece ter-se baseado na
Mrs. Danvers de Judith Anderson, com um acrescento generoso de selvageria
animalesca nos momentos acertados.
Muito mais explícito
e intoxicante que a estilização performativa do elenco, é a direção de del Toro
e os visuais por ele, e sua equipa, concretizados. A fotografia de Dan Laustsen
cobre o filme com sombras profundas que, por vezes, parecem consumir o filme em
expressionista escuridão. A cenografia de Thomas E. Sanders constrói um mundo
de estilizados horrores, sendo que a mansão dos irmãos Sharpe é uma das mais
magníficas criações do cinema de terror contemporâneo, tão exagerada na sua
decrepitude quão monumental na sua opulência e detalhe. Neste mundo em que o
chão “sangra” argila vermelha, os humanos da história aparecem vestidos com
criações tão exuberantes como os espaços, cobertos de simbologia esmagadora e
num registo estilístico que não tem grande comparação no panorama cinematográfico
atual. Edith na sua silhueta de 1890, amarelos ricos e decoração floral é um
direto contraste com a frieza moribunda dos Sharpe, especialmente Lucille que
parece, na sua elegância antiquada, ser quase que uma extensão humana do edifício
espectral em que decorre a maioria do filme.
Se a maioria dos
visuais parece remeter para uma estética nostálgica e opulente, os efeitos
visuais são inexoravelmente modernos. Desde a sequência da borboleta a ser
devorada até às assombrações, há algo de definitivamente estranho no uso de CGI
num filme que tanto parece querer pertencer a uma era passada da história do
cinema. Mas será mesmo por essa estranheza que estes efeitos resultam, sendo
que os fantasmas, na sua pestilenta e fumegante negrura, parecem pertencer a um
mundo completamente diferente do resto do filme. O foco do horror do filme não
são, contudo os fantasmas que com tudo parecem destoar mas sim os humanos em
que todo o horror da história parece convergir.
Também a história do
filme joga com a mistura de modernidade e classicismo nostálgico, sendo que
isto se verifica especialmente no modo como del Toro explora as personagens
femininas deste seu romance gótico. A cena de sexo em que apenas Hiddleston
mostra nudez, já foi bastante discutida pela internet, mas a grande reviravolta
do filme acontece, para mim, no seu violento clímax. Aí, os heróis masculinos
são ora incapacitados ou assassinados pela furiosa vilã, e o filme tem o seu
desfecho numa perseguição pela neve, em que as duas figuras femininas
principais lutam entre si, com facas empunhadas, e com as suas camisas de noite
manchadas com o vermelho do sangue e da argila que forma a colina do título. As
motivações da vilã são o desejo de viver a sua vida como quer, em toda a sua
sangrenta perversidade, e, quando a impedem disso mesmo, a sua reação é uma fúria
vingativa, enquanto a heroína, outrora vitimizada e delicada, emerge como uma
sobrevivente enraivecida. Por muito que este proto feminismo se perca por entre
o resto da construção do filme rica em arquétipos simplistas, essa luta final é
gloriosa e maravilhosamente inesperada depois de toda a nostalgia que até então
se manifestou.
As minhas principais
reticências em relação ao completo sucesso de Crimson Peak devêm desse raro defeito que é o excesso de ambição.
Numa tentativa de referenciar o que, por vezes, parece ser toda a história do
cinema de terror ocidental, del Toro tem tendência a se perder um pouco. Há um
particular excesso de simbolismos, diálogos explicativos, flashbacks e sequências
repetitivas, que retiram ao filme a elegância e eficácia estrutural que tanto
brilham nas obras de terror clássico.
No entanto, apesar
desses meus problemas com o filme, Crimson
Peak é uma obra de hipnotizante cinema de entretenimento. Talvez seja um
filme maioritariamente feito para fãs de cinema de terror clássico (como eu),
do mesmo modo que Pacific Rim pareceu
uma obra somente concebida para fãs de cinema japonês do género daikaiju. Talvez por isso o filme seja
um pouco difícil de apreciar para quem espere uma modernidade que del Toro simplesmente
se recusa a oferecer. Mesmo para os seus detratores, no entanto, Crimson Peak, na sua gloriosa construção
sensorial, é uma obra difícil de ignorar, um extravagante pesadelo nostálgico
que seduz com a sua relativa simplicidade e sua luxuriante exuberância estilística.
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