Tendo já escrito
sobre o primeiro volume da trilogia épica de Miguel Gomes sobre a austeridade
no nosso país e o devaste em que tem deixado a nossa nação, acho que não
necessito de expressar de modo extensivo os meus sentimentos em relação à sua
extraordinária abordagem e processo. Neste volume, o método de estruturação à
volta de episódios que pegam na realidade portuguesa e a tornam em contos meio mitificados,
meio espetáculo de absurdos, continua, sendo que as maravilhas cinemáticas que
o realizador consegue obter desta abordagem também continuam.
Ao contrário do
primeiro volume, este segundo, não tem qualquer tipo de sequência introdutória,
iniciando-se já dentro de uma das histórias de Xerazade. Isto faz com que o
filme seja claramente uma parte separada de uma trilogia, ao contrário do
primeiro que se assemelhava mais a um filme completo. O que eu quero dizer com
isto é que o filme é difícil de separar da experiência completa, parece um
seguimento do primeiro volume, o que não é um problema de todo, mas é algo que
de novo me faz ansiar por acabar de ver a trilogia e poder ter uma opinião
sobre a sua totalidade. Bem, ainda tenho, pelo menos, mais uma semana de espera
pelo derradeiro volume, por isso, por enquanto, acho melhor continuar a marinar
na minha psique as gloriosas visões dos três episódios que compõem este segundo
volume.
O primeiro episódio é
denominado “A Crónica da Fuga de Simão Sem Tripas”, uma visão vagarosa de um
assassino escapado pelos montes. Todo este capítulo se caracteriza pelo seu
ritmo extremamente lento, algo que quase hipnotiza a audiência, especialmente
quando combinado com visões de irracional estilo, como o desvanecer da figura
central a meio de uma cena sem qualquer consequência, ou o aparecimento de três
mulheres que o servem nuas, como que os espíritos das mulheres, suas
familiares, que no final sabemos que o protagonista assassinou. Durante todo o
episódio, que é, até agora, aquele que presumo ser mais difícil de experienciar
para uma audiência de irrequieta atenção, não consegui parar de pensar nos
filmes de Apichatpong Weerasethakul. Isto, em parte, devém do facto do diretor
de fotografia ser Sayombhu Mukdeeprom, um usual colaborador do realizador
tailandês, mas também é uma consequência dessa vagarosa abordagem à narrativa
fragmentada, cheia de simbolismos inescrutáveis e uma atmosfera sonhadora. Digo
tudo isto, mas o final é um delicioso retorno à sátira cortante, que tanto
caracteriza esta obra na sua generalidade, sendo que, de certo modo, este
episódio é como que uma lenta reintrodução aos ritmos e intenções satíricas da
obra de Gomes.
O segundo episódio
será, talvez, aquele que mais fama tem ganho internacionalmente. Chama-se “As
Lágrimas da Juíza” e debruça-se sobre um julgamento absurdista, em que uma
progressivamente enervada juíza (Luísa Cruz) vai ouvindo uma série de relatos
interligados no seu tribunal, que vão tecendo uma teia caótica que retrata o
estado do país. Este é o mais abertamente cómico dos três episódios deste
volume e é aquele que menos barreiras coloca sobre o direto entendimento da crítica
de Gomes. Aqui é tudo bastante óbvio e elevado a níveis de ridículo delicioso,
como quando uma vaca oferece o seu testemunho, sendo que o absurdismo vai
progressivamente ganhando um sabor de tragédia. Há uma perversidade maravilhosa
na criação deste episódio que vai produzindo momentos de invariável comédia,
mas que, com a sua longa duração, vai-se tornando cada vez mais horripilante. À
medida que a pilha de loucuras e injustiças vai crescendo a audiência, pelo
menos eu, já não compreende se o objetivo é provocar o riso inegável ou as lágrimas
desesperadas que, no final, são expressas pela própria juíza. Mas há uma certa
complexidade a este episódio que, apesar da sua abordagem grotescamente direta
contém em si uma fantástica estrutura que perversamente inicia e encerra o
episódio com momentos que pervertem a própria figura da juíza e sua moralidade.
Mas o mais
fascinante, de um ponto de vista pessoal, de todos estes episódios é aquele que
arrecadou em Cannes um prémio especial para o seu protagonista canino. Falo de
“Os Donos de Dixie”, uma espécie de odisseia melancólica à volta de um cão que
vai encontrando casa com os habitantes de um bairro em Loures, e que nos vai
assim proporcionando um olhar sobre a sua existência. Há uma melancolia que
impera sobre todo este episódio, assim como uma elegância estilística que
substitui, por momentos, a orgiástica explosão de estilo indisciplinado dos
outros episódios, tornando ainda mais deprimente todo o relato que observamos.
Há aqui uma modéstia da parte de Gomes que não cai em qualquer banalidade, mas
que retrata uma comunidade com uma delicadeza surpreendente, ao mesmo tempo que
se vai movimentando pelas vidas individuais e criando um retrato coletivo
avassalador. A montagem, fotografia e musicalidade são especialmente gloriosos
nesta porção, encontrando uma beleza singularmente inesperada em momentos como
o de urina a escorrer por um poço de elevador, como que um êxtase de beleza que
persevera na delapidação do mundo. Para encerramento deste volume, a história
de Dixie, ou melhor dos seus donos, é um ponto final incrivelmente deprimente,
se bem que há algo de encantador na imagem final de dois cães, um fantasma e um
vivo, a brincarem um com o outro, numa jovialidade despreocupada que injeta
alguma vida e alegria num mundo onde a esperança de felicidade se vai desvanecendo
das vidas perseverantes das figuras humanas aqui apresentadas.
Algo que não pude
ignorar neste volume foi a modulação de intensidade na acidez satírica do
realizador. No anterior elemento desta trilogia, a fúria enlouquecida do autor
era palpável em cada momento da sua duração, neste filme há algo de temperado e
variante, que não retira impacto ao filme, mas que lhe dá algo de fascinante em
termos de tom. Os ritmos também se alteram como que acompanhando a intensidade
da raiva criativa, sendo que o primeiro, o mais calmo e opaco dos episódios, é
lento e vagaroso, o segundo é um regresso à fúria explosiva do primeiro volume
e faz de uma sequência, praticamente passada num só local, uma bomba
incendiária de compaixão e humor devastador, e, finalmente, no terceiro
episódio deste volume, há algo de lírico, não opaco, mas trágico e entristecido.
Da opacidade hipnotizante para uma fúria incendiária a uma melancolia que deixa
o espetador com uma amargura avassaladora no final do filme. É algo de
fascinantemente complexo e modulado numa obra que parece celebrar uma certa
indisciplina estilística e suas gloriosas criações.
Esta trilogia de
Miguel Gomes continua a provar-se como um dos maiores eventos cinematográficos
dos últimos anos, e falo de cinema internacional, sendo que sua reflexão sobre
o estado do país consegue ser das mais criativas abordagens que já vi ao cinema
político e de cariz social. Sinceramente, irrita-me, se bem que parcialmente
entendo, a baixa quantidade de cinemas a distribuir estes filmes pois, apesar
de radicalmente criativos e experimentais na sua forma e estrutura, estes filmes
são intrinsecamente portugueses e imensamente importantes, penso eu, para uma
sociedade que tão poucas vezes se vê retratada no cinema com tal glória épica e
grandiosidade cinemática. Um grito, tanto de experimentação e jogo de cinema,
como de fúria invariável pelo estado moribundo da nossa nação. Apelo a todos
que leiam isto que considerem ver estes filmes, estas joias cinematográficas,
estas tempestades de criatividade, estes ataques violentamente satíricos contra
a austeridade, esta celebração elegíaca da condição de, simplesmente, se ser
português.
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