domingo, 4 de outubro de 2015

AS MIL E UMA NOITES: VOLUME 2, O DESOLADO (2015) de Miguel Gomes



 Tendo já escrito sobre o primeiro volume da trilogia épica de Miguel Gomes sobre a austeridade no nosso país e o devaste em que tem deixado a nossa nação, acho que não necessito de expressar de modo extensivo os meus sentimentos em relação à sua extraordinária abordagem e processo. Neste volume, o método de estruturação à volta de episódios que pegam na realidade portuguesa e a tornam em contos meio mitificados, meio espetáculo de absurdos, continua, sendo que as maravilhas cinemáticas que o realizador consegue obter desta abordagem também continuam.

 Ao contrário do primeiro volume, este segundo, não tem qualquer tipo de sequência introdutória, iniciando-se já dentro de uma das histórias de Xerazade. Isto faz com que o filme seja claramente uma parte separada de uma trilogia, ao contrário do primeiro que se assemelhava mais a um filme completo. O que eu quero dizer com isto é que o filme é difícil de separar da experiência completa, parece um seguimento do primeiro volume, o que não é um problema de todo, mas é algo que de novo me faz ansiar por acabar de ver a trilogia e poder ter uma opinião sobre a sua totalidade. Bem, ainda tenho, pelo menos, mais uma semana de espera pelo derradeiro volume, por isso, por enquanto, acho melhor continuar a marinar na minha psique as gloriosas visões dos três episódios que compõem este segundo volume.

 O primeiro episódio é denominado “A Crónica da Fuga de Simão Sem Tripas”, uma visão vagarosa de um assassino escapado pelos montes. Todo este capítulo se caracteriza pelo seu ritmo extremamente lento, algo que quase hipnotiza a audiência, especialmente quando combinado com visões de irracional estilo, como o desvanecer da figura central a meio de uma cena sem qualquer consequência, ou o aparecimento de três mulheres que o servem nuas, como que os espíritos das mulheres, suas familiares, que no final sabemos que o protagonista assassinou. Durante todo o episódio, que é, até agora, aquele que presumo ser mais difícil de experienciar para uma audiência de irrequieta atenção, não consegui parar de pensar nos filmes de Apichatpong Weerasethakul. Isto, em parte, devém do facto do diretor de fotografia ser Sayombhu Mukdeeprom, um usual colaborador do realizador tailandês, mas também é uma consequência dessa vagarosa abordagem à narrativa fragmentada, cheia de simbolismos inescrutáveis e uma atmosfera sonhadora. Digo tudo isto, mas o final é um delicioso retorno à sátira cortante, que tanto caracteriza esta obra na sua generalidade, sendo que, de certo modo, este episódio é como que uma lenta reintrodução aos ritmos e intenções satíricas da obra de Gomes.

 O segundo episódio será, talvez, aquele que mais fama tem ganho internacionalmente. Chama-se “As Lágrimas da Juíza” e debruça-se sobre um julgamento absurdista, em que uma progressivamente enervada juíza (Luísa Cruz) vai ouvindo uma série de relatos interligados no seu tribunal, que vão tecendo uma teia caótica que retrata o estado do país. Este é o mais abertamente cómico dos três episódios deste volume e é aquele que menos barreiras coloca sobre o direto entendimento da crítica de Gomes. Aqui é tudo bastante óbvio e elevado a níveis de ridículo delicioso, como quando uma vaca oferece o seu testemunho, sendo que o absurdismo vai progressivamente ganhando um sabor de tragédia. Há uma perversidade maravilhosa na criação deste episódio que vai produzindo momentos de invariável comédia, mas que, com a sua longa duração, vai-se tornando cada vez mais horripilante. À medida que a pilha de loucuras e injustiças vai crescendo a audiência, pelo menos eu, já não compreende se o objetivo é provocar o riso inegável ou as lágrimas desesperadas que, no final, são expressas pela própria juíza. Mas há uma certa complexidade a este episódio que, apesar da sua abordagem grotescamente direta contém em si uma fantástica estrutura que perversamente inicia e encerra o episódio com momentos que pervertem a própria figura da juíza e sua moralidade.

 Mas o mais fascinante, de um ponto de vista pessoal, de todos estes episódios é aquele que arrecadou em Cannes um prémio especial para o seu protagonista canino. Falo de “Os Donos de Dixie”, uma espécie de odisseia melancólica à volta de um cão que vai encontrando casa com os habitantes de um bairro em Loures, e que nos vai assim proporcionando um olhar sobre a sua existência. Há uma melancolia que impera sobre todo este episódio, assim como uma elegância estilística que substitui, por momentos, a orgiástica explosão de estilo indisciplinado dos outros episódios, tornando ainda mais deprimente todo o relato que observamos. Há aqui uma modéstia da parte de Gomes que não cai em qualquer banalidade, mas que retrata uma comunidade com uma delicadeza surpreendente, ao mesmo tempo que se vai movimentando pelas vidas individuais e criando um retrato coletivo avassalador. A montagem, fotografia e musicalidade são especialmente gloriosos nesta porção, encontrando uma beleza singularmente inesperada em momentos como o de urina a escorrer por um poço de elevador, como que um êxtase de beleza que persevera na delapidação do mundo. Para encerramento deste volume, a história de Dixie, ou melhor dos seus donos, é um ponto final incrivelmente deprimente, se bem que há algo de encantador na imagem final de dois cães, um fantasma e um vivo, a brincarem um com o outro, numa jovialidade despreocupada que injeta alguma vida e alegria num mundo onde a esperança de felicidade se vai desvanecendo das vidas perseverantes das figuras humanas aqui apresentadas.

 Algo que não pude ignorar neste volume foi a modulação de intensidade na acidez satírica do realizador. No anterior elemento desta trilogia, a fúria enlouquecida do autor era palpável em cada momento da sua duração, neste filme há algo de temperado e variante, que não retira impacto ao filme, mas que lhe dá algo de fascinante em termos de tom. Os ritmos também se alteram como que acompanhando a intensidade da raiva criativa, sendo que o primeiro, o mais calmo e opaco dos episódios, é lento e vagaroso, o segundo é um regresso à fúria explosiva do primeiro volume e faz de uma sequência, praticamente passada num só local, uma bomba incendiária de compaixão e humor devastador, e, finalmente, no terceiro episódio deste volume, há algo de lírico, não opaco, mas trágico e entristecido. Da opacidade hipnotizante para uma fúria incendiária a uma melancolia que deixa o espetador com uma amargura avassaladora no final do filme. É algo de fascinantemente complexo e modulado numa obra que parece celebrar uma certa indisciplina estilística e suas gloriosas criações.

 Esta trilogia de Miguel Gomes continua a provar-se como um dos maiores eventos cinematográficos dos últimos anos, e falo de cinema internacional, sendo que sua reflexão sobre o estado do país consegue ser das mais criativas abordagens que já vi ao cinema político e de cariz social. Sinceramente, irrita-me, se bem que parcialmente entendo, a baixa quantidade de cinemas a distribuir estes filmes pois, apesar de radicalmente criativos e experimentais na sua forma e estrutura, estes filmes são intrinsecamente portugueses e imensamente importantes, penso eu, para uma sociedade que tão poucas vezes se vê retratada no cinema com tal glória épica e grandiosidade cinemática. Um grito, tanto de experimentação e jogo de cinema, como de fúria invariável pelo estado moribundo da nossa nação. Apelo a todos que leiam isto que considerem ver estes filmes, estas joias cinematográficas, estas tempestades de criatividade, estes ataques violentamente satíricos contra a austeridade, esta celebração elegíaca da condição de, simplesmente, se ser português.


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