segunda-feira, 26 de outubro de 2015

LISTEN TO ME MARLON (2015) de Stevan Riley

 Listen to Me Marlon foi exibido este fim-de-semana como parte do DocLisboa, um festival obrigatório para qualquer apreciador de documentários. Como tal, aqui estão alguns dos meus pensamentos em relação a este tocante autorretrato de Marlon Brando, possibilitado pelo trabalho de Stevan Riley como realizador.


 Mais do que uma elegia a um dos mais importantes atores da história do cinema americano, Listen to Me Marlon, o novo documentário de Stevan Riley sobre Marlon Brando, consegue estar mais próximo da autobiografia. O filme é construído à volta de gravações feitas por Brando ao longo da sua vida, uma espécie de diário gravado, que são aqui mescladas com imagens da sua vida pública e privada, num retrato de cortante intensidade.

 Logo no início do filme, Riley mostra-nos a face de Brando digitalmente construída com base em informações scaneadas aquando da participação do ator nos filmes do Super-Homem. O efeito de ter esta construção digital a “falar” as gravações do ator, é imediatamente chocante. Riley como que conjura um fantasma no seu ecrã, ma sombra do passado, que não é de todo real, mas que na sua fraturada artificialidade ganha uma força que nenhuma entrevista com o ator poderia alcançar. Como os espíritos que assombram a mansão de Crimson Peak e os cinemas mundiais, este espectro de Brando confronta-nos com o passado da sua existência e daí partimos para um dos mais tocantes documentários biográficos de que tenho memória.

O que faz do documentário, que, para além do fantasma digital, pouco arrisca formalmente, uma obra de inegável fascínio e importância é o modo como Riley concede o seu documentário à perspetiva de Brando e nunca tenta impor qualquer reflexão contemporânea sobre o seu sujeito. Ao recusar a inclusão de entrevistas atuais, de voz-off que contextualizassem a figura de Brando na contemporaneidade, o realizador deste documentário prende-nos singularmente no olhar de um homem sobre si mesmo. O que ouvimos e vemos durante quase duas horas é a reflexão de Brando sobre si mesmo ao longo dos anos, tornando este filme, não uma grande homenagem ao ator estrela, mas uma autobiografia que atravessa os limites do tempo e da vida quando nos é apresentada em Listen to Me Marlon.

 Pessoalmente, há muito que me transtorna nas divagações de Brando, como a sua visão sobre a importância do ator na totalidade do filme, a sua rejeição de qualquer perspetiva do realizador, a sua celebração egocêntrica do naturalismo mimético aquando da sua juventude, ou mesmo o modo como na sua paixão pelo Taiti ele, para mim, consegue ser tão preconceituoso e até racista como aqueles contra quem ele se manifesta, exoticizando um povo num ideal de idílica existência quase mágica, como o estereótipo do magic negro que tanto aparece na cultura americana. E o filme, longe de explorar as inconsistências, contradições e arrogâncias da sua estrela, pelo contrário, simplesmente apoia a voz de Brando com escolhas musicais e montagem que parecem celebrar as suas palavras.
 Estes problemas, no entanto, não são particularmente difíceis de contornar e ignorar, pelo simples facto de que, ao nunca se desviar da perspetiva de Brando, apenas pontuada por notícias e imagens dos media a que Brando teria tido acesso na sua vida, o filme torna-se a obra do ator, mais ainda que a obra de Stephen Riley. O que ouvimos é a perspetiva de Marlon Brando, daí ser lógica a celebração das suas ideias na forma e abordagem do filme.

E, apesar do que possa ser sugerido pelas minhas palavras anteriores, o filme nunca se torna num monólogo intelectualista em que o ator se celebra a sai mesmo. O lado mais tocante do documentário, para além da avassaladora dor trazida pelos destinos dos filhos do ator, é o modo como vamos ouvindo as reflexões de um indivíduo ao longo da sua vida, o modo como a opinião dele muda sobre si mesmo e suas convicções passadas, o modo como se autocritica e como se perde na sua própria arrogância ou medo, etc.

 Listen to Me Marlon pega na figura lendária de Marlon Brando e, ao invés de a dissecar de modo intrusivo e pós-moderno, simplesmente deixa que essa imagem se abra por si mesma numa explosão de chocante intimidade. Marlon Brando como um ser humano complexo e não como uma estrela arrogante e importante para o cinema, é algo que poucas vezes vimos e é algo que este documentário nos propulsiona. Para além de tudo isto, há ainda que apontar o modo como este filme é emocionalmente devastador na sua introspeção, sendo que quando vi Listen to me Marlon no DocLisboa, eram numerosos os espetadores que iam tendo de limpar lágrimas dos seus olhos. Uma obra a não perder, mesmo para quem não tenha grande afeição por Brando ou pelo cinema da sua era, simplesmente porque pega numa figura tão celebrada como este ator e dela extrai a intimidade lacrimosa da autorreflexão, infelizmente bastante difícil de encontrar na maioria dos documentários que Hollywood faz sobre o seu passado.


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