Com o Halloween a
aproximar-se e o cinema de terror clássico a ser homenageado nos cinemas com
Crimson Peak, decidi revisitar um dos mais importantes filmes de terror na história
do cinema, Frankenstein de James Whale.
O género de terror
não era uma novidade no cinema americano, mas em 1931 deu-se uma reviravolta e
abriram-se as portas para o tipo de terror que iria caracterizar o resto da
década. Criaturas monstruosas icónicas e desdobradas em franchises que fazem
lembrar as narrativas de super-heróis da atualidade. Talvez algo que faltava ao
cinema de género dos estúdios americanos era a sofisticação que o cinema
europeu já tinha alcançado nas suas obras arrepiantes, e é aí que entra o
genial James Whale e a imensamente célebre adaptação de Frankenstein produzida pela Universal.
Depois do sucesso
imenso da sua versão de Dracula, a
Universal Pictures procurava outra obra literária a adaptar para um filme de
terror quando Carl Laemmle Jr. se decidiu a adaptar Frankenstein, da autoria de
Mary Shelley, para o cinema. Tal como ocorreu com a obra sobre o icónico
vampiro, mais do que se basear na obra literária do século XIX, o filme foi maioritariamente
desenvolvido a partir de uma adaptação teatral que já tinha sido feita com base
no livro de Shelley. Muito mais perversamente próximo da obra original viria a
ser o texto da sequela que Whale concebeu para este seu sucesso.
O enredo de
Frankenstein é, aliás, completamente distante do livro da autora romântica,
pegando apenas em conceitos e premissas narrativas e alguns nomes de
personagens na criação da sua história. Neste filme encontramos o Dr. Henry Frankenstein
(Colin Clive), um megalómano cientista que habita um castelo tenebroso numa
vila remota chamada Goldstadt. Aonde e quando isto tudo ocorre é deixado
deliberadamente nebuloso e incerto, mas penso ser acertado dizer que se passa
tudo algures num tempo reminiscente do século XIX e numa região proveniente de exóticas
fantasias americanas da Europa de Leste. O cientista meio-louco de ambição tem
a ajuda de um assistente corcunda, Fritz (Dwight Frye), e, no início do filme, observamo-los
aos dois a tentarem roubar um cérebro de um cadáver acabado de enforcar.
Infelizmente, o cérebro encontrava-se demasiado danificado. Numa sequência de
eventos que vão levar à monstruosidade central ao filme, Fritz encontra outro cérebro
para as experiências de seu mestre. Este novo cérebro pertencera a um psicopata,
algo desconhecido pelo doutor quando, no meio de uma tempestade, completa a sua
abominável experiência e dá vida à sua criação. O monstro que aqui ganha vida é
feito de partes de cadáveres unidos por Frankenstein e revitalizado pela
eletricidade. Como seria de esperar, tudo começa a correr mal para o doutor a
partir deste momento com os seus entes queridos a aperceberem-se da ambição
enlouquecida de Henry e com a criatura a eventualmente fugir dos confins do
castelo e causando destruição na aldeia próxima. A história final é basicamente
a de um cientista louco a tentar corrigir o erro de se sentir Deus e de uma
monstruosidade que não tem lugar neste mundo e que é constantemente perseguida
por todos os humanos à sua volta.
O derradeiro milagre
do filme como uma narrativa é, no entanto, o modo como complica esta história
bastante simples, não fosse o monstro a mais complexa e comovente entidade em
todo o edifício do filme. É claro que isto se deve em igual parte ao trabalho
de Whale como realizador e no de Boris Karloff como ator. Apesar do ator ter
sido toda a vida menosprezado como intérprete devido à sua fama ter sido ganha
em filmes de género, eu considero-o como um dos melhores atores da era dourada
dos estúdios de Hollywood, sendo o monstro de Frankenstein a sua mais célebre e
inesquecível criação.
Numa genial e icónica
caracterização edificada por Whale, Karloff é uma gigantesca presença de aparência
desumana, que, num verdadeiro triunfo da arte cinemática, é paradoxalmente a
mais humana presença do filme. O monstro é como que uma entidade meio infantil
trazida ao mundo sem o seu consentimento. Há uma curiosidade e inocência que
preenchem até os seus mais violentos atos. Duas cenas em particular mostram a
genialidade de Karloff, numa delas o mostro, ao ver um feixe de luz dentro do
cavernoso castelo, estende as suas mãos aos céus, tentando encontrar algo intangível
que tanto é a luminosidade como algo de espiritual. Na segunda cena de
referência, o monstro encontra uma jovem rapariga a brincar junto à água e,
como uma bestial criança, junta-se a ela que se encontrava a atirar flores para
as águas. A confusão de um recém-nascido num mundo confuso mistura-se com a
bruta força de um corpo de monstro e ele atira a rapariga para água, afogando-a
sem se aperceber das consequências de seus atos ou do próprio conceito de
morte.
De menor mérito e
fama, mas não menos fulcral para o sucesso do filme, está o trabalho de Clive
no papel do cientista louco, uma figura que também consegue encontrar alguma
humanidade por entre os exageros caricaturescos deste arquétipo das narrativas
de terror. Não que o ator tenha uma fração da majestosa subtileza e
expressividade suave de Karloff, encontrando, pelo contrário, a sua latente
humanidade no exagero e impacto emocional da sua teatralidade quase grotesca. O
resto do elenco não tem esperança de ser tão eficaz como os seus protagonistas,
sendo que muitos dos restantes atores têm tendência a serem exemplos do
artificialismo cansativo e cheio de manias que se registam nos piores filmes do
início da era sonora em Hollywood.
Todas estas palavras
sobre o elenco e sobre o texto e ainda quase nada mencionei do génio por detrás
deste filme. James Whale, apesar de ter realizado numerosos filmes na sua
relativamente curta carreira em Hollywood, será para sempre recordado pelo seu
trabalho nos dois primeiros filmes que a Universal produziu sobre o monstro de
Frankenstein. Para entendermos a importância do realizador basta olharmos para
a versão de Dracula, produzida pela
Universal no mesmo ano. Nesse filme, realizado por Tod Browning, pouco há para
louvar que não seja o trabalho de Bela Lugosi como o vampiro central, sendo que
todo o filme peca por uma sufocante teatralidade e rigidez típica destes primeiros
anos do cinema sonoro. Frankenstein e
a realização de Whale não podiam estar mais distantes da entediante banalidade
do filme sobre o mais famoso vampiro da ficção.
O que Whale fez e que
alterou por completo o panorama do cinema de terror como o conhecemos hoje em
dia foi ir buscar ao cinema europeu uma coleção de técnicas e ideias estilísticas
e incorporá-las no sistema de estúdios de Hollywood. E assim entrou o Expressionismo
Alemão no cinema americano e até hoje é difícil separar os dois, nomeadamente
quando falamos de cinema de terror. Toda a construção cinematográfica desta
obra mostra a influência europeia, basta olharmos para os cenários cavernosos,
passando pelos movimentos de câmara precisos, as composições geométricas e
especialmente a iluminação de cortante chiaroscuro.
Numa época em que o cinema americano estava prisioneiro das limitações técnicas
dos primeiros mecanismos de captura de som para cinema, Whale não conteve a sua
criatividade e nenhuma modéstia deixou transparecer no seu filme, fazendo de Frankenstein uma obra tão
estilisticamente sofisticada e impressionante como o cinema inovador que se
desenvolvia no continente europeu. Apenas o texto, que por vezes peca pelo
simplismo forçado, é que desmascara o filme como um produto completamente
comercial para os estúdios americanos, pois esteticamente poucos filmes se
comparavam a Frankenstein em 1931 no
que diz respeito a complexidade e simples ambição.
O trabalho e a vida de Whale são algo que me fascina, pelo
que talvez me esteja em demasia a influenciar pela minha paixão de fã. No
entanto, acho que é ridículo tentar falar dos seus filmes sem cair numa
retórica de cinema de autor, sendo que basta ler uma breve biografia do
realizador para nos apercebermos do modo como a experiência como prisioneiro de
guerra de Whale na 1ª Grande Guerra e a
sua infância numa negra, fumarenta e opressivamente conservadora parte de
Inglaterra, acabaram por influenciar o mundo por ele conjurado neste marco
incontornável do cinema de terro. Frankenstein
de 1931 é especialmente fascinante se considerarmos a sua estilização que
revela uma dolorosa humanidade com os excessos e loucuras meio cómicas que
Whale viria a revelar na sua sequela, mas essa é uma discussão para outro dia.
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