sexta-feira, 9 de outubro de 2015

’71 (2014) de Yann Demange



 Jack O’Connell continua a sua ascensão como um dos mais falados jovens atores a emergirem do panorama britânico, tendo já ganho fama com Unbroken e aclamação da crítica por Starred Up. Aqui temos um filme que apenas chega a Portugal, mais de um ano e meio depois da sua estreia no Festival de Berlim no ano passado, sendo que aqui o jovem ator aparece-nos não como um presidiário ou um militar americano no Pacífico, mas sim como um jovem militar inglês que se vê perdido numa noite aterrorizante em Belfast durante 1971, um dos anos iniciais dos conflitos violentos na Irlanda do Norte que marcaram a segunda metade do século passado.

 Tal como nas suas outras célebres interpretações o ator mostra uma enorme fisicalidade no papel de Gary Hook, o protagonista de ’71, estando aqui na posição de substituto em cena para a audiência que, através da sua experiência e olhar amedrontado, vai observando o pesadelo vivo que Yann Demange conjura para a sua primeira longa-metragem. O subjetivismo que Demange monta à volta de Hook é particularmente intenso e bem utilizado nos momentos iniciais do filme, onde, depois de uma introdução a Hook no contexto de irmão mais velho e jovem recruta, somos inseridos nas ruas tumultuosas onde, durante uma intervenção do exército inglês, o caos e a violência rapidamente se instalam.

 Nestas sequências de confusão há algo de magnificamente imersivo no modo como Demange filma a ação, agarrando-se à experiência de Hook e intensificando o caos visual montagem frenética e confusa, que relembra o cinema de Peter Greengrass, assim como um primoroso uso do som exagerado e sua expressividade aterrorizante. Aqui todo o filme parece funcionar como um mecanismo bem oleado suportado pela simplicidade eficaz do retrato de O’Connell, cujo trabalho é, sem dúvida o ponto mais forte de todo o edifício do filme, Há uma dependência na experiência psicológica do jovem protagonista que conseguem tornar o filme numa experiência interessante, mesmo quando comparado a outras obras superiores sobre este mesmo tema.

 Mas, o filme rapidamente substitui o caos da ação diurna, por um pesadelo de noite à medida que Hook tenta sobreviver durante a noite, depois de se ter separado de seus colegas e deixado para trás. Aqui a fotografia e som do filme, mais do que realçarem o caos e a confusão sensorial experienciada pelo protagonista, mergulham numa recriação expressionista de um inferno na Terra, onde as ruas se iluminam pelas chamas de bombas e onde os sons de gritos e multidões em movimento violento inundam toda a nossa perceção. Aqui há algo de impressionante na conjugação de elementos do filme e no seu contraste com as sequências diurnas, sendo que passamos do caos à miserável e sofredora odisseia de uma noite de pesadelo que relembra o clássico de Carol Reed, Odd Man Out. Comparações assim, há que dizer, não são particularmente benéficas para ’71, apesar dos meus iniciais elogios.

 Longe de se limitarem apenas à fascinante exploração da experiência individual e subjetiva de Hook, Demange e Gregory Burke, que escreveu o texto, decidem usar Hook como um ferramenta de observação e reação, estando bem mas interessados na criação de uma trama de manipulações e simples moralismos que se desenrola à volta do jovem e que é particularmente despoletado por uma explosão acidental, cujo rescaldo é o último momento de plena grandeza que o filme consegue alcançar. Fações do IRA, do exército Inglês e dos MRF culpabilizam-se e manipulam-se mutuamente, sendo que aqui temos uma teia de corrupção e amoralidade no estado de guerra em que se encontra Belfast.

 Eu não tenho problemas com a ambição de construir um conto de moralidade a partir de um momento específico na História política do século XX, sendo que, volto a referir, Odd Man Out de Reed e, aqui a comparação é impossível de evitar, Bloody Sunday de Greengrass já andaram por semelhante terreno. No entanto, ao contrário desses outros filmes há algo de incrivelmente banal e inconsequente na história que o filme conjura, sendo que os autores do filme, apesar da sua escolha de lugar e tempo, parecem ter decidido evitar qualquer complexidade ou exploração da política e ideologias que estavam por detrás dos eventos aqui retratados. Pergunto-me porque decidiram aqui situar o seu filme, se foi por reconhecimento popular, e pelo impacto que ainda se consegue sentir na mente popular, ou se haveriam intenções de mais interessante exploração que foram simplesmente perdidos no desenvolvimento do projeto. Independentemente do que era inicialmente pretendido, há algo de invariavelmente desapontante no modo como o filme ignora qualquer complexidade nas motivações das suas personagens e fações e apenas conjura uma visão de amoralidade básica e sem qualquer nuance.

 Isto é uma pena, especialmente no que diz respeito ao trabalho de O’Connell, cuja personagem se vai perdendo à medida que o filme avança, sendo que no início, apesar da sua simplicidade, havia um ênfase na sua reação, que se vai perdendo à medida que o filme foge a noções de subjetividade em volta de Hook, sendo que no final ele é mais cifra que humano. O resto do elenco para além do protagonista também fazem um bom trabalho apesar dos esboços simplistas que têm de interpretar. Sean Harris é particularmente memorável na sua oleosa presença e desconfortável autoridade.

  O filme vai assim caindo numa espiral de banalidade desinspirada, perdendo qualquer interesse conseguido na sua primeira porção cheia de sequências imersivas e um foco claustrofóbico no trabalho de O’Connell que consegue ser a principal graça desta obra. Para fãs do ator será essencial, mas para que se interesse pelo contexto histórico ou deseje uma obra de cinema com alguma complexidade e inovação, esta não será certamente uma experiência particularmente excecional. De qualquer modo, é um bom primeiro esforço para Yann Demange que, talvez, com um melhor texto e uma maior distância de fórmulas e rígidos convencionalismos consiga alcançar algum do triunfo que parece ser sugerido pelas sequências que acima referi e cuja intensidade não é completamente dispensável e esquecível, ao contrário da totalidade do filme em que se encontram.


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