Em 1995 despoletou-se,
no cinema de língua inglesa, uma explosão de adaptações da obra literária deJane Austen, que durou anos e que também incluiu a televisão, nomeadamente as produções da BBC. De todas essas adaptações, esta versão de Sensibilidade e Bom Senso permanece, na minha mente e opinião, como
a que é claramente superior a todas as outras, sendo que essa superioridade se
deve invariavelmente a dois sonantes nomes do cinema. Emma Thomspon e Ang Lee.
Da obra completa de Jane
Austen, o livro de onde este filme é adaptado foi o primeiro a ser escrito e,
comparando-o com as suas seguintes publicações, é algo bastante visível, tanto
em termos de ritmo como de diálogo. É por isso, talvez, a sua obra menos
apropriada a uma interpretação cinematográfica com os seus limites temporais e
estruturação própria, mas Emma Thompson consegue alcançar milagres com a sua
adaptação. O seu guião é uma das mais exímias adaptações que eu já vi,
condensando e sintetizando o livro, não pela criação de cenas de exposição
sucessivas ou pelo resumo da obra em passageiros momentos que representem todos
os movimentos do enredo literário, mas realmente adaptando o livro à sua visão
cinematográfica. Personagens são criadas, nomes mudados, o diálogo de Austen é
quase completamente cortado e reinventado mas, no entanto, é uma das adaptações
da obra da autora inglesa que mais parece manter as intenções e tonalidades
característicos do seu trabalho. Nunca perdendo o tom sardónico que tantas
adaptações de Austen parecem esquecer, Thompson cria aqui, não só uma belíssima
trama de romance e relações intrafamiliares, mas também um estudo sobre o papel
da mulher numa época passada, tanto a nível social como económico, obtendo um
dos mais belos e exatos retratos de uma sociedade passada, que nunca cai com o
peso da História, mantendo sempre uma agradável leveza e humor por entre o
drama fortemente humano.
E se o texto de
Thompson não fosse suficiente, o filme tem como realizador uma das mais
estranhas escolhas que eu já vi para a realização de um filme de época
britânico, Ang Lee. Em 1995, a obra do realizador resumia-se basicamente a
explorações da vida de famílias taiwanesas na contemporaneidade, estando
incrivelmente removido da herança cultural e literária contida na obra de Jane
Austen. No entanto, é fácil ver no seu trabalho uma contínua progressão dos
mesmos temas, e o seu inegável talento para o drama familiar e histórias de
emoções contidas e reprimidas volta-se a verificar aqui, com um guarda-roupa e
cenário diferente, mas a humanidade serena do seu trabalho evolui assim numa
espécie de continuidade cinemática. E essa serenidade é essencial na criação de
um dos mais dinâmicos e fulgurosos filmes de época a alguma vez emergirem da
literatura inglesa.
A câmara de Lee está
muitas vezes distante, filmando as personagens como elementos de pinturas,
muitas vezes paisagísticas, e encontrando uma harmonia visual tão presente nos
interiores ora opulentos ora austeros, ou nos verdejantes exteriores. Isto pode
parecer paradoxal, o dinamismo e a serenidade, mas tal é o génio de Lee, que
recria não só o visual de uma época mas toda uma atmosfera de códigos sociais e
regras nunca ditas ao mesmo tempo que filma calmamente um turbilhão emocional.
Há uma perspicácia precisa nos eu trabalho que é visto no modo como insiste em
usar o espaço, o lado coletivo do seu numeroso elenco, assim como a cor e o
clima na criação de um filme tão sensorialmente imediato que quase conseguimos
cheirar a relva húmida, mas que é tão distante e reticente que sentimos o peso
da sociedade em que a história se insere. As suas escolhas vão desde o subtil,
como o seu uso de vento a baloiçar os casacos pendurados em cabides num plano
de modo a indicar uma tempestade futura, assim como quebrando a superficial
calma de Elinor (Emma Thompson) com um movimento na periferia, e chegam mesmo
ao óbvio mas delicado, como o seu uso de retângulos e molduras arquitetónicas
para filmar Eleanor, o bom senso, e janelas para o exterior ou elementos curvos
como pianos para filmar Marianne (Kate Winslet), a sensibilidade.
Apercebo-me que ainda
pouco ou nada falei do enredo do filme mas não quero estragar o prazer de
descobrir o filme a quem ainda não o viu, tão maravilhoso que é, e penso que
quem leu o livro ou viu o filme não necessite de uma imediata lembrança sobre a
história que se centra sobretudo à volta da relação entre duas irmãs, Elinor e
Marianne, e suas histórias familiares e românticas após a morte de seu pai e
destituição da sua unidade familiar.
As irmãs, como já
disse, são interpretadas por Emma Thompson e Kate Winslet, alcançando com este
filme algum do melhor trabalho das suas carreiras como atrizes. Thompson tem o
papel da irmã sensata e severamente pragmática, reprimindo os seus desejos em
função da estabilidade e felicidade familiar. O seu timing e ritmo é perfeito, mostrando bem as raízes de Thompson na
comédia, mas o que realmente impressiona é a sua expressividade facial e o modo
como estabelece uma complexa e conflituosa interioridade a Elinor, que na sua
ordem e abnegação existe maioritariamente como uma presença reacionária e
moderadora do que acontece à sua volta. Tenho de dizer, no entanto, que a sua
reação no momento mais romântico na trajetória da sua personagem é magnífico,
tornando uma explosão emocional, não numa cena de Óscar, mas numa humorística
reinterpretação de um momento pesado e dramático.
Se Thompson é precisa
e contida, Winslet é uma revelação de emoção e energia controlada, Há uma
imaturidade na personagem que parece ameaçar insurgir-se a qualquer momento,
que no entanto é modulada por uma precisão magistral e momentos de
surpreendente calma e sensatez que insinuam uma grande complexidade à
personagem. Há algo de fogosa heroína romântica no seu trabalho misturado com a
ideia que Marianne apesar da sua impetuosidade é uma jovem mulher que sabe
manejar a sociedade rígida em que se encontra. A sua inocência é sempre
temperado com momentos em que olhares e expressões faciais sugerem uma maior
maturidade e perspicácia do que, superficialmente, se poderia atribuir a uma
personagem que existe como uma espécie de personificação de sensibilidade
feminina. Eu diria mesmo que o grande sucesso das duas atrizes está no modo
como ambas contrariam a possível simplicidade das personagens, nunca agarrando
os conceitos principais do texto de Austen, mas deixando transparecer duas
irmãs complexas, humanas e longe de qualquer estereótipo simplisticamente
romântico.
O resto do elenco é
igualmente soberbo, mas falar de cada ator individualmente seria ridículo nem
que seja pela simples vastidão do elenco, onde se encontram alguns dos melhores
atores ingleses em atividade em 1995. Um dos grandes prazeres do filme é,
aliás, simplesmente observar a coleção de personagens criadas por Austen e
Thompson a interagir, viver e conviver. O trabalho exímio de Lee, do diretor de
fotografia Michael Coulter, e de Tim Squyres que ao montar o filme permite a
existência de um olhar geral onde combinações de planos gerais, médios e
ocasionais grandes planos, oferecem um retrato coletivo do elenco. A sua
habilidade em estabelecer ritmos precisos, não só nas cenas individuais ou nos extensivos
diálogos, mas também no ritmo geral do filme, permite que Sense & Sensibility, apesar da sua considerável duração, se
desenrole num delicado mas fluido movimento, nunca caindo em tempos mortos, e
sempre com uma serenidade que deixa a audiência respirar por entre as
complexidades do enredo e da historia emocional das protagonistas.
E há que louvar o
trabalho dos outros membros da equipa criativa, sendo que o filme é
praticamente perfeito em todos os aspetos imaginários. Os figurinos de John
Bright e Jenny Beavan e cenografia de Luciana Arrighi são irrepreensíveis
recreações do mundo da sociedade inglesa do final do século XVIII, sendo os
figurinos particularmente cruciais na visualização da estratificação social e
económica, como numa brilhante cena num baile em que, à medida que as
protagonistas avançam por entre diferentes salas, as vestes dos convidados se
vão tornando cada vez mais luxuosas. Os cenários são de particular genialidade
quando filmados por Michael Coulter que transforma paredes despidas com
pequenos apontamentos de mobília modesta numa pintura de Vermeer tornada viva.
Mesmo a música de Patrick Doyle é absolutamente magnífica, encontrando um
balanço entre jovialidade, romantismo arrebatador e delicada melancolia nas
suas composições, que ainda hoje não consigo arrancar da minha cabeça.
Mesmo assim, apesar
de tudo o que já disse, parece-me que ainda falta mencionar tanta coisa do
filme, tal é o tamanho do seu triunfo. Gostaria principalmente de celebrar o
modo como, apesar de ser essencialmente um romance de época com traços de
sátira social, o filme tem em si uma enorme complexidão de temas e intenções,
desde a desconstrução subtil tanto do herói romântico literário como do seu
equivalente cinemático, ou o modo como parece haver uma tentativa de evitar o
dramatismo usual em tais filmes, tanto da parte do realizador como do elenco, e
que confere ao filme uma subtileza emocional que tanto expressa a atmosfera de
uma época passada como separa o filme de tantos outros melodramas crassos.
Para encerrar esta
jubilante celebração desta essencial obra de Ang Lee, há que mencionar o final
do filme, talvez a mais clara exemplificação de tudo o que até agora disse. O
esplendor visual e sonoro é obvio nestes momentos em que vemos o casamento
triunfal de Marianne, mas, para além disso, temos grande parte do elenco
presente, cada um no seu registo cómico trágico particular, assim como temas a mistura
precisa de camadas temáticas que tanto caracterizam o filme, sendo que a imagem
final do filme, apesar do caracter romântico da cena, não poderia ser mais
sardónico e cortante no seu comentário sobre a sociedade e sobre as pessoas que
temos vindo a acompanhar. O noivo atira moedas ao ar, uma tradição antiga
local, e as pessoas ora olham maravilhadas para cima ora tentam agarrar o que
conseguem, independentemente da sua condição social. No final, apesar de todo o
romantismo e sofrimento emocional, a celebração que pontua o último suspiro do
filme é caracterizada por dinheiro, estando o dinheiro, a propriedade e o poder
económico no centro de todas as interações do filme, mesmo as mais românticas e
sentimentais. O espírito da obra de Austen perfeitamente capturado num momento
passageiro, uma sátira precisa, um romance tocante, e maravilhosamente
concretizado numa irrepreensível visão e interpretação cinemática.
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