sexta-feira, 23 de outubro de 2015

SENSE & SENSIBILITY (1995) de Ang Lee

 Hoje é o aniversário de Ang Lee, o célebre autor taiwanês, e, como modo de celebração, decidi revisitar Sensibilidade e Bom Senso, um dos seus melhores filmes.


 Em 1995 despoletou-se, no cinema de língua inglesa, uma explosão de adaptações da obra literária deJane Austen, que durou anos e que também incluiu a televisão, nomeadamente as produções da BBC. De todas essas adaptações, esta versão de Sensibilidade e Bom Senso permanece, na minha mente e opinião, como a que é claramente superior a todas as outras, sendo que essa superioridade se deve invariavelmente a dois sonantes nomes do cinema. Emma Thomspon e Ang Lee.

 Da obra completa de Jane Austen, o livro de onde este filme é adaptado foi o primeiro a ser escrito e, comparando-o com as suas seguintes publicações, é algo bastante visível, tanto em termos de ritmo como de diálogo. É por isso, talvez, a sua obra menos apropriada a uma interpretação cinematográfica com os seus limites temporais e estruturação própria, mas Emma Thompson consegue alcançar milagres com a sua adaptação. O seu guião é uma das mais exímias adaptações que eu já vi, condensando e sintetizando o livro, não pela criação de cenas de exposição sucessivas ou pelo resumo da obra em passageiros momentos que representem todos os movimentos do enredo literário, mas realmente adaptando o livro à sua visão cinematográfica. Personagens são criadas, nomes mudados, o diálogo de Austen é quase completamente cortado e reinventado mas, no entanto, é uma das adaptações da obra da autora inglesa que mais parece manter as intenções e tonalidades característicos do seu trabalho. Nunca perdendo o tom sardónico que tantas adaptações de Austen parecem esquecer, Thompson cria aqui, não só uma belíssima trama de romance e relações intrafamiliares, mas também um estudo sobre o papel da mulher numa época passada, tanto a nível social como económico, obtendo um dos mais belos e exatos retratos de uma sociedade passada, que nunca cai com o peso da História, mantendo sempre uma agradável leveza e humor por entre o drama fortemente humano.

 E se o texto de Thompson não fosse suficiente, o filme tem como realizador uma das mais estranhas escolhas que eu já vi para a realização de um filme de época britânico, Ang Lee. Em 1995, a obra do realizador resumia-se basicamente a explorações da vida de famílias taiwanesas na contemporaneidade, estando incrivelmente removido da herança cultural e literária contida na obra de Jane Austen. No entanto, é fácil ver no seu trabalho uma contínua progressão dos mesmos temas, e o seu inegável talento para o drama familiar e histórias de emoções contidas e reprimidas volta-se a verificar aqui, com um guarda-roupa e cenário diferente, mas a humanidade serena do seu trabalho evolui assim numa espécie de continuidade cinemática. E essa serenidade é essencial na criação de um dos mais dinâmicos e fulgurosos filmes de época a alguma vez emergirem da literatura inglesa.

 A câmara de Lee está muitas vezes distante, filmando as personagens como elementos de pinturas, 
muitas vezes paisagísticas, e encontrando uma harmonia visual tão presente nos interiores ora opulentos ora austeros, ou nos verdejantes exteriores. Isto pode parecer paradoxal, o dinamismo e a serenidade, mas tal é o génio de Lee, que recria não só o visual de uma época mas toda uma atmosfera de códigos sociais e regras nunca ditas ao mesmo tempo que filma calmamente um turbilhão emocional. Há uma perspicácia precisa nos eu trabalho que é visto no modo como insiste em usar o espaço, o lado coletivo do seu numeroso elenco, assim como a cor e o clima na criação de um filme tão sensorialmente imediato que quase conseguimos cheirar a relva húmida, mas que é tão distante e reticente que sentimos o peso da sociedade em que a história se insere. As suas escolhas vão desde o subtil, como o seu uso de vento a baloiçar os casacos pendurados em cabides num plano de modo a indicar uma tempestade futura, assim como quebrando a superficial calma de Elinor (Emma Thompson) com um movimento na periferia, e chegam mesmo ao óbvio mas delicado, como o seu uso de retângulos e molduras arquitetónicas para filmar Eleanor, o bom senso, e janelas para o exterior ou elementos curvos como pianos para filmar Marianne (Kate Winslet), a sensibilidade.
 Apercebo-me que ainda pouco ou nada falei do enredo do filme mas não quero estragar o prazer de descobrir o filme a quem ainda não o viu, tão maravilhoso que é, e penso que quem leu o livro ou viu o filme não necessite de uma imediata lembrança sobre a história que se centra sobretudo à volta da relação entre duas irmãs, Elinor e Marianne, e suas histórias familiares e românticas após a morte de seu pai e destituição da sua unidade familiar.

 As irmãs, como já disse, são interpretadas por Emma Thompson e Kate Winslet, alcançando com este filme algum do melhor trabalho das suas carreiras como atrizes. Thompson tem o papel da irmã sensata e severamente pragmática, reprimindo os seus desejos em função da estabilidade e felicidade familiar. O seu timing e ritmo é perfeito, mostrando bem as raízes de Thompson na comédia, mas o que realmente impressiona é a sua expressividade facial e o modo como estabelece uma complexa e conflituosa interioridade a Elinor, que na sua ordem e abnegação existe maioritariamente como uma presença reacionária e moderadora do que acontece à sua volta. Tenho de dizer, no entanto, que a sua reação no momento mais romântico na trajetória da sua personagem é magnífico, tornando uma explosão emocional, não numa cena de Óscar, mas numa humorística reinterpretação de um momento pesado e dramático.

 Se Thompson é precisa e contida, Winslet é uma revelação de emoção e energia controlada, Há uma imaturidade na personagem que parece ameaçar insurgir-se a qualquer momento, que no entanto é modulada por uma precisão magistral e momentos de surpreendente calma e sensatez que insinuam uma grande complexidade à personagem. Há algo de fogosa heroína romântica no seu trabalho misturado com a ideia que Marianne apesar da sua impetuosidade é uma jovem mulher que sabe manejar a sociedade rígida em que se encontra. A sua inocência é sempre temperado com momentos em que olhares e expressões faciais sugerem uma maior maturidade e perspicácia do que, superficialmente, se poderia atribuir a uma personagem que existe como uma espécie de personificação de sensibilidade feminina. Eu diria mesmo que o grande sucesso das duas atrizes está no modo como ambas contrariam a possível simplicidade das personagens, nunca agarrando os conceitos principais do texto de Austen, mas deixando transparecer duas irmãs complexas, humanas e longe de qualquer estereótipo simplisticamente romântico.

  O resto do elenco é igualmente soberbo, mas falar de cada ator individualmente seria ridículo nem que seja pela simples vastidão do elenco, onde se encontram alguns dos melhores atores ingleses em atividade em 1995. Um dos grandes prazeres do filme é, aliás, simplesmente observar a coleção de personagens criadas por Austen e Thompson a interagir, viver e conviver. O trabalho exímio de Lee, do diretor de fotografia Michael Coulter, e de Tim Squyres que ao montar o filme permite a existência de um olhar geral onde combinações de planos gerais, médios e ocasionais grandes planos, oferecem um retrato coletivo do elenco. A sua habilidade em estabelecer ritmos precisos, não só nas cenas individuais ou nos extensivos diálogos, mas também no ritmo geral do filme, permite que Sense & Sensibility, apesar da sua considerável duração, se desenrole num delicado mas fluido movimento, nunca caindo em tempos mortos, e sempre com uma serenidade que deixa a audiência respirar por entre as complexidades do enredo e da historia emocional das protagonistas.

 E há que louvar o trabalho dos outros membros da equipa criativa, sendo que o filme é praticamente perfeito em todos os aspetos imaginários. Os figurinos de John Bright e Jenny Beavan e cenografia de Luciana Arrighi são irrepreensíveis recreações do mundo da sociedade inglesa do final do século XVIII, sendo os figurinos particularmente cruciais na visualização da estratificação social e económica, como numa brilhante cena num baile em que, à medida que as protagonistas avançam por entre diferentes salas, as vestes dos convidados se vão tornando cada vez mais luxuosas. Os cenários são de particular genialidade quando filmados por Michael Coulter que transforma paredes despidas com pequenos apontamentos de mobília modesta numa pintura de Vermeer tornada viva. Mesmo a música de Patrick Doyle é absolutamente magnífica, encontrando um balanço entre jovialidade, romantismo arrebatador e delicada melancolia nas suas composições, que ainda hoje não consigo arrancar da minha cabeça.

 Mesmo assim, apesar de tudo o que já disse, parece-me que ainda falta mencionar tanta coisa do filme, tal é o tamanho do seu triunfo. Gostaria principalmente de celebrar o modo como, apesar de ser essencialmente um romance de época com traços de sátira social, o filme tem em si uma enorme complexidão de temas e intenções, desde a desconstrução subtil tanto do herói romântico literário como do seu equivalente cinemático, ou o modo como parece haver uma tentativa de evitar o dramatismo usual em tais filmes, tanto da parte do realizador como do elenco, e que confere ao filme uma subtileza emocional que tanto expressa a atmosfera de uma época passada como separa o filme de tantos outros melodramas crassos.

 Para encerrar esta jubilante celebração desta essencial obra de Ang Lee, há que mencionar o final do filme, talvez a mais clara exemplificação de tudo o que até agora disse. O esplendor visual e sonoro é obvio nestes momentos em que vemos o casamento triunfal de Marianne, mas, para além disso, temos grande parte do elenco presente, cada um no seu registo cómico trágico particular, assim como temas a mistura precisa de camadas temáticas que tanto caracterizam o filme, sendo que a imagem final do filme, apesar do caracter romântico da cena, não poderia ser mais sardónico e cortante no seu comentário sobre a sociedade e sobre as pessoas que temos vindo a acompanhar. O noivo atira moedas ao ar, uma tradição antiga local, e as pessoas ora olham maravilhadas para cima ora tentam agarrar o que conseguem, independentemente da sua condição social. No final, apesar de todo o romantismo e sofrimento emocional, a celebração que pontua o último suspiro do filme é caracterizada por dinheiro, estando o dinheiro, a propriedade e o poder económico no centro de todas as interações do filme, mesmo as mais românticas e sentimentais. O espírito da obra de Austen perfeitamente capturado num momento passageiro, uma sátira precisa, um romance tocante, e maravilhosamente concretizado numa irrepreensível visão e interpretação cinemática.



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