sábado, 24 de outubro de 2015

HOWARDS END (1992) de James Ivory

Depois de revisitar Um Quarto com Vista sobre a Cidade e Sensibilidade e Bom Senso, pareceu-me apta uma reflexão sobre Howards End. o filme de James Ivory que valeu a Emma Thompson o Óscar de Melhor Atriz.


 Uma saia de seda é arrastada por entre relva húmida e flores coloridas durante uma noite luminosa. Vanessa Redgrave é quem veste esse vestido, etérea e maravilhosa ela flutua pelo ecrã, passando pelas flores, tocando o seu colar, o seu cabelo como uma incerteza melancólica. Uma adaptação de Richard Robbins da Bridal Lullaby de Percy Grainger toca na paisagem sonora do filme. Uma imagem de melancolia romântica como poucas existem. Uma serenidade absoluta de uma alma solitária e que olha a beleza à sua volta como se percebesse a sua efemeridade e a tentasse absorver numa última caminhada noturna. Dentro de uma magnífica casa de campo vemos, pela janela, a família da mulher, animada e sonora do mesmo modo que a figura que seguimos é calma e silenciosa. Assim começa Howard End de James Ivory, produzido por Ismail Merchant e adaptado do livro de E. M. Forster por Ruth Prawer Jhabvala.

 Esses três nomes são para muitos cinéfilos uma marca de prestígio inglês ossificado e banal, são marcas de um tipo de cinema burguês e desinteressante em que adaptações literárias de obras antigas são expostas como aborrecidos filmes com visuais extravagantes e requintados, e um vazio absoluto como só o mais pueril dos filmes destinado unicamente a ganhar Óscares consegue ser. Para mim essa reputação é infundada e impede muita gente de realmente apreciar o trabalho, por vezes, magnífico que esta equipa conseguiu criar, como é o caso deste filme. É verdade que na sua filmografia se estendem uma infinidade cada vez mais numerosa de poeirentos e sufocantes adaptações literárias sem interesse, mas basta olharmos para Howards End para nos apercebermos que as acusações de superficialidade e simplificação burguesa são, francamente, estúpidas e redutivas, não fosse este um dos seus mais cruéis filmes apesar da beleza do final. Na sua filmografia, penso que apenas Quartet consegue alcançar tais níveis de deprimente crueldade por entre o espetáculo requintado da recriação de uma sociedade de outros tempos.

 O filme é, tal como a obra que lhe deu origem, uma exploração, essencialmente, de valores e classes e o modo como estes afetam e pervertem as relações humanas presentes no seu enredo. Não querendo perder muito tempo e latim a descrever o enredo complicado de um filme com 23 anos e de um livro com 105, vou simplesmente esboçar alguma da informação essencial. A mulher que vemos na intoxicante abertura do filme é Ruth Wilcox, a matriarca de uma família abastada que se vê intrinsecamente ligada a uma outra família, esta de uma classe burguesa claramente inferior à sua, os Schlegel. Um dos filhos de Ruth pede, no início do filme, a mão da radical e impetuosa Helen Schlegel (Helena Bonham-Carter) em casamento, para na manhã seguinte retrair o seu impulso, acabando por traçar o caminho inseparável das suas famílias numa espécie de caminho fatalista que pode apenas acabar em tragédia. Acompanhamos, meses mais tarde, Margaret (Emma Thompson), a irmã de Helen, a estabelecer uma amizade próxima com Ruth que, aquando da sua morte, decide deixar a sua mais preciosa posse, a casa que vemos no início do filme e que dá titulo à obra, à sua amiga. Os Wilcox desrespeitam, por variadas razões e racionalizações, o desejo da matriarca moribunda e escondem a informação de Margaret. Entretanto os Schlegel formam uma ligação com um casal de classe trabalhadora, os Bast, acabando por, devido a informações erróneas de Henry Wilcox (Anthony Hopkins), influenciar Leonard Bast (Samuel West) a um caminho profissional que resulta no seu desemprego e miséria financeira para a si e sua mulher. Helen toma o casal como uma causa social ao mesmo tempo que Margaret se torna noiva do agora viúvo Henry, tomando a posição outrora ocupada por Ruth. Muito mais que isto acontece, e levando a um final trágico e altamente simbólico em Howards End, mas esta descrição já atingiu demasiado comprimento e é melhor acabá-la aqui.

 O enredo é tão convoluto como uma telenovela, mas contém em si uma densidade temática e desenvolvimento de personagens que não são certamente de menosprezar. E tais complexidades e densidades são maravilhosamente apresentados, tanto pelo claro e contido argumento do filme, como por um dos melhores elencos alguma vez reunidos para um filme da dupla Merchant Ivory. Parte do grande sucesso do filme provém da junção desses dois elementos, o texto e o elenco, criando uma coleção de personagens que tanto são fortíssimos arquétipos para uma representação simbólica da sociedade Eduardina como são seres humanos cheios de contradições e peculiaridades.

 As irmãs que ocupam grande parte do foco do filme são de particular mérito. Margaret, um papel e interpretação que valerão à sublime Emma Thompson um muito merecido Óscar, é uma figura particularmente complicada, uma pessoa intrinsecamente “boa” no sentido menos sarcástico da palavra e uma burguesa de pretensões liberais e intelectuais que, no entanto, caminha de livre vontade para uma existência subserviente a um marido conservador e uma família de valores claramente antagónicos aos seus. Há algo de jubilante e jovial no trabalho de Thompson, um despretensiosíssimo que esconde uma mulher claramente ciente da sociedade em que se encontra. As expressões silenciosas da atriz exploram muito mais as escolhas contraditórias de Margaret muito mais que o texto, criando alguém que tenta apelar furiosamente a um racionalismo moral perante a petulância orgulhosa dos Wilcox, e que noutro momento próximo perdoa qualquer transgressão do marido com uma piedade e empatia estranha para uma mentalidade contemporânea. Margaret é claramente, apesar das suas opiniões políticas e intelectuais, uma mulher burguesa do seu tempo, sendo que é por isso muito mais difícil de compreender que a sua radical irmã interpretada por Helena Bonham Carter como uma presença irrascível e moralmente muito mais próxima de um standard contemporâneo que a sua irmã. A fúria e paixão de Helen, especialmente em relação a Bast, são, apesar do que disse, maravilhosamente moduladas pela atriz e pelo filme, mostrando quão Helen usa os Bast, mais do que como seres humanos iguais a si, mas como uma causa social e uma visão de um sofrimento romântico pela qual ela na sua condição de mulher de confortável classe média e aspirações intelectuais tem o dever de ajudar como uma benevolente salvadora. No olhar de Ivory e na interpretação das atrizes existe um cinismo que contamina os mais joviais ou emocionais momentos, originando uma crítica social que se estende para além das classes mais abastadas e acusa também uma classe média dita liberal e de pensamento educado e artístico, apontando o dedo, de modo subtil, não só às suas personagens como também à audiência que muitos dos críticos acusam de ser o público típico deste filme e de outras respeitáveis adaptações de obras literárias importantes.

 No caso dos Wilcox, a complexidade é tão ou mais fascinante que nos Schlegel. Se as duas irmãs representam uma classe média que se identifica com os extremos sociais da sua estrutura social como modo de autodefinição e vivência, os Wilcox estão firmemente estabelecidos como uma família abastada e conservadora. Mas esse conservadorismo não é simplista e básico como poderia ser, aparecendo em várias formas, nomeadamente nas três principais figuras da família, Henry, Charles e Ruth.

 Destes o mais extremo e alienante é Charles, interpretado por James Wilby num registo de elitismo snob a que iria ocasionalmente voltar em papeis semelhantes. O seu conservadorismo é voraz, mostrando alguém a quem o mundo tudo parece dever, mais ainda do que nas outras figuras que povoam o filme, em Charles a sua existência e sua condição na estrutura social são inseparáveis. É o mais caricaturado e arquetipado dos Wilcox, sendo praticamente impossível para uma audiência simpatizar com ele, especialmente em alguns dos últimos momentos do filme em que, depois de um crime provocado pelo seu orgulho e valores aristocráticos, Charles tenta explicar e comandar a polícia numa atitude de superioridade social e existencial tanto sobre as autoridades como sobre a sua vítima. A crítica, em Charles, não é particularmente subtil ou complexa, ao contrário do que acontece com as figuras de seus pais. Henry é, por exemplo, bastante diferente como comandado por Anthony Hopkins no pico dos seus talentos e importância cinemática. Uma tormenta contínua de maneirismos e afetações rígidas, Henry é um capitalista conservador e orgulhoso com um pragmatismo impiedoso e uma filosofia francamente repugnante. Mesmo assim. Há uma humanidade latente na sua figura, uma insegurança tão vulnerável como manipuladora. As cenas partilhadas com Thompson são de particular génio e contraste, um par de humanos com valores completamente diferentes em luta continua por entendimento e comunicação.

 Mas é a Ruth de Vanessa Redgrave que realmente mostra o perfeito triunfo do filme, desde a sua entrada quase mística por entre os jardins noturnos de Howards End até à sua morte numa severa cama de hospital, Redgrave incorpora uma visão de tradicionalismo confortável e quase romântico na sua simplicidade. Para além de Margaret ela é a única pessoa que se poderia descrever como “boa”. A sua simplicidade e desejo por conforto e felicidade estão sempre marcados por uma melancolia permanente. Um fatalismo misturado com uma delicadeza de presença e movimento fantasmagórico que a torna num fantasma mesmo antes da sua morte. Ela é uma elegante figura de outro tempo, mas na sua simplicidade e inocência intelectual e social encontra-se alguma da mais lacerante humanidade do filme. A sua perda é sentida como uma explosão silenciosa que abala todo o filme, e a sua presença é, talvez, a mais perversa criação do filme. Nesta crítica social e exploração de valores antigos, é a mais tradicional e subserviente das personagens que parece encontrar algum nível de humanidade e felicidade pura na sua existência simples e delicada.~

 O resto do elenco é igualmente exemplar, sendo que os Bast são de particular menção por encontrarem uma visão de autovitimização e grotesco por entre a miséria que devem representar na estrutura do enredo. Ivory e o seu diretor de fotografia Tony Pierce-Roberts mostram Leonard como um herói auto romantizado, como se ele se transformasse a si mesmo no ideal de herói martirizado visionado por Helen para a sua pessoa. E é precisamente nesse tipo de uso dos visuais que Ivory mostra um estilo e personalidade que muitas vezes parecem ausentes dos seus outros filmes. Num filme em que as superfícies sociais se impõem a tudo, o modo como os visuais, e até a música, se revelam num distanciamento elegante e requintado é em si uma observação crítica e interpretativa da prosa de Forster.

 Num filme tão focado na posse, tanto de propriedade como de poder económico e até de seres humanos, é de esperar que o mundo material das personagens fosse cuidadosamente construído. A superficialidade da recriação histórica com que muita gente critica este tipo de cinema é crucial neste filme, criando um mundo de superfícies e em que uma pessoa e definida e se define pelas roupas que veste, pela mobília das suas casas. O historicismo elegante não é apenas decoração, mas sim tão fulcral para o filme como o trabalho dos atores e merecedor de semelhantes elogios pelo seu primor e precisão.

 No panorama das adaptações literárias em cinema, este filme é um triunfo, mas, para além disso, é um brilhante filme por si só, independente de quaisquer heranças ao trabalho de Forster, é um filme complexo e incrivelmente sofisticado, que esconde por detrás do seu tradicionalismo, uma crítica e exploração humana tão elegante como cortante.

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