sexta-feira, 30 de outubro de 2015

NO HOME MOVIE (2015) de Chantal Akerman

 Tive a recente oportunidade de ver, nesta edição do DocLisboa, No Home Movie, o derradeiro filme da grande Chantal Akerman. Um retrato de estranha intimidade em que tanto é retratado um sujeito, aqui a mãe da realizadora, como é registado algo muito mais efémero e surpreendente, a implacável passagem do tempo. Para quem ainda desejar ver o filme, ele volta a ser exibido dia 1 de Novembro.


 É impossível escrever, discutir ou pensar sobre No Home Movie sem ter em conta que esta obra é o último filme da cineasta experimental belga Chantal Akerman. A autora tem-se mostrado ao longo das últimas décadas como uma das mais singulares vozes no panorama do cinema contemporâneo e neste seu derradeiro filme, longe de ser um testamento ou um culminar do trabalho da sua vida, é um seguimento lógico e luxuriantemente íntimo da oeuvre que a artista tinha vindo a desenvolver.
 Talvez seja necessária alguma contextualização para melhor se perceber o impacto do filme. A obra final a que chamamos No Home Movie é construída a partir de filmagens soltas que a realizadora tinha vindo a acumular ao longo dos anos. Com a morte da sua mãe, Akerman finalmente editou as imensas horas de material que tinha numa espécie de homenagem à sua mãe, mas uma homenagem que foge a qualquer noção de classicismo elegíaco a que estamos acostumados, não fosse este um filme de Chantal Akerman.

 Ao longo de duas horas vamos observando uma coleção de momentos perfeitamente mundanos, a maioria em volta da mãe da realizadora. A partir de conversas entre mãe e filha, especialmente as conversas que decorrem durante as refeições, vamo-nos informando sobre o passado da família, o modo como Natalia Akerman fugiu da Polónia para a Bélgica, como a família viveu durante o Holocausto, tendo Natalia sido prisioneira em Auschwitz, o modo como o pai de Chantal renunciou a práticas ortodoxas, etc. Há algo de perverso, mas revelador, no modo como à medida que vamos observando o definhar de Natalia ao longo dos anos, vamos apercebendo-nos cada vez mais da sua história, quando começamos a conseguir perceber este sujeito do filme, ele começa a se desvanecer. O tempo que passa é apenas percecionado por fugazes porções de conversas mal ouvidas e pelo progressivo estado de fragilização da mãe da realizadora. O próprio apartamento na Bélgica é explorado em modo semelhante, a “home” do título que com a morte de Natalia deixa de ser um lar, e passa a ser mais um lugar vazio.

 O tempo e o seu passar, talvez até mais que Natalia Akerman, é o grande sujeito do filme, o modo como a vida humana é passageira e efémera na passagem do tempo. O filme começa logo com uma imagem que força a audiência a refletir sobre o simples passar dos minutos. Uma árvore no meio do deserto é violentamente fustigada pelo vento é a imagem que inicia o filme e que dura vários minutos como que desafiando a sua audiência a sair da sala de cinema, ou melhor suplicando aos seus espetadores que tenham a generosidade de se deixarem levar pelo filme e suas ideias, sua passagem temporal pelas suas vidas. E é a partir dessa subtil e quase hipnotizante passagem do tempo mesclada com a mundanidade da observação de Akerman sobre sua mãe que aparece este filme, um dos mais avassaladoramente íntimos retratos numa carreira grandemente dedicada a criar retratos cinematográficos de figuras femininas fictícias e reais.

 Ao longo de toda a obra, Akerman vai cortando para momentos que são quase abstratos, contrastando fortemente com a observação simples e direta das porções dentro de apartamentos. Falo da sua recorrência às imagens do deserto israelita onde se inclui a primeira imagem do filme. Quando, numa conversa por Skype com a mãe, Chantal afirma que hoje em dia já não existe distância, há algo que parece ser impossivelmente falso nesta reflexão cinemática posterior a essa conversa. Há uma distância continental entre mãe e filha que parece explodir em fisicalidade descontextualizada nas cenas do deserto, mas também há a distância da autora da história da sua família e mesmo a distância da autora belga. No final do filme, o espaço habitado pela mãe, o apartamento, a Bélgica, parecem morrer, ficam vazios e deixam de estar próximos de Akerman. A distância e o tempo como barreiras e como inescapáveis aspetos da existência são conceitos que todo o filme permeiam, influenciando a leitura de uma audiência e criando, mesmo nos momentos mais joviais e relaxados, uma estranha melancolia.

Tenho, no entanto, de admitir que me é difícil olhar este filme sem melancolia, pelo que a minha visão da obra final possa estar contaminada de modo invariável. Para um fã da realizadora que há pouco tempo a descobriu e estava desejoso de ver o seu mais recente filme no DocLisboa, a sua morte foi uma tragédia imensa e impossível de distanciar por completo da realidade da sua derradeira obra. Como último filme, mesmo que não planeado e não caindo em quaisquer noções de filme testamento, No Home Movie é uma das joias na filmografia de uma das mais singulares e importantes vozes criativas da história do cinema. Pelo menos é-o para mim e penso que para as audiências que estejam disponíveis e tenham generosidade suficiente para se deixarem hipnotizar pelos ritmos precisos e vagarosos e pelo olhar calmo e refletivo de Akerman nesta sua final obra.


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