Tive a
recente oportunidade de ver, nesta edição do DocLisboa, No Home Movie, o derradeiro filme da grande
Chantal Akerman. Um retrato de estranha intimidade em que tanto é retratado um
sujeito, aqui a mãe da realizadora, como é registado algo muito mais efémero e
surpreendente, a implacável passagem do tempo. Para quem ainda desejar ver o filme,
ele volta a ser exibido dia 1 de Novembro.
É impossível
escrever, discutir ou pensar sobre No
Home Movie sem ter em conta que esta obra é o último filme da cineasta
experimental belga Chantal Akerman. A autora tem-se mostrado ao longo das
últimas décadas como uma das mais singulares vozes no panorama do cinema
contemporâneo e neste seu derradeiro filme, longe de ser um testamento ou um
culminar do trabalho da sua vida, é um seguimento lógico e luxuriantemente
íntimo da oeuvre que a artista tinha vindo a desenvolver.
Talvez seja
necessária alguma contextualização para melhor se perceber o impacto do filme.
A obra final a que chamamos No Home Movie
é construída a partir de filmagens soltas que a realizadora tinha vindo a
acumular ao longo dos anos. Com a morte da sua mãe, Akerman finalmente editou
as imensas horas de material que tinha numa espécie de homenagem à sua mãe, mas
uma homenagem que foge a qualquer noção de classicismo elegíaco a que estamos
acostumados, não fosse este um filme de Chantal Akerman.
Ao longo de duas
horas vamos observando uma coleção de momentos perfeitamente mundanos, a
maioria em volta da mãe da realizadora. A partir de conversas entre mãe e
filha, especialmente as conversas que decorrem durante as refeições, vamo-nos
informando sobre o passado da família, o modo como Natalia Akerman fugiu da
Polónia para a Bélgica, como a família viveu durante o Holocausto, tendo
Natalia sido prisioneira em Auschwitz, o modo como o pai de Chantal renunciou a
práticas ortodoxas, etc. Há algo de perverso, mas revelador, no modo como à
medida que vamos observando o definhar de Natalia ao longo dos anos, vamos
apercebendo-nos cada vez mais da sua história, quando começamos a conseguir
perceber este sujeito do filme, ele começa a se desvanecer. O tempo que passa é
apenas percecionado por fugazes porções de conversas mal ouvidas e pelo
progressivo estado de fragilização da mãe da realizadora. O próprio apartamento
na Bélgica é explorado em modo semelhante, a “home” do título que com a morte
de Natalia deixa de ser um lar, e passa a ser mais um lugar vazio.
O tempo e o seu passar,
talvez até mais que Natalia Akerman, é o grande sujeito do filme, o modo como a
vida humana é passageira e efémera na passagem do tempo. O filme começa logo
com uma imagem que força a audiência a refletir sobre o simples passar dos
minutos. Uma árvore no meio do deserto é violentamente fustigada pelo vento é a
imagem que inicia o filme e que dura vários minutos como que desafiando a sua
audiência a sair da sala de cinema, ou melhor suplicando aos seus espetadores
que tenham a generosidade de se deixarem levar pelo filme e suas ideias, sua
passagem temporal pelas suas vidas. E é a partir dessa subtil e quase
hipnotizante passagem do tempo mesclada com a mundanidade da observação de
Akerman sobre sua mãe que aparece este filme, um dos mais avassaladoramente
íntimos retratos numa carreira grandemente dedicada a criar retratos
cinematográficos de figuras femininas fictícias e reais.
Ao longo de toda a
obra, Akerman vai cortando para momentos que são quase abstratos, contrastando
fortemente com a observação simples e direta das porções dentro de
apartamentos. Falo da sua recorrência às imagens do deserto israelita onde se
inclui a primeira imagem do filme. Quando, numa conversa por Skype com a mãe,
Chantal afirma que hoje em dia já não existe distância, há algo que parece ser
impossivelmente falso nesta reflexão cinemática posterior a essa conversa. Há
uma distância continental entre mãe e filha que parece explodir em fisicalidade
descontextualizada nas cenas do deserto, mas também há a distância da autora da
história da sua família e mesmo a distância da autora belga. No final do filme,
o espaço habitado pela mãe, o apartamento, a Bélgica, parecem morrer, ficam
vazios e deixam de estar próximos de Akerman. A distância e o tempo como
barreiras e como inescapáveis aspetos da existência são conceitos que todo o
filme permeiam, influenciando a leitura de uma audiência e criando, mesmo nos
momentos mais joviais e relaxados, uma estranha melancolia.
Tenho, no entanto, de admitir que me é difícil olhar este
filme sem melancolia, pelo que a minha visão da obra final possa estar contaminada
de modo invariável. Para um fã da realizadora que há pouco tempo a descobriu e
estava desejoso de ver o seu mais recente filme no DocLisboa, a sua morte foi
uma tragédia imensa e impossível de distanciar por completo da realidade da sua
derradeira obra. Como último filme, mesmo que não planeado e não caindo em
quaisquer noções de filme testamento, No
Home Movie é uma das joias na filmografia de uma das mais singulares e
importantes vozes criativas da história do cinema. Pelo menos é-o para mim e penso
que para as audiências que estejam disponíveis e tenham generosidade suficiente
para se deixarem hipnotizar pelos ritmos precisos e vagarosos e pelo olhar
calmo e refletivo de Akerman nesta sua final obra.
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