sábado, 17 de outubro de 2015

HANNA (2011) de Joe Wright

  Com o seu quarto filme, já vamos a mais de metade da filmografia de Joe Wright. Depois da ação exuberante de Hanna, com Saoirse Ronan e Cate Blanchett, já só faltam Anna Karenina e Pan, que se encontra agora nos cinemas.



 De um filme de prestígio inspirado numa inspiradora história verídica a uma mistura cinética de Jason Bourne com os contos de fada dos irmãos Grimm. Se em O Solista, Joe Wright criou o filme que menos explode com o seu luxuriante e exuberante estilo, com Hanna, o filme que se seguiu, ele cria uma obra em que o estilo é elevado a um volume ensurdecedor, consumindo qualquer sombra de subtileza ou nuance. A falta de primor narrativo ou mesmo de complexidade não são, contudo, impeditivas de Hanna ser um belíssimo espetáculo sensorial em que Wright cria uma desenfreada exposição de algumas das suas mais exuberantes ideias formais a um ritmo pulsante que vai movendo a audiência pelas visões alucinantes do realizador sem conceder muito tempo para pensamento racional. Ou pelo menos é assim que o filme começa.

 Hanna inicia-se com a brancura gélida de uma paisagem coberta de neve, aí encontramos a nossa protagonista que dá nome ao filme. Ela é interpretada por Saoirse Ronan, que nunca esteve mais pálida ou desumana que neste papel, e movimenta-se como um espírito assassino pela neve, caçando uma rena e lutando com seu pai, Erik (Eric Bana), antes de regressar à reclusa cabana onde os dois vivem isolados. Nessa solidão ártica, o pai tem criado a filha, como que preparando-a para ser uma autêntica máquina de matar em forma humana, e um dia dá-lhe uma máquina que irá enviar um sinal para a C.I.A., despoletando a captura de Hanna. Ele deixa-a sozinha sendo que a aparente missão da adolescente é simples, matar Marissa Wiegler (Cate Blanchett), uma maquiavélica agente americana que no passado terá resultado na morte da mãe de Hanna e na constante perseguição em que a bizarra unidade familiar da protagonista parece viver. A partir do momento em que o sinal é ativado, o filme torna-se numa sequência de perseguição contínua, passando por Marrocos, Espanha, Dinamarca e Alemanha. Pelo meio vamos encontrando uma série de outras personagens, algumas delas tremendamente bizarras, ao mesmo tempo que, especialmente na parte do filme passada em Berlim, descobrimos a origem de Hanna, cuja existência é aparentemente o resultado de uma experiência da C.I.A. para criar uma espécie de soldado perfeito.

O texto, para ser completamente honesto, não aguenta uma pinga de escrutínio antes de se desfazer em irracionalidade que desafia mesmo a estranheza desumana do mundo que Wright aqui conjurou. Não nos encontramos na nossa pressuposta realidade, mas sim numa fantasiosa e perversa visão do mundo contemporâneo em que tudo parece injetado por uma atmosfera de conto-de-fadas. Aqui Wright tenta, e falha na maioria das vezes, desenvolver uma série de ideias temáticas como a relação paternal e filial da família ensandecida no centro do filme, e mesmo alguma sátira social. Seria melhor, para a experiência de Hanna e para o próprio autor, afastar o filme de quaisquer impulsos satíricos que tenha em relação à sua vilã americana ou à família liberal privilegiada que momentaneamente acolhe a protagonista, assim como da sua horrenda paixão por diálogo expositivo na segunda metade do filme. Se Wright e equipa conseguissem manter o ritmo e a esplendorosa espetacularidade dos momentos altos de Hanna em todo o filme, sem se preocuparem com qualquer convenção narrativa, os resultados seriam muito mais interessantes que os rasgos de glória que vão aparecendo com cada vez menos frequência à medida que o filme avança.

 Onde toda a construção do filme realmente triunfa não é, portanto, nas suas ideias temáticas ou na sua narrativa, mas sim na sua técnica formidável e desavergonhada exuberância formal. Isso parece ter sido percebido pela própria publicidade do filme que no mesmo patamar que colocava o realizador colocava os Chemical Brothers, aqui responsáveis pela banda-sonora do filme. A música que se mescla com os efeitos sonoros numa maravilha de sonoridade quase expressionista, é um dos elementos centrais na criação de uma atmosfera hipnótica e fantasiosa, ao mesmo tempo que vai criando um ritmo frenético nos melhores momentos do filme. Mas não é só de louvar a sonoplastia, pois todos os elementos formais do filme são uma absoluta delícia. A montagem é tão crucial para a rapidez musculada do filme como a música, por vezes tornando-se reminiscente de videoclips na sua exuberância e noutras ocasiões conferindo um misticismo elegante à figura de Hanna, impedindo a audiência de ver os seus movimentos pelo espaço e dando-lhe, ainda mais que a maquilhagem e iluminação, a presença gasosa de um espectro. A cenografia é uma maravilha imensa com a cabana no meio da neve em que o filme abre, os ambientes inorganicamente curvos e acéticos da C.I.A., um clube de strip que transpira grotesca perversidade e mesmo o parque de diversões abandonado em que decorre o climax do filme com o seu simbolismo excessivo no que diz respeito aos contos dos irmãos Grimm.

 A habitar esse mundo de estranheza omnipresente e sonoridade expressionista, temos um elenco de personagens em que, miraculosamente, a pessoa que mais se assemelha a um ser humano do nosso mundo na sua interioridade e nas suas reações é Hanna, cujos maneirismos mecânicos e aparência espectral a removem de qualquer conceito de humanidade existente no mundo do filme. Isto é principalmente devido a Ronan que aqui torna esta ideia de um mecanismo mortífero em forma humana num ocasionalmente tocante retrato de uma adolescente insegura que se vai descobrindo a si próprio assim como o mundo em que vive. O restante elenco, com algumas entediantes exceções (Bana), parecem existir em diferentes planos de existência, desde a leve comédia satírica e desconfortável de Olivia Williams e Jessica Bardem, ao completo grotesco fantasioso de Tom Hollander, Martin Wuttke e Cate Blanchett. Esta última tem aqui dos seus mais exagerados trabalhos, desde a sua malvadez palpável ao seu sotaque texano que tende a cair no ridículo. Tecnicamente não existe complexidade no seu trabalho ou mesmo estilização interessante, mas há algo na abordagem direta e grosseira de Blanchett que torna o que, talvez, é das suas piores interpretações em algo absolutamente perfeito para Wirgler, que em si contém uma espécie de fusão entre o Lobo Mau, a Madrasta Malvada e Pam Landy.

 Muitas vezes oiço falar de forma, ou estilo, e conteúdo como se ambas fossem ideias mutuamente exclusivas ou como se uma existisse em oposição à outra. Para essas pessoas, este filme seria um exemplo do estilo acima do conteúdo, sendo isto muitas vezes uma crítica negativa de uma obra. Penso que esta é uma ridícula e bastante perniciosa dicotomia, sendo que aqui penso que o verdadeiro problema do filme é a insistência em impor algum conteúdo ao que acaba por ser um desfile de estilo hipnotizante. Sem a sua narrativa e backstory o filme seria ainda mais ideologicamente vazio do que já é, mas também fugiria aos convencionalismos narrativos que o impedem de ser a absoluta explosão estilística que parece estar sempre a insinuar ser. Apesar de alguns momentos mortos, incompetente narrativa, ideias simplistas, e exagero indisciplinado, Hanna é dos mais fascinantes filmes de Joe Wright, oferecendo em momentos como a fuga da protagonista por entre os corredores labirínticos de uma base subterrânea, um tipo de puro prazer cinético que é difícil de encontrar no panorama do cinema de ação ocidental. Pois ninguém se engane, este é um filme de ação, o único na filmografia de Wright, e como uma experiência de movimento, coreografia, sonoridade gritante e imagens violentamente expressivas o filme é praticamente inigualável na obra deste autor, cuja filmografia tenho vindo a explorar e redescobrir nesta minha retrospetiva.


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