De um filme de prestígio
inspirado numa inspiradora história verídica a uma mistura cinética de Jason
Bourne com os contos de fada dos irmãos Grimm. Se em O Solista, Joe Wright criou o filme que menos explode com o seu
luxuriante e exuberante estilo, com Hanna,
o filme que se seguiu, ele cria uma obra em que o estilo é elevado a um volume
ensurdecedor, consumindo qualquer sombra de subtileza ou nuance. A falta de
primor narrativo ou mesmo de complexidade não são, contudo, impeditivas de Hanna ser um belíssimo espetáculo
sensorial em que Wright cria uma desenfreada exposição de algumas das suas mais
exuberantes ideias formais a um ritmo pulsante que vai movendo a audiência
pelas visões alucinantes do realizador sem conceder muito tempo para pensamento
racional. Ou pelo menos é assim que o filme começa.
Hanna inicia-se com a brancura gélida de
uma paisagem coberta de neve, aí encontramos a nossa protagonista que dá nome
ao filme. Ela é interpretada por Saoirse Ronan, que nunca esteve mais pálida ou
desumana que neste papel, e movimenta-se como um espírito assassino pela neve,
caçando uma rena e lutando com seu pai, Erik (Eric Bana), antes de regressar à
reclusa cabana onde os dois vivem isolados. Nessa solidão ártica, o pai tem
criado a filha, como que preparando-a para ser uma autêntica máquina de matar
em forma humana, e um dia dá-lhe uma máquina que irá enviar um sinal para a
C.I.A., despoletando a captura de Hanna. Ele deixa-a sozinha sendo que a aparente
missão da adolescente é simples, matar Marissa Wiegler (Cate Blanchett), uma
maquiavélica agente americana que no passado terá resultado na morte da mãe de
Hanna e na constante perseguição em que a bizarra unidade familiar da
protagonista parece viver. A partir do momento em que o sinal é ativado, o
filme torna-se numa sequência de perseguição contínua, passando por Marrocos,
Espanha, Dinamarca e Alemanha. Pelo meio vamos encontrando uma série de outras
personagens, algumas delas tremendamente bizarras, ao mesmo tempo que, especialmente
na parte do filme passada em Berlim, descobrimos a origem de Hanna, cuja
existência é aparentemente o resultado de uma experiência da C.I.A. para criar
uma espécie de soldado perfeito.
O texto, para ser completamente honesto, não aguenta uma
pinga de escrutínio antes de se desfazer em irracionalidade que desafia mesmo a
estranheza desumana do mundo que Wright aqui conjurou. Não nos encontramos na
nossa pressuposta realidade, mas sim numa fantasiosa e perversa visão do mundo
contemporâneo em que tudo parece injetado por uma atmosfera de conto-de-fadas.
Aqui Wright tenta, e falha na maioria das vezes, desenvolver uma série de
ideias temáticas como a relação paternal e filial da família ensandecida no
centro do filme, e mesmo alguma sátira social. Seria melhor, para a experiência
de Hanna e para o próprio autor, afastar
o filme de quaisquer impulsos satíricos que tenha em relação à sua vilã
americana ou à família liberal privilegiada que momentaneamente acolhe a
protagonista, assim como da sua horrenda paixão por diálogo expositivo na
segunda metade do filme. Se Wright e equipa conseguissem manter o ritmo e a
esplendorosa espetacularidade dos momentos altos de Hanna em todo o filme, sem se preocuparem com qualquer convenção
narrativa, os resultados seriam muito mais interessantes que os rasgos de
glória que vão aparecendo com cada vez menos frequência à medida que o filme
avança.
Onde toda a
construção do filme realmente triunfa não é, portanto, nas suas ideias
temáticas ou na sua narrativa, mas sim na sua técnica formidável e
desavergonhada exuberância formal. Isso parece ter sido percebido pela própria
publicidade do filme que no mesmo patamar que colocava o realizador colocava os
Chemical Brothers, aqui responsáveis pela banda-sonora do filme. A música que
se mescla com os efeitos sonoros numa maravilha de sonoridade quase
expressionista, é um dos elementos centrais na criação de uma atmosfera hipnótica
e fantasiosa, ao mesmo tempo que vai criando um ritmo frenético nos melhores momentos
do filme. Mas não é só de louvar a sonoplastia, pois todos os elementos formais
do filme são uma absoluta delícia. A montagem é tão crucial para a rapidez musculada
do filme como a música, por vezes tornando-se reminiscente de videoclips na sua
exuberância e noutras ocasiões conferindo um misticismo elegante à figura de
Hanna, impedindo a audiência de ver os seus movimentos pelo espaço e dando-lhe,
ainda mais que a maquilhagem e iluminação, a presença gasosa de um espectro. A
cenografia é uma maravilha imensa com a cabana no meio da neve em que o filme
abre, os ambientes inorganicamente curvos e acéticos da C.I.A., um clube de
strip que transpira grotesca perversidade e mesmo o parque de diversões
abandonado em que decorre o climax do filme com o seu simbolismo excessivo no
que diz respeito aos contos dos irmãos Grimm.
A habitar esse mundo
de estranheza omnipresente e sonoridade expressionista, temos um elenco de
personagens em que, miraculosamente, a pessoa que mais se assemelha a um ser
humano do nosso mundo na sua interioridade e nas suas reações é Hanna, cujos
maneirismos mecânicos e aparência espectral a removem de qualquer conceito de
humanidade existente no mundo do filme. Isto é principalmente devido a Ronan
que aqui torna esta ideia de um mecanismo mortífero em forma humana num ocasionalmente
tocante retrato de uma adolescente insegura que se vai descobrindo a si próprio
assim como o mundo em que vive. O restante elenco, com algumas entediantes
exceções (Bana), parecem existir em diferentes planos de existência, desde a
leve comédia satírica e desconfortável de Olivia Williams e Jessica Bardem, ao
completo grotesco fantasioso de Tom Hollander, Martin Wuttke e Cate Blanchett.
Esta última tem aqui dos seus mais exagerados trabalhos, desde a sua malvadez palpável
ao seu sotaque texano que tende a cair no ridículo. Tecnicamente não existe
complexidade no seu trabalho ou mesmo estilização interessante, mas há algo na
abordagem direta e grosseira de Blanchett que torna o que, talvez, é das suas
piores interpretações em algo absolutamente perfeito para Wirgler, que em si
contém uma espécie de fusão entre o Lobo Mau, a Madrasta Malvada e Pam Landy.
Muitas vezes oiço
falar de forma, ou estilo, e conteúdo como se ambas fossem ideias mutuamente
exclusivas ou como se uma existisse em oposição à outra. Para essas pessoas,
este filme seria um exemplo do estilo acima do conteúdo, sendo isto muitas
vezes uma crítica negativa de uma obra. Penso que esta é uma ridícula e
bastante perniciosa dicotomia, sendo que aqui penso que o verdadeiro problema
do filme é a insistência em impor algum conteúdo ao que acaba por ser um
desfile de estilo hipnotizante. Sem a sua narrativa e backstory o filme seria
ainda mais ideologicamente vazio do que já é, mas também fugiria aos
convencionalismos narrativos que o impedem de ser a absoluta explosão estilística
que parece estar sempre a insinuar ser. Apesar de alguns momentos mortos,
incompetente narrativa, ideias simplistas, e exagero indisciplinado, Hanna é dos mais fascinantes filmes de
Joe Wright, oferecendo em momentos como a fuga da protagonista por entre os
corredores labirínticos de uma base subterrânea, um tipo de puro prazer cinético
que é difícil de encontrar no panorama do cinema de ação ocidental. Pois
ninguém se engane, este é um filme de ação, o único na filmografia de Wright, e
como uma experiência de movimento, coreografia, sonoridade gritante e imagens
violentamente expressivas o filme é praticamente inigualável na obra deste
autor, cuja filmografia tenho vindo a explorar e redescobrir nesta minha
retrospetiva.
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