quarta-feira, 7 de outubro de 2015

VISKNINGAR OCH ROP (1972) de Ingmar Bergman



 Penso já ter referido, em outros textos, que Ingmar Bergman é o meu realizador favorito, sendo que a obra à qual eu atribuo a minha devoção é o seu suprassumo filme de 1972, Lágrimas e Suspiros. Um filme assim, mantém um lugar especial na minha mente de cinéfilo, como que num pedestal de santificação cinematográfica, mas, apesar de toda a minha adoração, é um dos filmes que mais me custa a ver, um dos filmes mais avassaladores e uma obra que tem em si contido o que é, talvez, a mais arrebatadora captura do sofrimento humano em filme.

 A narrativa conjurada por Bergman é dissimuladamente simples e fácil de percecionar. Uma mulher, Agnes (Harriet Andersson), está a morrer, vítima de cancro, na sua casa de família, algures na Suécia do virar do século. A acompanhar a moribunda estão as suas irmãs, Karin (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullmann), assim como uma serva, Anna (Kari Sylwan) que, muito mais que as suas familiares, a vai auxiliando e confortando nesta viagem dolorosa da vida para a morte. Ao longo do filme vamos ainda sendo testemunhas de momentos fora da narrativa principal, memórias, sonhos e reflexões, das quatro mulheres presentes na casa, sendo que o filme, num momento de piedade final, acaba por se encerrar numa memória de puro e simples contentamento e felicidade.

 Talvez mais declarativamente característico do filme que o seu enredo seja a sua imagética, sendo que de toda a obra de Bergman, este é o filme em que o realizador mais proeminência deu ao uso da cor, nomeadamente a agressiva utilização do vermelho. A cor era como que, para Bergman, a tonalidade da alma humana, manifestando-se aqui, não só, na fotografia e cenografia, com o interior da casa a assemelhar-se a um interior vivo e carnal na sua violenta aparência, mas também na montagem, sendo que Bergman continuamente recorre ao desvanecer da imagem em vermelho nas suas transições, maioritariamente na introdução e encerramento das sequências lembradas e sonhadas de que falei anteriormente. Para além dessa cor e toda a sua violência e carnalidade, temos ainda um uso rígido de branco e preto, uma cor virginal e imagem de pureza, e o luto profundo que assombra todo o filme, tornando, na segunda metade do filme, as figuras humanas em manchas negras dramaticamente pintadas sobre a intensidade vermelha do seu ambiente. Isto tem como consequência principal um filme que se assemelha a uma pintura viva, sendo que apesar de tal frase ser fortemente usada na crítica cinematográfica, poucas vezes foi mais apropriada que neste filme, onde o mestre Sven Nykvist encontra o melhor exemplo do seu inegável génio.

 Uma das razões, para além do óbvio primor formal, que me fazem considerar esta obra como uma das mais significativas criações de Bergman, devém do modo como aqui se encontram a maioria dos temas e ideias que se espalham e desenvolvem pela sua filmografia, sendo que, talvez, apenas a sua obsessão com criar cinema que se refletia consigo próprio parece ter encontrado a sua máxima apoteose noutra obra magistral, Persona. Aqui temos um filme em que a morte e o sofrimento humano são inescapáveis, onde a face de Andersson, outrora símbolo de carnalidade e juventude, se contorce em gritos de agonia aterradores, em que a fé e a religião são exploradas de modo impiedoso, um mundo e onde nenhum deus parece existir, uma exploração de psiques femininas, uma ode à maternidade e um retrato dos píncaros da crueldade humana.

 Desses temas, um dos mais fascinantes é o da feminilidade, sendo que Lágrimas e Suspiros é um filme intrinsecamente feminino. Repare-se, por exemplo, no modo como Agnes apenas relembra sua mãe num dos momentos de memória, sendo que a maternidade, volto a dizer, é um dos principais temas da obra. As duas irmãs que sobrevivem à narrativa são ambas mães, mas seus filhos são apenas vislumbrados no caso de Maria, e completamente ignorados e ausentes no caso de Karin. Agnes, que nunca teve filhos, sofre de cancro do útero, estando o seu ventre inchado como que numa perversão da gravidez, sendo que aqui há morte e não vida que se desenvolve no corpo de Agnes. O próprio espaço, essa opressão de vermelho, quase lembra uma atmosfera uterina, confortante e opressiva, isolada do mundo, quase espiritual no modo como num momento meio sonhado, Agnes parece voltar à vida.

 E esse referido momento, o sonho de Anna em que Agnes parece se manifestar depois da sua morte, é um dos mais assombrosos momentos do filme, cuja impressão ficou como que queimada na minha memória desde a primeira vez que vi esta obra-prima. Anna, uma mãe que em tempos perdeu a filha, ouve gritos, semelhantes aos de um bebé, e anda pela casa, até descobrir a sua fonte, o corpo de Agnes, como que espiritualmente ressuscitada, suplica por ajuda e companhia na solidão da sua morte. As irmãs, já retratadas como figuras de egoísmo, superficialidade e repressão autodestrutiva, não conseguem suportar tal pedido, afastando-se quer por medo ou nojo, como o fizeram durante os últimos dias de vida da irmã, e é Anna que reconforta a suplicante. Numa das mais famosas imagens de toda a sua filmografia, Bergman retrata Anna e Agnes como uma Pietá, numa das variadas ocasiões em que a sofredora Agnes se assemelha a Cristo, numa repetição de um momento anterior em que a serva foi a púnica a responder ao apelo da moribunda. Um dos seus seios está desnudo e Agnes repousa sobre a sua pele, como uma criança adormecida. Num ato de generosidade e compaixão é a mulher que nenhuma relação familiar tem com a suplicante que a ajuda, concedendo-lhe o toque humano, enquanto suas parentes se afastam.

 Nesta visão quase religiosa também temos a compaixão a vir da única figura cuja fé é indiscutível dentro da narrativa. Na verdade, apenas Anna e Agnes são caracterizadas como crentes dentro das quatro protagonistas, sendo que são as únicas em que alguma esperança parece iluminar o seu sofrimento. Bergman não retrata neste mundo a presença divina, pelo contrário o filme parece ser um seguimento da sua ideia de um deus que ou está morto, ou nunca existiu, ou é uma criatura horrenda de sofrimento e destruição. No entanto, na sua fé, ambas as mulheres parecem encontrar uma luz na sua existência, em comparação com as duas irmãs que parecem existir como que em auto imposta distância do resto das pessoas, sendo que o simples toque humano e compaixão parece ser algo estranho e cataclísmico para elas.

 Mas não é por isso que Bergman as retrata de modo simplistas ou vilificado, não fossem elas até retratadas por duas atrizes fetiche do realizador, Ullmann e Thulin. Karin, que partilha o nome com a mãe de Bergman a quem o filme é dedicado, é uma rígida construção de repressão e crueldade, sendo que face ao seu marido que a repugna mental e fisicamente, ela mutila-se a si mesma como modo de o repelir de ter com ela relações. Por outro lado, Maria é uma criatura de coquetismos vazios, egoísta e friamente manipuladora, sendo que numa das suas mais cruéis criações, Bergman filma a face da, magnificamente bela, Ullmann enquanto a personagem de um antigo amante a disseca, apontando os seus defeitos e marcas de sua malícia. Mas estas duas criaturas têm um momento de êxtase, depois de um jantar em que Karin expressa seu ódio por Maria, ambas se confrontam parecem chegar a uma proximidade miraculosa, se bem que Bergman nos recusa as palavras que trocam, apenas nos concedendo um grande plano de suas faces e mãos que se acariciam. Tal momento de proximidade humana, algo que parece extinguir-se quando não observamos Anna, é negado no seu final encontro, ao abandonar a casa. Mais do que as mostrar coo cruéis figuras, como as minhas redutoras palavras o podem estar a fazer, Bergman parece mostrar dois seres próximos de si, sem esperança e isolados, à procura de uma proximidade que não conseguem assimilar ou aceitar. Neste horrendo mundo de figuras isoladas no seu sofrimento apenas os dois momentos entre Anna e Agnes parecem transparecer a proximidade humana que sob o olhar de Bergman ganha proporções quase divinas.

 O elenco é genial, os visuais sublimes, os sons são tão precisos e aterradores como belos, se há uma obra perfeita no cânone desta arte, talvez seja Lágrimas e Suspiros. Mas apesar da minha descrição de sofrimento e horror, o filme termina com felicidade e esperança, não fosse este um dos mais indiscutivelmente humanos de todos os filmes do autor sueco. Depois da partida das irmãs e mostra da frieza e crueldade delas e seus maridos, Anna retira-se para seu quarto e lê do diário de Agnes, relembrando um momento de felicidade e esperança na vida da falecida. A sua voz transmuta-se na de Ganes e vemos as quatro mulheres, vestidas de branco e no exterior do casarão, que apenas vislumbramos no início do filme e numa memória sobre a fria mãe da escritora destas recordações. As figuras femininas são luminosas, sua disposição é alegre e o sofrimento do futuro ainda não se verifica, elas tocam-se e estão juntas num baloiço de jardim. Neste momento de beleza luminosa, o filme encerra-se, terminam assim os gritos e suspiros de sofrimento humano, e numa imagem de gratidão Bergman celebra a vida, depois de um dos mais aterradores filmes sobre a morte que já foram criados em toda a história do meio.

 Talvez seja a feminilidade intrínseca ao filme que faz com que Lágrimas e Suspiros não seja tão profundamente discutido como outras obras de Bergman como O Sétimo Selo, mas isso não me impede de considerar este filme como a mais gloriosa obra do realizador, sendo que apenas Persona se consegue comparar. É imensamente impressionante a visceralidade que Bergman consegue conjurar de tão cuidadosamente concretizadas imagens, onde nada de impulsivo ou cru parece existir e onde tudo vemos como que sob um estado de transe. O requinte da sua criação como que uma oposição ao horror do seu conteúdo, e uma intensidade tão esmagadora que, ao ver o filme, quase tenho a tentação de desviar o olhar e cobrir os ouvidos, como que bloqueando as visões de sofrimento e crueldade que o filme produz. Poucas vezes foi o cinema tão doloroso e transcendente como em Lágrimas e Suspiros, uma obra que simples palavras não conseguem descrever tal é a sua maravilha e cuja exploração aqui escrita não tem esperança de conseguir abranger toda a sua genialidade. Não consigo salientar o suficiente quão importante e quase que primitivamente essencial este filme é para mim, sendo que a criação do cinema e sua existência no nosso mundo é puramente justificada pela simples existência deste filme.


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