Penso já ter
referido, em outros textos, que Ingmar Bergman é o meu realizador favorito,
sendo que a obra à qual eu atribuo a minha devoção é o seu suprassumo filme de
1972, Lágrimas e Suspiros. Um filme
assim, mantém um lugar especial na minha mente de cinéfilo, como que num pedestal
de santificação cinematográfica, mas, apesar de toda a minha adoração, é um dos
filmes que mais me custa a ver, um dos filmes mais avassaladores e uma obra que
tem em si contido o que é, talvez, a mais arrebatadora captura do sofrimento
humano em filme.
A narrativa conjurada
por Bergman é dissimuladamente simples e fácil de percecionar. Uma mulher,
Agnes (Harriet Andersson), está a morrer, vítima de cancro, na sua casa de
família, algures na Suécia do virar do século. A acompanhar a moribunda estão
as suas irmãs, Karin (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullmann), assim como uma
serva, Anna (Kari Sylwan) que, muito mais que as suas familiares, a vai
auxiliando e confortando nesta viagem dolorosa da vida para a morte. Ao longo
do filme vamos ainda sendo testemunhas de momentos fora da narrativa principal,
memórias, sonhos e reflexões, das quatro mulheres presentes na casa, sendo que
o filme, num momento de piedade final, acaba por se encerrar numa memória de puro
e simples contentamento e felicidade.
Talvez mais
declarativamente característico do filme que o seu enredo seja a sua imagética,
sendo que de toda a obra de Bergman, este é o filme em que o realizador mais
proeminência deu ao uso da cor, nomeadamente a agressiva utilização do
vermelho. A cor era como que, para Bergman, a tonalidade da alma humana,
manifestando-se aqui, não só, na fotografia e cenografia, com o interior da
casa a assemelhar-se a um interior vivo e carnal na sua violenta aparência, mas
também na montagem, sendo que Bergman continuamente recorre ao desvanecer da
imagem em vermelho nas suas transições, maioritariamente na introdução e encerramento
das sequências lembradas e sonhadas de que falei anteriormente. Para além dessa
cor e toda a sua violência e carnalidade, temos ainda um uso rígido de branco e
preto, uma cor virginal e imagem de pureza, e o luto profundo que assombra todo
o filme, tornando, na segunda metade do filme, as figuras humanas em manchas
negras dramaticamente pintadas sobre a intensidade vermelha do seu ambiente.
Isto tem como consequência principal um filme que se assemelha a uma pintura
viva, sendo que apesar de tal frase ser fortemente usada na crítica
cinematográfica, poucas vezes foi mais apropriada que neste filme, onde o
mestre Sven Nykvist encontra o melhor exemplo do seu inegável génio.
Uma das razões, para além
do óbvio primor formal, que me fazem considerar esta obra como uma das mais significativas
criações de Bergman, devém do modo como aqui se encontram a maioria dos temas e
ideias que se espalham e desenvolvem pela sua filmografia, sendo que, talvez, apenas
a sua obsessão com criar cinema que se refletia consigo próprio parece ter
encontrado a sua máxima apoteose noutra obra magistral, Persona. Aqui temos um filme em que a morte e o sofrimento humano
são inescapáveis, onde a face de Andersson, outrora símbolo de carnalidade e
juventude, se contorce em gritos de agonia aterradores, em que a fé e a
religião são exploradas de modo impiedoso, um mundo e onde nenhum deus parece
existir, uma exploração de psiques femininas, uma ode à maternidade e um
retrato dos píncaros da crueldade humana.
Desses temas, um dos
mais fascinantes é o da feminilidade, sendo que Lágrimas e Suspiros é um filme intrinsecamente feminino. Repare-se,
por exemplo, no modo como Agnes apenas relembra sua mãe num dos momentos de
memória, sendo que a maternidade, volto a dizer, é um dos principais temas da
obra. As duas irmãs que sobrevivem à narrativa são ambas mães, mas seus filhos
são apenas vislumbrados no caso de Maria, e completamente ignorados e ausentes
no caso de Karin. Agnes, que nunca teve filhos, sofre de cancro do útero,
estando o seu ventre inchado como que numa perversão da gravidez, sendo que
aqui há morte e não vida que se desenvolve no corpo de Agnes. O próprio espaço,
essa opressão de vermelho, quase lembra uma atmosfera uterina, confortante e
opressiva, isolada do mundo, quase espiritual no modo como num momento meio
sonhado, Agnes parece voltar à vida.
E esse referido
momento, o sonho de Anna em que Agnes parece se manifestar depois da sua morte,
é um dos mais assombrosos momentos do filme, cuja impressão ficou como que
queimada na minha memória desde a primeira vez que vi esta obra-prima. Anna,
uma mãe que em tempos perdeu a filha, ouve gritos, semelhantes aos de um bebé,
e anda pela casa, até descobrir a sua fonte, o corpo de Agnes, como que
espiritualmente ressuscitada, suplica por ajuda e companhia na solidão da sua
morte. As irmãs, já retratadas como figuras de egoísmo, superficialidade e
repressão autodestrutiva, não conseguem suportar tal pedido, afastando-se quer
por medo ou nojo, como o fizeram durante os últimos dias de vida da irmã, e é
Anna que reconforta a suplicante. Numa das mais famosas imagens de toda a sua
filmografia, Bergman retrata Anna e Agnes como uma Pietá, numa das variadas
ocasiões em que a sofredora Agnes se assemelha a Cristo, numa repetição de um
momento anterior em que a serva foi a púnica a responder ao apelo da moribunda.
Um dos seus seios está desnudo e Agnes repousa sobre a sua pele, como uma
criança adormecida. Num ato de generosidade e compaixão é a mulher que nenhuma
relação familiar tem com a suplicante que a ajuda, concedendo-lhe o toque
humano, enquanto suas parentes se afastam.
Nesta visão quase
religiosa também temos a compaixão a vir da única figura cuja fé é indiscutível
dentro da narrativa. Na verdade, apenas Anna e Agnes são caracterizadas como
crentes dentro das quatro protagonistas, sendo que são as únicas em que alguma
esperança parece iluminar o seu sofrimento. Bergman não retrata neste mundo a
presença divina, pelo contrário o filme parece ser um seguimento da sua ideia
de um deus que ou está morto, ou nunca existiu, ou é uma criatura horrenda de
sofrimento e destruição. No entanto, na sua fé, ambas as mulheres parecem
encontrar uma luz na sua existência, em comparação com as duas irmãs que
parecem existir como que em auto imposta distância do resto das pessoas, sendo
que o simples toque humano e compaixão parece ser algo estranho e cataclísmico
para elas.
Mas não é por isso
que Bergman as retrata de modo simplistas ou vilificado, não fossem elas até
retratadas por duas atrizes fetiche do realizador, Ullmann e Thulin. Karin, que
partilha o nome com a mãe de Bergman a quem o filme é dedicado, é uma rígida
construção de repressão e crueldade, sendo que face ao seu marido que a repugna
mental e fisicamente, ela mutila-se a si mesma como modo de o repelir de ter
com ela relações. Por outro lado, Maria é uma criatura de coquetismos vazios,
egoísta e friamente manipuladora, sendo que numa das suas mais cruéis criações,
Bergman filma a face da, magnificamente bela, Ullmann enquanto a personagem de
um antigo amante a disseca, apontando os seus defeitos e marcas de sua malícia.
Mas estas duas criaturas têm um momento de êxtase, depois de um jantar em que
Karin expressa seu ódio por Maria, ambas se confrontam parecem chegar a uma
proximidade miraculosa, se bem que Bergman nos recusa as palavras que trocam,
apenas nos concedendo um grande plano de suas faces e mãos que se acariciam.
Tal momento de proximidade humana, algo que parece extinguir-se quando não observamos
Anna, é negado no seu final encontro, ao abandonar a casa. Mais do que as
mostrar coo cruéis figuras, como as minhas redutoras palavras o podem estar a
fazer, Bergman parece mostrar dois seres próximos de si, sem esperança e
isolados, à procura de uma proximidade que não conseguem assimilar ou aceitar.
Neste horrendo mundo de figuras isoladas no seu sofrimento apenas os dois
momentos entre Anna e Agnes parecem transparecer a proximidade humana que sob o
olhar de Bergman ganha proporções quase divinas.
O elenco é genial, os
visuais sublimes, os sons são tão precisos e aterradores como belos, se há uma
obra perfeita no cânone desta arte, talvez seja Lágrimas e Suspiros. Mas apesar da minha descrição de sofrimento e
horror, o filme termina com felicidade e esperança, não fosse este um dos mais
indiscutivelmente humanos de todos os filmes do autor sueco. Depois da partida
das irmãs e mostra da frieza e crueldade delas e seus maridos, Anna retira-se
para seu quarto e lê do diário de Agnes, relembrando um momento de felicidade e
esperança na vida da falecida. A sua voz transmuta-se na de Ganes e vemos as
quatro mulheres, vestidas de branco e no exterior do casarão, que apenas
vislumbramos no início do filme e numa memória sobre a fria mãe da escritora
destas recordações. As figuras femininas são luminosas, sua disposição é alegre
e o sofrimento do futuro ainda não se verifica, elas tocam-se e estão juntas
num baloiço de jardim. Neste momento de beleza luminosa, o filme encerra-se,
terminam assim os gritos e suspiros de sofrimento humano, e numa imagem de
gratidão Bergman celebra a vida, depois de um dos mais aterradores filmes sobre
a morte que já foram criados em toda a história do meio.
Talvez seja a
feminilidade intrínseca ao filme que faz com que Lágrimas e Suspiros não seja tão profundamente discutido como
outras obras de Bergman como O Sétimo
Selo, mas isso não me impede de considerar este filme como a mais gloriosa
obra do realizador, sendo que apenas Persona
se consegue comparar. É imensamente impressionante a visceralidade que Bergman
consegue conjurar de tão cuidadosamente concretizadas imagens, onde nada de
impulsivo ou cru parece existir e onde tudo vemos como que sob um estado de
transe. O requinte da sua criação como que uma oposição ao horror do seu conteúdo,
e uma intensidade tão esmagadora que, ao ver o filme, quase tenho a tentação de
desviar o olhar e cobrir os ouvidos, como que bloqueando as visões de
sofrimento e crueldade que o filme produz. Poucas vezes foi o cinema tão
doloroso e transcendente como em Lágrimas
e Suspiros, uma obra que simples palavras não conseguem descrever tal é a
sua maravilha e cuja exploração aqui escrita não tem esperança de conseguir
abranger toda a sua genialidade. Não consigo salientar o suficiente quão
importante e quase que primitivamente essencial este filme é para mim, sendo
que a criação do cinema e sua existência no nosso mundo é puramente justificada
pela simples existência deste filme.
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