Elsa
Lancaster faria hoje 113 anos se ainda fosse viva. Em jubilante celebração do
seu legado e em continuação do texto que ontem publiquei sobre Frankesntein, aqui está a minha reflexão sobre a sua
sequela, A Noiva de Frankenstein de
James Whale, com Boris Karloff a regressar ao papel do icónico monstro e
Lancaster como a sua tenebrosa companheira.
Quatro anos depois do
sucesso de Frankenstein, a Universal
conseguiu, depois de muita insistência, convencer James Whale a realizar uma
sequela para o seu maior sucesso. O filme que daí resultou é talvez não tão
importante na história do cinema como Frankenstein, mas é um dos mais estranhos
genialmente excêntricos produtos do sistema de estúdios da Hollywood durante a
sua era dourada. Com Carl Laemmle Jr. maioritariamente ausente das filmagens do
filme, Whale teve completo controlo da produção e tornou a sua Noiva de
Frankenstein na que é talvez a primeira comédia de terror na história do
cinema, muito antes de qualquer Young
Frakenstein ou Scary Movie.
Logo no seu início o
filme revela-se como uma obra de incomum estranheza para a Hollywood dos anos
30. Num gesto quase pós-moderno, Whale inicia o seu filme não com os
protagonistas do filme anterior, mas com Mary Shelley, a autora do romance que
deu origem à figura de Frankenstein e sua criação, acompanhada pelo seu marido
e por Lord Byron. Shelley é aqui encarnada por Elsa Lancaster que também dá
vida, no final do filme, à noiva do título, e é uma presença de charme e
delicadeza afetada, mas nunca tão afetada como Gavin Gordon como Lord Byron,
num registo tão exagerado que, no contexto da obra em que se insere, parece
sugerir algo mais próximo do camp intencional que do maniento registo
favorecido pelos estúdios. Byron relembra o primeiro filme, contextualizando a
audiência com imagens da obra anterior, e convence Mary a continuar o seu
conto, o que ela faz, dando início ao enredo principal de A Noiva de Frankenstein.
O filme, depois desse
bizarro prólogo, começa imediatamente após o filme anterior acabar, com o
moinho a arder e tanto Frankenstein como o seu monstro a serem considerados
mortos pela população enfurecida. Ambos estão vivos, descobrimos rapidamente e,
com a chegada do sinistro doutor Pretorius (Ernest Thesiger), o mentor de
Frankesntein, estão os dados lançados para a trama que ocupa esta sequela.
Pretorius também se tem aventurado pela ciência de criar vida, se bem que as
suas experiências estão mais perto da magia negra que de qualquer noção de
ciência, mesmo pelos standards de um filme deste género. Frankenstein é
eventualmente confrontado pelo seu mentor loucamente ambicioso e pela violenta
solidão do monstro e forçado a criar uma companheira feminina para a sua
criação, sendo que o filme termina com o monstro a ser rejeitado pela sua noiva
e a, num ato de comovente desespero existencial, decidir acabar com a vida
inatural de si mesmo e da sua companheira.
O texto engendrado
por uma enorme equipa de argumentistas é uma confusão estonteante de ideias, ambições
e convencionalismos que nas mãos de Whale se tornam em algo vagamente coerente.
A estrutura é, por exemplo, um completo desastre de desleixada segmentação, tornando
o filme numa série de episódios rigidamente sequenciados e aborrecidamente
edificados. No entanto, nesses episódios Whale consegue encontrar algo
hipnotizante no seu génio. Se o primeiro filme é uma tragédia em que o
preconceito de uma população leva uma inocente criatura à sua destruição, o
segundo é uma verdadeira sátira dessa mesma sociedade de preconceitos, mesclada
com um humor que é tão excessivo como subtilmente subversivo e uma coleção de
falas icónicas que contêm em si uma surpreendente profundidade emocional e
ideológica quando consideramos que provêm do equivalente à miríade de sequelas
que hoje em dia infetam os cinemas com a sua mediocridade sedenta de lucro.
Esse aspeto
humorístico que quase sugere a sátira e mesmo o camp é grande responsabilidade da coleção de atores que Whale aqui
reúne. Una O’Connor pega no seu usual registo de estridente humor e eleva-o a
um nível que ameaça ser insuportável passados alguns minutos. Valerie Hobson,
que aqui substitui Mae Clark no papel de Elizabeth a noiva do doutor, é uma
joia de maneirismos sufocantes, sendo que quase parece estar a parodiar o tipo
de rosa inglesa comum nos filmes da época. Colin Clive volta como o doutor
Frankesntein e aqui a sombra de humanidade que se insinuava por entre a loucura
do filme predecessor deste, desaparece na sua maioria, sendo o doutor uma
amedrontada figura interpretada com toda a rigidez dramática que Clive consegue
conjurar. Mas é Thesiger que tipifica na sua glória total o tipo de atuação
exagerada brilhantemente usada por Whale neste filme. Pretorius é uma figura de
uma teatralidade absoluta, uma presença tão floreada e exagerada pose, gesto e
fala que qualquer noção de pretensão a realismo com ele se some. A humanidade
do cientista louco extinguiu-se e aqui aparece no seu exponencial de máxima
folia, gloriosa na sua espetacularidade.
Este exagero que
chega ao ridículo serve especialmente para estabelecer um contraste bizarro
entre o mundo dos humanos “naturais” e os dois monstros artificialmente
criados. Karloff, na derradeira subversão de quaisquer noções convencionais de
sociedade e humanidade, é aqui ainda mais dolorosamente humano que em
Frankenstein. Com um repertório alargado de palavras, o monstro tem aqui mais
facilidade em se expressar e os resultados são de uma absoluta magia
cinematográfica. Com os seus últimos momentos, Karloff consegue injetar uma
pulsante e sofredora dor no filme, como que o monstro cuspindo sobre uma
sociedade de suposta normalidade que rejeita e impossibilita a sua pacífica
existência. O monstro e sua noiva podem ser erros, mas são erros dos humanos
que na sua hubris os criaram e, talvez por isso, são imensamente mais humanos e
cheios de vitalidade que os seus pais.
Mas não é o monstro
interpretado por Boris Karloff que traz a esta sequela a sua herança como um
dos mais icónicos filmes de terror da Hollywood clássica, mas sim a sua noiva.
Elsa Lancaster, ao invés de copiar a inocência bruta de Karloff, expõe a noiva
como uma criatura de aterradora rigidez. O seu olhar e movimentos bruscos
assemelham-na a um inseto, os seus gritos parecem um cisne enraivecido e a sua
aparência a de uma múmia eletrificada e vestida numa bata tornada vestimenta
nupcial. Da sátira para a tragédia existencial e dessa tragédia para o terror
do desconhecido. Whale torna a noiva num emblema de todo o edifício do filme,
sendo a sua floreada criação no meio de uma tempestade o clímax de toda a obra.
Com uma panóplia de
ideias e tonalidades muito mais numerosas e loucamente ambiciosas que o
primeiro filme, não será, talvez de surpreender que Whale se tenha contido
noutras áreas do filme, Apesar de um impressionante design, especialmente o
visual ensandecido da noiva, o filme revela muito menos da geometrização
expressionista que tão caracterizou o filme de 1931, e isto é especialmente
notório no que diz respeito às composições. Também os movimentos da sua câmara
parecem ter perdido alguma elegância, estando o seu olhar mais focado na
captura direta e simples do espetáculo de excentricidades que na elegante
mise-en-scène de outrora. Tenho de salientar que, no entanto, isto não afeta de
modo negativo a experiência do filme, retirando alguma da sofisticação e
elegância formal, apenas exacerba a geral estranheza e possibilita uma maior
variedade de registos díspares.
Tal como aconteceu
com Frankentsein, é imensamente fácil
encontrar o cunho pessoal de James Whale nesta obra. Ao contrário da negrura,
tragédia e sociedade de preconceitos tão marcantes no primeiro filme, neste
filme, Whale criou o que é talvez um dos primeiros filmes mainstream a exporem
uma sensibilidade irrefutavelmente homossexual. Muitos, aliás, defendem A Noiva de Frankenstein como uma das
primeiras obras de cinema camp. O
modo como o monstro e o eremita cego com quem vive numa parte do filme,
relembra um casal proibido pelas normas sociais, e a criação da noiva tem uma
perversidade que provém grandemente da inaturalidade latente de dois homens a
conceberem uma nova vida. A própria figura da noiva e sua rejeição violenta do
seu noivo parece subverter noções de heteronormatividade, sendo que a ideia de
que o monstro necessita de uma companheira feminina poderia ser facilmente
interpretada como um preconceito da sociedade que é imposta a uma criatura
inocente e em aprendizagem, sendo os resultados finais bem longe da felicidade
de um casamento de Hollywood.
Independentemente de
quaisquer leituras queer, o filme é um dos mais únicos e fenomenalmente
excêntricos produtos da Hollywood dos anos 30. A Noiva de Frankenstein é um marco do cinema de terror, e compensa
a sua menor importância histórica em relação ao seu predecessor com o simples
prazer da sua espetacularidade levemente sardónica. É difícil pensar num filme
mais fácil de ver, quer seja pelo entretenimento glorioso que consigo traz, quer
seja pela sua brevidade miraculosa mesclada de surpreendente complexidade
encontrada em momentos como aquele em que o mostro profere as imortais palavras
“We belong dead”.
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