segunda-feira, 19 de outubro de 2015

LA VIE D’ADÈLE - CHAPITRES 1 & 2 (2013) de Abdellatif Kechiche

Hoje à noite passa na RTP A Vida de Adèle como parte da festa do cinema Francês. Devido a isto decidi partilhar alguns dos meus pensamentos sobre esta obra, como que participando nesta celebração do cinema gálico.


 O vencedor da Palma de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Cannes em 2013, A Vida de Adèle: Capítulos 1 e 2 esteve sempre envolvido em polémica e controvérsia, mesmo antes de arrecadar esse tão desejado prémio. Desde críticas que acusavam de pornografia sexista as extensas e gráficas cenas de sexo, ao realizador chegar mesmo a dizer que o filme nunca deveria ter sido distribuído, este é um filme em que todos os envolvidos parecem para ele olhar com ódio. O conflito entre o realizador Abdellatif Kechiche e a atriz Léa Seydoux atingiu proporções bastante feias, havendo como que um jogo de ténis na imprensa, em que cada um investia com nova crítica insultuosa a cada semana que passava. Para além de uma dimensão artística ou mesmo sexual, penso que há que não menosprezar a componente política de uma aristocrata francesa, parte de uma das mais importantes famílias do cinema francês, estar a atacar publicamente um realizador tunisiano com uma filmografia focada em questões de classes e injustiças sociais. Enfim, é difícil olhar este filme sem ser influenciado pela tempestade de polémica que se criou à sua volta, o que é tão negativo, ao encobrir a totalidade do filme em histórias periféricas, e benéfico, ao forçar as audiências informadas a  olhar o filme de modo mais crítico e sagaz.

 O filme, como o título em português indica, retrata a vida de uma jovem chamada Adèle (Adèle Exarchopoulos), focando-se principalmente na sua relação com Emma (Léa Seydoux), a primeira mulher com que estabelece uma relação sexual e amorosa, que dura vários anos e parece ser uma parte inexoravelmente monumental na história de vida da protagonista. Longe de ser um simples romance, contudo, o filme é um retrato de uma jovem a entrar na idade adulta, uma transição marcada pela sua descoberta sexual e pela relação amorosa com Emma, mas que não se resume apenas a isso. Ao longo do filme vemos Adèle com a família, na escola, num dos seus primeiros empregos, em ativismo político, a comer, dormir, viver. De certo modo, o filme é uma bildungsroman, completamente focado na experiência do indivíduo e utilizador de uma abordagem de arrebatadora intimidade.

 Num retrato deste tipo seria esperado uma certa ênfase na sexualidade da sua protagonista e este filme decerto que não se retém neste aspeto, com as suas polémicas cenas de sexo, uma delas com uma duração de sete minutos. E não são as usuais cenas em que os protagonistas têm seus corpos obscurecidos por montagem, iluminação discreta, coreografia precisa, ângulos púdicos ou mesmo o uso de somente nudez parcial. Aqui, as atrizes estão apresentadas em toda a carnalidade de seus corpos, completamente expostas e usando genitais prostéticos sobre os seus, conferindo um componente gráfico e explícito pouco usual mesmo no panorama do cinema europeu. Estas cenas estão no centro de muitos dos ataques feitos ao filme, mesmo os da autora do romance gráfico em que o filme se baseia, Julie Maroh. Ela, tal como muitas outras, manifestou-se contra o modo como as cenas são apresentadas, realçando o modo como não correspondem a uma realidade da sexualidade lésbica e como na sua apresentação quase voyeurística são quase pornografia. Não sou uma mulher homossexual, por isso existe obviamente uma certa distância entre mim e este tipo de conhecimento e experiência mas não me parece que as cenas sejam despropositadas ou que caiam em pornografia. O filme está intrinsecamente ligado à psicologia da sua protagonista e torna-se óbvio como este despertar sexual é crucial nesta etapa da sua vida, tanto como comer, outra atividade que vemos em pormenor estranho e desconfortável por todo o filme. Mais acrescento que estas cenas sexuais estão associadas a momentos de descoberta e euforia, sendo que quando a relação entre o casal começa a definhar nada vemos da sua vida sexual em conjunto.

 No entanto, há que admitir que as cenas contêm algo de titilante e desconfortável na sua abordagem, mas mais que ao nível de nudez ou atos em si, penso que isso se deve ao modo como nestas cenas o modo extremamente realista com que o filme parece querer abordar toda a existência de Adèle parece ser substituído por outro tipo de registo. Refiro-me principalmente ao modo como a iluminação é feita, longe do naturalismo de outras cenas, mostrando na perfeição erótica os corpos das atrizes e de como o filme se afasta do seu registo, quase opressivo, de constantes grandes planos como que para poder melhor apreciar a totalidade dos corpos em exposição. Mesmo assim, não são estas cenas que em mim despertam o desconforto com o olhar masculino e heterossexual de Kechiche, mas sim uma coleção de momentos não sexuais, como Adèle dormindo, tomando banho etc., em que a câmara parece quase acariciar a pele da atriz, movendo-se pelo seu corpo em ângulos francamente lascivos. Aí sim, penso registar-se um voyeurismo próximo de impulsos pornográficos, mas mesmo assim não será isto um problema tão abismal que destrua. Pelo menos para mim, a total experiência do filme.

 Estas cenas não foram causa de controvérsia somente pelo seu resultado final, sendo que as críticas das atrizes se focaram também no método do realizador. Léa Seydoux, que numa decisão inédita do festival ganhou a Palma de Ouro juntamente com Kechiche e Exarchopoulos, foi particularmente crítica, dizendo que foi humilhada e explorada pelo modo de filmar do realizador, que terá até considerado substituir a atriz. Tal polémica e ideia de substituição parecem-me atrozes, pois Seydoux é simplesmente sublime no filme. Sob o olhar da protagonista e de Kechiche, Emma é como que um ideal de vitalidade e sensualidade, até que na segunda metade do filme, quando a relação se desmorona, apesar de ser filmada com a mesma idolatria, a sua complexidade vai aumentando exponencialmente, mesmo em aspetos menos positivos. Seydoux, que já admirei noutros filmes, tem aqui a sua melhor interpretação até à data e sem ela o filme não funcionaria. Também sem o trabalho de Kechiche seria difícil ela ter o impacto que tem em ecrã, sendo que em cenas como um interlúdio num banco de jardim, é a opressiva intimidade do realizador que permite a completa apreciação das subtilezas e sedutoras complexidades no trabalho da atriz.

 Se Kechiche quando filma Seydoux, então é necessário encontrar outra palavra na língua portuguesa para descrever a sua proximidade com a protagonista do filme. Maioritariamente filmada em grande plano e sem floreados estilísticos, Exarchopoulos é uma revelação incontornável. O seu trabalho é muito menos vistoso que o de Seydoux e por isso mesmo consegue apoiar em si toda a construção do filme nas suas épicas três horas de duração. No retrato de Adèle há uma certa aleatoriedade na escolha dos momentos, o que apenas resulta devido ao modo como Exarchopoulos constrói o seu trabalho à volta de reações discretas, olhares fugazes e uma leveza que não revela qualquer dramatismo desnecessário. No final do filme, foi construído um imenso retrato acumulado, em parte semelhante ao que Linklater veio a fazer em Boyhood, e, apesar da vaguidade inicial de Adèle, acabamos o filme tendo a ideia que conhecemos este ser humano fictício. A mestria das atrizes é, sinceramente, a salvação da relativa falta de criatividade ou diversidade formal, que ao fim de três horas se teria tornado cansativa não fosse seu sujeito.

 Mas a glória e os problemas do filme não se reduzem simplesmente ao realizador e suas intérpretes, passando também pelo guião. Por um lado este é um texto de formidável ambição e vastidão no seu olhar sobre um indivíduo, por outro está pontuado por algumas escolhas bastante duvidosas e até desnecessárias. Estes aspetos negativos de que falo centram-se na ocasional falta de subtileza desnecessária na construção textual, como o simbolismo agressivo que o filme martela sobre a audiência, uma cena envolvendo ostras quase me fez revirar os olhos para fora das órbitas, e mesmo algumas escolhas de questionável óbvio, como as constantes referências a La vie de Marianne e sua semelhança temática com os batimentos iniciais da narrativa do filme. Por outro lado, especialmente na sua adaptação do material original, o filme toma formidáveis decisões textuais. A quebra temporal que marca o meio do filme é de particular interesse, negando-nos os anos de desenvolvimento e felicidade na relação central, assim como a mudança do final, que passa da tragédia romântica da morte ao simples e banal desmoronamento de uma relação amorosa. Tenho ainda a acrescentar que, como seria de esperar na obra de Kechiche, há um grande componente social na observação do filme, sendo o abismo que se abre entre Adèle e Emma tão causado pelas suas decisões, escolhas e falta de comunicação, como pelas diferenças de classe, social, económica e intelectual, que as separam.

 Por fim, gostaria de acabar numa nota pessoal. Em 2013, A vida de Adèle foi dos filmes que mais fanaticamente antecipei e que finalmente consegui ver na sua estreia durante o LEFFEST. Vi-o com uma amiga que também tinha grandes expetativas em relação ao filme e com quem tinha passado o dia numa acesa discussão devido a um trabalho que tínhamos em conjunto. No entanto, ambos fomos ver este filme sem qualquer sombra de conflito, como que unidos pela nossa paixão cinéfila, e no final, ambos saímos da sala de cinema sob o feitiço desta obra e unidos na sua apaixonada exaltação. A Vida de Adèle é um filme de arrebatadora intimidade, tão tocante como complexo no seu detalhado retrato de um ser humano em entrada na idade adulta. Por muitas controvérsias, limitações ou problemas que o filme apresente, é difícil negar o seu poder, sendo que tal como tantos filme de guerras fantasiosas este é um épico, onde as paisagens grandiosas são obsessivamente substituídas pela simples visão de uma face humana.


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