Hoje à noite passa na RTP A Vida de Adèle como parte da festa do cinema Francês. Devido a isto decidi partilhar alguns dos meus pensamentos sobre esta obra, como que participando nesta celebração do cinema gálico.
O vencedor da Palma
de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Cannes em 2013, A Vida de Adèle: Capítulos 1 e 2 esteve
sempre envolvido em polémica e controvérsia, mesmo antes de arrecadar esse tão
desejado prémio. Desde críticas que acusavam de pornografia sexista as extensas
e gráficas cenas de sexo, ao realizador chegar mesmo a dizer que o filme nunca
deveria ter sido distribuído, este é um filme em que todos os envolvidos
parecem para ele olhar com ódio. O conflito entre o realizador Abdellatif
Kechiche e a atriz Léa Seydoux atingiu proporções bastante feias, havendo como
que um jogo de ténis na imprensa, em que cada um investia com nova crítica
insultuosa a cada semana que passava. Para além de uma dimensão artística ou
mesmo sexual, penso que há que não menosprezar a componente política de uma
aristocrata francesa, parte de uma das mais importantes famílias do cinema
francês, estar a atacar publicamente um realizador tunisiano com uma
filmografia focada em questões de classes e injustiças sociais. Enfim, é
difícil olhar este filme sem ser influenciado pela tempestade de polémica que
se criou à sua volta, o que é tão negativo, ao encobrir a totalidade do filme
em histórias periféricas, e benéfico, ao forçar as audiências informadas a olhar o filme de modo mais crítico e sagaz.
O filme, como o título
em português indica, retrata a vida de uma jovem chamada Adèle (Adèle
Exarchopoulos), focando-se principalmente na sua relação com Emma (Léa
Seydoux), a primeira mulher com que estabelece uma relação sexual e amorosa,
que dura vários anos e parece ser uma parte inexoravelmente monumental na
história de vida da protagonista. Longe de ser um simples romance, contudo, o
filme é um retrato de uma jovem a entrar na idade adulta, uma transição marcada
pela sua descoberta sexual e pela relação amorosa com Emma, mas que não se
resume apenas a isso. Ao longo do filme vemos Adèle com a família, na escola,
num dos seus primeiros empregos, em ativismo político, a comer, dormir, viver.
De certo modo, o filme é uma bildungsroman, completamente focado na experiência
do indivíduo e utilizador de uma abordagem de arrebatadora intimidade.
Num retrato deste
tipo seria esperado uma certa ênfase na sexualidade da sua protagonista e este
filme decerto que não se retém neste aspeto, com as suas polémicas cenas de
sexo, uma delas com uma duração de sete minutos. E não são as usuais cenas em
que os protagonistas têm seus corpos obscurecidos por montagem, iluminação
discreta, coreografia precisa, ângulos púdicos ou mesmo o uso de somente nudez
parcial. Aqui, as atrizes estão apresentadas em toda a carnalidade de seus
corpos, completamente expostas e usando genitais prostéticos sobre os seus,
conferindo um componente gráfico e explícito pouco usual mesmo no panorama do
cinema europeu. Estas cenas estão no centro de muitos dos ataques feitos ao
filme, mesmo os da autora do romance gráfico em que o filme se baseia, Julie
Maroh. Ela, tal como muitas outras, manifestou-se contra o modo como as cenas
são apresentadas, realçando o modo como não correspondem a uma realidade da
sexualidade lésbica e como na sua apresentação quase voyeurística são quase
pornografia. Não sou uma mulher homossexual, por isso existe obviamente uma
certa distância entre mim e este tipo de conhecimento e experiência mas não me
parece que as cenas sejam despropositadas ou que caiam em pornografia. O filme
está intrinsecamente ligado à psicologia da sua protagonista e torna-se óbvio
como este despertar sexual é crucial nesta etapa da sua vida, tanto como comer,
outra atividade que vemos em pormenor estranho e desconfortável por todo o
filme. Mais acrescento que estas cenas sexuais estão associadas a momentos de
descoberta e euforia, sendo que quando a relação entre o casal começa a
definhar nada vemos da sua vida sexual em conjunto.
No entanto, há que
admitir que as cenas contêm algo de titilante e desconfortável na sua
abordagem, mas mais que ao nível de nudez ou atos em si, penso que isso se deve
ao modo como nestas cenas o modo extremamente realista com que o filme parece
querer abordar toda a existência de Adèle parece ser substituído por outro tipo
de registo. Refiro-me principalmente ao modo como a iluminação é feita, longe
do naturalismo de outras cenas, mostrando na perfeição erótica os corpos das
atrizes e de como o filme se afasta do seu registo, quase opressivo, de
constantes grandes planos como que para poder melhor apreciar a totalidade dos
corpos em exposição. Mesmo assim, não são estas cenas que em mim despertam o
desconforto com o olhar masculino e heterossexual de Kechiche, mas sim uma
coleção de momentos não sexuais, como Adèle dormindo, tomando banho etc., em
que a câmara parece quase acariciar a pele da atriz, movendo-se pelo seu corpo
em ângulos francamente lascivos. Aí sim, penso registar-se um voyeurismo
próximo de impulsos pornográficos, mas mesmo assim não será isto um problema
tão abismal que destrua. Pelo menos para mim, a total experiência do filme.
Estas cenas não foram
causa de controvérsia somente pelo seu resultado final, sendo que as críticas
das atrizes se focaram também no método do realizador. Léa Seydoux, que numa decisão
inédita do festival ganhou a Palma de Ouro juntamente com Kechiche e Exarchopoulos,
foi particularmente crítica, dizendo que foi humilhada e explorada pelo modo de
filmar do realizador, que terá até considerado substituir a atriz. Tal polémica
e ideia de substituição parecem-me atrozes, pois Seydoux é simplesmente sublime
no filme. Sob o olhar da protagonista e de Kechiche, Emma é como que um ideal
de vitalidade e sensualidade, até que na segunda metade do filme, quando a
relação se desmorona, apesar de ser filmada com a mesma idolatria, a sua
complexidade vai aumentando exponencialmente, mesmo em aspetos menos positivos.
Seydoux, que já admirei noutros filmes, tem aqui a sua melhor interpretação até
à data e sem ela o filme não funcionaria. Também sem o trabalho de Kechiche
seria difícil ela ter o impacto que tem em ecrã, sendo que em cenas como um
interlúdio num banco de jardim, é a opressiva intimidade do realizador que
permite a completa apreciação das subtilezas e sedutoras complexidades no
trabalho da atriz.
Se Kechiche quando
filma Seydoux, então é necessário encontrar outra palavra na língua portuguesa
para descrever a sua proximidade com a protagonista do filme. Maioritariamente
filmada em grande plano e sem floreados estilísticos, Exarchopoulos é uma
revelação incontornável. O seu trabalho é muito menos vistoso que o de Seydoux
e por isso mesmo consegue apoiar em si toda a construção do filme nas suas
épicas três horas de duração. No retrato de Adèle há uma certa aleatoriedade na
escolha dos momentos, o que apenas resulta devido ao modo como Exarchopoulos
constrói o seu trabalho à volta de reações discretas, olhares fugazes e uma
leveza que não revela qualquer dramatismo desnecessário. No final do filme, foi
construído um imenso retrato acumulado, em parte semelhante ao que Linklater
veio a fazer em Boyhood, e, apesar da
vaguidade inicial de Adèle, acabamos o filme tendo a ideia que conhecemos este
ser humano fictício. A mestria das atrizes é, sinceramente, a salvação da
relativa falta de criatividade ou diversidade formal, que ao fim de três horas
se teria tornado cansativa não fosse seu sujeito.
Mas a glória e os problemas
do filme não se reduzem simplesmente ao realizador e suas intérpretes, passando
também pelo guião. Por um lado este é um texto de formidável ambição e vastidão
no seu olhar sobre um indivíduo, por outro está pontuado por algumas escolhas
bastante duvidosas e até desnecessárias. Estes aspetos negativos de que falo
centram-se na ocasional falta de subtileza desnecessária na construção textual,
como o simbolismo agressivo que o filme martela sobre a audiência, uma cena
envolvendo ostras quase me fez revirar os olhos para fora das órbitas, e mesmo
algumas escolhas de questionável óbvio, como as constantes referências a La vie de Marianne e sua semelhança temática
com os batimentos iniciais da narrativa do filme. Por outro lado, especialmente
na sua adaptação do material original, o filme toma formidáveis decisões
textuais. A quebra temporal que marca o meio do filme é de particular
interesse, negando-nos os anos de desenvolvimento e felicidade na relação
central, assim como a mudança do final, que passa da tragédia romântica da
morte ao simples e banal desmoronamento de uma relação amorosa. Tenho ainda a
acrescentar que, como seria de esperar na obra de Kechiche, há um grande
componente social na observação do filme, sendo o abismo que se abre entre
Adèle e Emma tão causado pelas suas decisões, escolhas e falta de comunicação,
como pelas diferenças de classe, social, económica e intelectual, que as
separam.
Por fim, gostaria de
acabar numa nota pessoal. Em 2013, A vida de Adèle foi dos filmes que mais
fanaticamente antecipei e que finalmente consegui ver na sua estreia durante o LEFFEST.
Vi-o com uma amiga que também tinha grandes expetativas em relação ao filme e
com quem tinha passado o dia numa acesa discussão devido a um trabalho que
tínhamos em conjunto. No entanto, ambos fomos ver este filme sem qualquer
sombra de conflito, como que unidos pela nossa paixão cinéfila, e no final,
ambos saímos da sala de cinema sob o feitiço desta obra e unidos na sua
apaixonada exaltação. A Vida de Adèle
é um filme de arrebatadora intimidade, tão tocante como complexo no seu
detalhado retrato de um ser humano em entrada na idade adulta. Por muitas
controvérsias, limitações ou problemas que o filme apresente, é difícil negar o
seu poder, sendo que tal como tantos filme de guerras fantasiosas este é um
épico, onde as paisagens grandiosas são obsessivamente substituídas pela
simples visão de uma face humana.
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