Antes de mais, há que
dizer que o final de A Tomada da Montanha
do Tigre de Tsui Hark é uma das mais bizarras conclusões de que tenho
memória. O filme retrata, na maioria da sua duração de 141 minutos, uma tomada
militar da dita Montanha do Tigre, que estava tomada por bandidos em meados dos
anos 40 na China. O filme é adaptado de um conto de, supostamente, uma grande
popularidade e fama, uma glorificação em forma quase mítica das forças
militares da República. Mas o final, longe de ser a conclusão de tomada, tendo
esta já sido vista, preocupa-se com uma figura apresentada no início do filme e
brevemente vislumbrada pelo meio do mesmo. Trata-se de um estudante chinês a
viver nos EUA e que, numa noite de Passagem de Ano, vislumbra uma antiga versão
desse mesmo conto na televisão. Aí feita em forma de ópera chinesa. Depois
dessa noite, vemo-lo viajar de volta a casa à China, onde o rapaz visita a
montanha onde decorreram as ações principais do filme e, no final do mesmo,
regressa a casa da sua avó, onde, na bizarra companhia dos espíritos dos heróis
militares da Montanha do Tigre, celebra o Ano Novo Chinês. Conjetura na sua
mente uma versão dos acontecimentos finais da tomada que consegue ser ainda
mais hiperbólica e maravilhosamente exuberante que o que realizador ainda há
momentos havia mostrado à sua audiência. O filme termina mesmo com imagens da
versão em ópera do conto, assim como algumas imagens dos homólogos reais dos
soldados que aí lutaram.
Tendo-me dado ao
trabalho de investigar um pouco estes estranhos momentos finais, apercebi-me
que na figura do estudante Tsui Hark se retratou de modo vagamente autobiográfico.
Tal como essa estranha figura contemporânea, que vai aparecendo por entre este
épico histórico, o realizador foi um estudante em Nova Iorque, ele nos anos
setenta, e também lá viu pela primeira vez essa versão operática da tomada e se
tornou seu irreverente fã. Também nessa cena é, talvez, possível verificar a
influência do estúdio no filme, pontuando a conclusão com um pouco de
indubitável glorificação e celebração patriótica, mas que, nas mãos do
realizador, é mesclada com uma celebração do cinema em si, especialmente do
cinema inerentemente chinês.
Tsui Hark, há que
lembrar, pertence à corrente do cinema de ação de Hong Kong, onde a ação é
hiperbólica, operática e preenche todo o filme num modo poucas vezes visto no
cinema de ação de outras nacionalidades. É, devido a isso, fácil dizer que o
seu estilo é algo inerentemente chinês, algo que quase segue a tradição da
singular ópera chinesa, e com este filme ele pega no seu estilo e cria a sua
própria versão bombástica deste tradicional e célebre conto chinês. No entanto,
ao longo do filme, apesar de todo o exagero e gritante exuberância, existe uma
certa modulação do estilo normal de Hark, sendo que talvez no final tenhamos
uma mostra da expressão máxima dos devaneios estilísticos do realizador, por
momentos mostrados sem o filtro temperado e mais convencional que, talvez,
tenha sido imposto pela produtora no filme final. O fim, por muito bizarro que
seja, é um momento de fascinante turbilhão entre duas abordagens ao filme, três
se considerarmos as imagens da versão antiga do mesmo conto, uma celebração das
possibilidades e uma exuberante desconstrução dos conflitos de interesse do
filme.
O filme, se nos
afastarmos desse final por momentos, é cinema tornado espetáculo hiperbólico.
Tudo no filme, desde a fotografia à banda-sonora, explode com um excesso
delicioso, destruindo qualquer sombra de subtileza e tornando o filme numa
maravilhosa experiência de cenas de ação, cada uma mais improvável e
classicamente emocional que a outra. Há uma enorme simplicidade no filme, o que
por vezes prejudica a obra, que se estende especialmente ao texto e ao trabalho
dos atores, reduzindo as personagens e a trama do filme em algo semelhante a um
caótico e explosivo cartoon. O
principal vilão do filme é, aliás, um senhor de guerra ridiculamente grotesco,
com um falcão de estimação que responde às suas ordens e uma esmagadora
silhueta tão exagerada como impressionante. O herói, por outro lado é
interpretado por Zhang Hanyu e é simplesmente, um brilhante herói de ação,
carismático e impossivelmente adequado ao estilo excessivo e estilizado do
filme. A maioria dos atores está nesse apropriado registo de teatralidade
exuberante, mas o protagonista é, sem dúvida, o píncaro do elenco, que, com
personagens tão simplistas, acaba, infelizmente, por se tornar um pouco
aborrecido e até cansativo. O elemento humano e narrativo é, eu diria, o maior
problema do filme que, estando preso a uma narrativa histórica e mítica de
heróis e vilões, parece ter pouco interesse na criação desses mesmos humanos.
Tirando esse
significativo detrator, assim como a duração excessiva do filme e alguns
efeitos digitais pouco convincentes, a Tomada
da Montanha do Tigre, é simplesmente delicioso. Para começar, é lindíssimo,
com uma fotografia imensamente estilizada em que a luz artificial é usada em
desavergonhada teatralidade, e onde os cenários e figurinos são requintadamente
criados de modo a oferecerem uma experiência de extasiante festim visual à sua
audiência e em que até a paisagem sonora é maravilhosamente excitante. O ritmo,
por vezes, mostra um pouco de momentos mortos sem grande sentido narrativo ou
estrutural, mas a experiência em geral é uma de simples e leve êxtase de cinema
de entretenimento.
É um filme que
celebra a teatralidade da sua espetacular visão, não se preocupando com
complexidades nem subtilezas, avançando bombasticamente contra a audiência e
deliciando aqueles que estiverem dispostos a embarcar nesta viagem peculiar
pelos excessos do cinema de ação de Hong Kong tornado mito patriótico chinês. Há
uma elegância e sofisticação na execução e simples divertimento na apresentação
de todo o excesso que torna o uso de fórmulas e clichés classicistas, algo integral
e inseparável da experiência do filme. Pode não ser dos melhores trabalhos do
seu realizador, em parte pela clara interferência dos produtores e estúdios na
sua visão, mas a Tomada da Montanha do
Tigre, não deixa por isso de ser uma peculiar e maravilhosamente
hiperbólica experiência de cinema como espetáculo de massas.
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