segunda-feira, 28 de setembro de 2015

EUROPA ’51 (1952) de Roberto Rossellini



 Com Europa ’51 continuamos a exploração de uma das mais importantes colaborações da história do cinema, sendo que este filme foi a segunda colaboração de Roberto Rossellini e Ingrid Bergman. Aqui, a atriz é, de novo, uma estrangeira em Itália, uma mulher inglesa inserida na alta burguesia de Roma que se torna uma espécie de versão feminina e contemporânea de São Francisco de Assis, que Rossellini já tinha usado como sujeito para um dos seus filmes em 1950. Seguimos esta santa contemporânea sob o olhar de Rossellini, filmando Bergman em grandes planos que parecem sugerir La Passion de Jeanne D’Arc e em movimentos constantes que seguem a atriz, e ouvimos o grito humanístico e espiritual do autor, numa sociedade estratificada e em que a empatia humana parece ser abjeta loucura, em que a santidade é incompreensível. Uma mãe perde o filho depois deste se tentar matar, ignorado pela mãe e sozinho num mundo burguês. Face à sua perda começa a alterar-se, a dissipar-se e a olhar a realidade daqueles menos afortunados que si mesma. Isolada, nega a religião, o comunismo, a superficialidade do seu meio, e é considerada louca e colocada num hospital psiquiátrico, uma santa no contemporâneo. De novo aqui, o realizador usa um estilo de cinema novo, meio romântico, meio realista, uma experiência que segue a explosão de Stromboli mas que ainda não chegou à maturação luminosa de Viaggio in Italia.

  Europa ’51 funciona como que um retrato de Rossellini do estado da Europa no pós-guerra, sendo que aqui as brasas que ainda fumegavam durante a sua trilogia da guerra há muito se extinguiram. O que encontramos no início do filme, é uma Europa, mais especificamente, uma Itália em que a normalidade parece ter-se forçosamente imposto e onde a guerra é uma memória tenebrosa, uma sombra que se tenta ofuscar com a luminosidade da normalidade contemporânea. Michele (Sandro Franchina), o filho da protagonista Irene (Ingrid Bergman), viveu com a mãe os bombardeamentos sobre Londres e é, de certo modo, uma criança da guerra, que cresceu durante a guerra e que vive como um fantasma neste mundo que tenta afastar do seu olhar, o que na existência do rapaz se manifesta de modo invariável. Em Germannia Anno Zero, o jovem protagonista suicida-se depois de encontrar um mundo sem lugar para a sua inocência infantil, neste filme algo semelhante ocorre. Michele, uma manifestação viva do passado europeu, é como que cronicamente ignorado, vendo-se num mundo de fachadas normalizadas em que não se insere, o rapaz tenta suicidar-se. Quando morre, não é apenas uma criança, um filho que falece, mas sim um sonho de normalidade da Europa, um sonho do esquecimento. A uma criança da guerra uma normalidade foi imposta, mas é impossível fazer-se tal coisa, e assim se estilhaça essa esperança, e assim se estilhaça Irene, cuja identidade parece entrar numa espiral de implosão, e, tal como a Europa no pós-guerra, se reconstrói em algo novo, não uma simples visão de normalidade burguesa, mas em algo incompreensível para a sociedade que tenta ignorar a fealdade do mundo em que existem. Essa incompreensão é, apesar de tudo, meramente uma incompreensão e não malícia ou maldade, pelo que o estudo de Rosselini é ainda mais cortante e difícil de engolir, fugindo aos moralismos simplistas em que poderia ter caído.

 Parte dessa incompreensão devém desse afastar do olhar da realidade do pós-guerra e devém também de uma insularidade crónica, que se manifesta na estruturação social e humana do mundo visto por Rossellini neste filme. O mundo inicial de Irene é como que uma ilha, o proletariado outra mesma, a igreja outra, e por aí em diante, não se mesclando estas insularidades humanas. Numa cena, um pouco óbvia e deselegante, um grupo de amigos de Irene e seu marido, George (Alexander Knox), brinca com um comboio em miniatura. Anteriormente havíamos ouvido de uma greve nos transportes, mas nenhum dos convidados da festa em que se encontram tiveram problemas, têm todos automóveis particulares, e aqui olham como crianças jocosas o comboio, e divertem-se alheios à realidade que o brinquedo inocente representa. Não há maldade no seu ato mas simples ignorância e um assustador desinteresse. Quando estas invisíveis barreiras que, separam as insularidades sociais, são transpostas por Irene, o que vemos é a sua identidade enquanto parte da sua sociedade a se dissipar, ela torna-se vapor humano na sua presença e impossível de compreender. Os trabalhadores que ela tenta ajudar veem-na como uma santa, e os burgueses como uma louca, ela, de certo modo, rejeita todos os seus limites e todos ela aceita, como que uma figura maternal de abnegação e caridade para com todo o mundo que a rodeia. Transcende a religião e a política, chegando a algo mais profundamente espiritual e, mesmo para uma audiência distante e contemporânea, difícil de aceitar numa sociedade de agora.

 Quando falo em vapor, falo do modo como de um estado concreto e definido de lugar social, económico, espiritual e humano, Irene expande os seus limites, como que se desfazendo da sua identidade, se desfazendo do indivíduo limitado para se tornar uma entidade da coletividade. O contraste entre a materialidade e a imaterialidade são constantes no trabalho de Rossellini, manifestando-se maioritariamente no modo como observa de forma direta e material o mundo numa linguagem realista como, em oposição, joga com a imaterialidade da condição espiritual. Aqui Irene sofre como que uma transição de um estado ao outro, sendo que logo de início há uma enorme materialidade que a define, a casa que a câmara percorre, o carro reluzente, as roupas que criam silhuetas declarativas na composição, sendo que tudo isso se vai dissipando até o espiritual a definir e não sua localização física e material. No final, Irene é muitas vezes vista contra paredes brancas, desfocadas, em grandes planos luminosos, como que desmaterializada do espaço limitado em que se insere. Irene e Bergman dissipam-.se e esbatem os limites que a sociedade e o cinema, cheio de movimentos e separações ideológicas, impõe sobre elas. Rossellini dissipa os limites do cinema, e com eles dissipa Irene, tornando-a em algo etéreo e extraordinário.

  Tal como a persona de Irene, também o olhar dela e o olhar do filme se expande e atravessa os limites que lhe são impostos. Na sociedade do filme, o olhar está por detrás da ação, mas nem sempre é seu direto antecessor, sendo que Irene vai adaptando o seu olhar ao longo do filme, mas a sua definitiva transformação ocorre no hospital, depois da ação se seguir ao olhar, depois do olhar recair sobre si mesmo, coletivo e santo na sua abrangência. Quando entra no hospital, as pacientes olham diretamente para a câmara, num plano da perspetiva de Irene, puxando o plano para a sua perspetiva, destruindo os pressupostos da audiência e da linguagem fílmica em que estão. Irene nunca nos confronta de tal modo, olhando para a câmara, a não ser num momento central, no momento final da sua transmutação, quando acalma uma mulher que acabou de tentar o suicídio. A mulher olha para a câmara, e, pela primeira vez no filme, Irene retribui o olhar, como que o olhar se tornasse ação e se reflete-se sobre si próprio, o indivíduo material de Irene extingue-se, e diz à mulher que não está sozinha. Na sua evolução espiritual, Irene torna-se santa, com o seu olhar para o espetador, ela transcende os limites do próprio filme enquanto construção artificial, atravessa tempo e espaço, e em estado de vapor torna-se a imagem da santa que é celebrada no final do filme. O cinema olha sobre si mesmo, e a humanidade olha para a humanidade, a transcendência espiritual em forma de filme, e a autorreflexão, o olhar sobre nós mesmos, é o caminho para tal transcendência e coletividade espiritual. Nas lágrimas e no olhar de Bergman, toda a humanidade reside, o seu olhar torna-se a porta para o paraíso de que fala numa parte do filme, em que todos são aceites, até Michele. O humanismo e a abnegação personificam-se numa imagem de beleza que é quase dolorosa de se olhar. Bergman raramente foi tão bela e Rossellini raramente tão transcendente.

  Mas, nem tudo em Europa ’51 é o espetáculo de êxtase cinematográfico que descrevo anteriormente. Tal como Stromboli, o filme padece de problemas rítmicos incontornáveis, mostrado uma certa falta de edição da parte de Rossellini, que também tem o triste efeito secundário de tornar partes do filme em cansativas repetições das mesmas ideias. Em termos de texto, há uma deselegância e queda na demasiada enfatização e explicação das suas ideias que trai a elegância e sofisticação da sua abordagem formal, que é, há que dizer, bastante subtil e que quase parece fugir dos visuais mais chamativos, sendo que nada neste filme tem o mesmo nível de espetacularidade que a pesca dos atuns ou o final de Stromboli, ou qualquer um dos passeios de Katherine em Viaggio in Italia.

  Esses problemas são, francamente, preocupações menores quando confrontados com o filme como um todo, sendo que é uma parte inseparável da série de filmes que Rossellini fez com Bergman num avançar estrondoso do cinema e dissolução de seus códigos e limites classicistas. O próprio modo como Rossellini usa uma estruturação de melodrama burguês para mostrar a construção da santidade numa pessoa, é incrivelmente desafiadora, negando a simplificação da bondade humana que vítima tantas obras do cinema ocidental mainstream e fugindo também às limitações do neorrealismo e outras vanguardas internacionais. Rossellini olha o mundo seu contemporâneo e fá-lo olhar sobre si mesmo, olhar para o estado da humanidade, mas não julga, não condena e não castiga, deixando a sua moralidade católica bastante presente mas nunca deixando o seu filme cair na didática religiosa. Aqui Bergman, que em tempos foi uma Joana d’Arc simples e superficial numa obra de Hollywood, mostra-se na mais bela das suas interpretações para Rossellini, apresentando-se neste filme como uma visão tão sobre humana na sua luminosidade como visceralmente humana na sua evolução e estado de perda emocional e existencial. Do sofrimento nasce o génio deste filme, e assim prossegue a viagem de progressão do cinema nas mãos de Rossellini e Bergman. Quando falei de Viaggio in Italia, falei de como o novo cinema de Rossellini já havia crescido e aprendido a andar e olhar quando se revela nesse filme, aqui temos a sua aprendizagem, o seu crescimento, personificado em Irene, em Bergman, na Europa em si, como vista em Europa ’51.


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