Com Europa ’51 continuamos a exploração de
uma das mais importantes colaborações da história do cinema, sendo que este
filme foi a segunda colaboração de Roberto Rossellini e Ingrid Bergman. Aqui, a
atriz é, de novo, uma estrangeira em Itália, uma mulher inglesa inserida na
alta burguesia de Roma que se torna uma espécie de versão feminina e
contemporânea de São Francisco de Assis, que Rossellini já tinha usado como
sujeito para um dos seus filmes em 1950. Seguimos esta santa contemporânea sob
o olhar de Rossellini, filmando Bergman em grandes planos que parecem sugerir La Passion de Jeanne D’Arc e em
movimentos constantes que seguem a atriz, e ouvimos o grito humanístico e espiritual
do autor, numa sociedade estratificada e em que a empatia humana parece ser
abjeta loucura, em que a santidade é incompreensível. Uma mãe perde o filho
depois deste se tentar matar, ignorado pela mãe e sozinho num mundo burguês. Face
à sua perda começa a alterar-se, a dissipar-se e a olhar a realidade daqueles
menos afortunados que si mesma. Isolada, nega a religião, o comunismo, a
superficialidade do seu meio, e é considerada louca e colocada num hospital
psiquiátrico, uma santa no contemporâneo. De novo aqui, o realizador usa um
estilo de cinema novo, meio romântico, meio realista, uma experiência que segue
a explosão de Stromboli mas que ainda
não chegou à maturação luminosa de Viaggio
in Italia.
Europa
’51 funciona como que um retrato de Rossellini do estado da Europa no pós-guerra,
sendo que aqui as brasas que ainda fumegavam durante a sua trilogia da guerra
há muito se extinguiram. O que encontramos no início do filme, é uma Europa,
mais especificamente, uma Itália em que a normalidade parece ter-se
forçosamente imposto e onde a guerra é uma memória tenebrosa, uma sombra que se
tenta ofuscar com a luminosidade da normalidade contemporânea. Michele (Sandro
Franchina), o filho da protagonista Irene (Ingrid Bergman), viveu com a mãe os
bombardeamentos sobre Londres e é, de certo modo, uma criança da guerra, que cresceu
durante a guerra e que vive como um fantasma neste mundo que tenta afastar do
seu olhar, o que na existência do rapaz se manifesta de modo invariável. Em Germannia Anno Zero, o jovem
protagonista suicida-se depois de encontrar um mundo sem lugar para a sua inocência
infantil, neste filme algo semelhante ocorre. Michele, uma manifestação viva do
passado europeu, é como que cronicamente ignorado, vendo-se num mundo de
fachadas normalizadas em que não se insere, o rapaz tenta suicidar-se. Quando
morre, não é apenas uma criança, um filho que falece, mas sim um sonho de
normalidade da Europa, um sonho do esquecimento. A uma criança da guerra uma
normalidade foi imposta, mas é impossível fazer-se tal coisa, e assim se
estilhaça essa esperança, e assim se estilhaça Irene, cuja identidade parece
entrar numa espiral de implosão, e, tal como a Europa no pós-guerra, se
reconstrói em algo novo, não uma simples visão de normalidade burguesa, mas em
algo incompreensível para a sociedade que tenta ignorar a fealdade do mundo em
que existem. Essa incompreensão é, apesar de tudo, meramente uma incompreensão
e não malícia ou maldade, pelo que o estudo de Rosselini é ainda mais cortante
e difícil de engolir, fugindo aos moralismos simplistas em que poderia ter
caído.
Parte dessa
incompreensão devém desse afastar do olhar da realidade do pós-guerra e devém
também de uma insularidade crónica, que se manifesta na estruturação social e
humana do mundo visto por Rossellini neste filme. O mundo inicial de Irene é
como que uma ilha, o proletariado outra mesma, a igreja outra, e por aí em
diante, não se mesclando estas insularidades humanas. Numa cena, um pouco óbvia
e deselegante, um grupo de amigos de Irene e seu marido, George (Alexander
Knox), brinca com um comboio em miniatura. Anteriormente havíamos ouvido de uma
greve nos transportes, mas nenhum dos convidados da festa em que se encontram
tiveram problemas, têm todos automóveis particulares, e aqui olham como
crianças jocosas o comboio, e divertem-se alheios à realidade que o brinquedo
inocente representa. Não há maldade no seu ato mas simples ignorância e um
assustador desinteresse. Quando estas invisíveis barreiras que, separam as
insularidades sociais, são transpostas por Irene, o que vemos é a sua
identidade enquanto parte da sua sociedade a se dissipar, ela torna-se vapor humano
na sua presença e impossível de compreender. Os trabalhadores que ela tenta
ajudar veem-na como uma santa, e os burgueses como uma louca, ela, de certo
modo, rejeita todos os seus limites e todos ela aceita, como que uma figura
maternal de abnegação e caridade para com todo o mundo que a rodeia. Transcende
a religião e a política, chegando a algo mais profundamente espiritual e, mesmo
para uma audiência distante e contemporânea, difícil de aceitar numa sociedade
de agora.
Quando falo em vapor,
falo do modo como de um estado concreto e definido de lugar social, económico, espiritual
e humano, Irene expande os seus limites, como que se desfazendo da sua
identidade, se desfazendo do indivíduo limitado para se tornar uma entidade da
coletividade. O contraste entre a materialidade e a imaterialidade são
constantes no trabalho de Rossellini, manifestando-se maioritariamente no modo
como observa de forma direta e material o mundo numa linguagem realista como,
em oposição, joga com a imaterialidade da condição espiritual. Aqui Irene sofre
como que uma transição de um estado ao outro, sendo que logo de início há uma
enorme materialidade que a define, a casa que a câmara percorre, o carro
reluzente, as roupas que criam silhuetas declarativas na composição, sendo que
tudo isso se vai dissipando até o espiritual a definir e não sua localização
física e material. No final, Irene é muitas vezes vista contra paredes brancas,
desfocadas, em grandes planos luminosos, como que desmaterializada do espaço
limitado em que se insere. Irene e Bergman dissipam-.se e esbatem os limites
que a sociedade e o cinema, cheio de movimentos e separações ideológicas, impõe
sobre elas. Rossellini dissipa os limites do cinema, e com eles dissipa Irene,
tornando-a em algo etéreo e extraordinário.
Tal como a persona de Irene, também o olhar
dela e o olhar do filme se expande e atravessa os limites que lhe são impostos.
Na sociedade do filme, o olhar está por detrás da ação, mas nem sempre é seu
direto antecessor, sendo que Irene vai adaptando o seu olhar ao longo do filme,
mas a sua definitiva transformação ocorre no hospital, depois da ação se seguir
ao olhar, depois do olhar recair sobre si mesmo, coletivo e santo na sua
abrangência. Quando entra no hospital, as pacientes olham diretamente para a câmara,
num plano da perspetiva de Irene, puxando o plano para a sua perspetiva,
destruindo os pressupostos da audiência e da linguagem fílmica em que estão.
Irene nunca nos confronta de tal modo, olhando para a câmara, a não ser num
momento central, no momento final da sua transmutação, quando acalma uma mulher
que acabou de tentar o suicídio. A mulher olha para a câmara, e, pela primeira
vez no filme, Irene retribui o olhar, como que o olhar se tornasse ação e se
reflete-se sobre si próprio, o indivíduo material de Irene extingue-se, e diz à
mulher que não está sozinha. Na sua evolução espiritual, Irene torna-se santa,
com o seu olhar para o espetador, ela transcende os limites do próprio filme
enquanto construção artificial, atravessa tempo e espaço, e em estado de vapor
torna-se a imagem da santa que é celebrada no final do filme. O cinema olha
sobre si mesmo, e a humanidade olha para a humanidade, a transcendência
espiritual em forma de filme, e a autorreflexão, o olhar sobre nós mesmos, é o
caminho para tal transcendência e coletividade espiritual. Nas lágrimas e no
olhar de Bergman, toda a humanidade reside, o seu olhar torna-se a porta para o
paraíso de que fala numa parte do filme, em que todos são aceites, até Michele.
O humanismo e a abnegação personificam-se numa imagem de beleza que é quase
dolorosa de se olhar. Bergman raramente foi tão bela e Rossellini raramente tão
transcendente.
Mas, nem tudo em Europa ’51 é o espetáculo de êxtase
cinematográfico que descrevo anteriormente. Tal como Stromboli, o filme padece de problemas rítmicos incontornáveis,
mostrado uma certa falta de edição da parte de Rossellini, que também tem o
triste efeito secundário de tornar partes do filme em cansativas repetições das
mesmas ideias. Em termos de texto, há uma deselegância e queda na demasiada
enfatização e explicação das suas ideias que trai a elegância e sofisticação da
sua abordagem formal, que é, há que dizer, bastante subtil e que quase parece
fugir dos visuais mais chamativos, sendo que nada neste filme tem o mesmo nível
de espetacularidade que a pesca dos atuns ou o final de Stromboli, ou qualquer um dos passeios de Katherine em Viaggio in Italia.
Esses problemas são, francamente, preocupações
menores quando confrontados com o filme como um todo, sendo que é uma parte
inseparável da série de filmes que Rossellini fez com Bergman num avançar
estrondoso do cinema e dissolução de seus códigos e limites classicistas. O
próprio modo como Rossellini usa uma estruturação de melodrama burguês para
mostrar a construção da santidade numa pessoa, é incrivelmente desafiadora,
negando a simplificação da bondade humana que vítima tantas obras do cinema
ocidental mainstream e fugindo também
às limitações do neorrealismo e outras vanguardas internacionais. Rossellini
olha o mundo seu contemporâneo e fá-lo olhar sobre si mesmo, olhar para o
estado da humanidade, mas não julga, não condena e não castiga, deixando a sua
moralidade católica bastante presente mas nunca deixando o seu filme cair na
didática religiosa. Aqui Bergman, que em tempos foi uma Joana d’Arc simples e
superficial numa obra de Hollywood, mostra-se na mais bela das suas interpretações
para Rossellini, apresentando-se neste filme como uma visão tão sobre humana na
sua luminosidade como visceralmente humana na sua evolução e estado de perda
emocional e existencial. Do sofrimento nasce o génio deste filme, e assim
prossegue a viagem de progressão do cinema nas mãos de Rossellini e Bergman.
Quando falei de Viaggio in Italia,
falei de como o novo cinema de Rossellini já havia crescido e aprendido a andar
e olhar quando se revela nesse filme, aqui temos a sua aprendizagem, o seu
crescimento, personificado em Irene, em Bergman, na Europa em si, como vista em
Europa ’51.
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