Quando decidi ver o
novo filme de Ann Hui, A Era de Ouro,
apresentado na Festa do Cinema Chinês que, de momento, decorre em Lisboa, não
tinha grande ideia do filme que me esperava. Sabia que tinha no papel da
protagonista a atriz Tang Wei, cujo trabalho em Sedução, Conspiração de Ang Lee lhe garantiu a minha eterna
devoção, e também tinha uma vaga ideia que era um filme biográfico sobre uma
autora chinesa do século XX. O filme é, de facto, uma obra biográfica sobre a celebrada
escritora chinesa Xiao Hong, cujo trabalho era para mim completamente
desconhecido, e depois de ver o filme, há que dizer, me mantenho na mesma
condição de ignorância. Sei agora da sua importância e relevância artística,
intelectual e literária, mas não tenho que agradecer tal coisa ao filme mas sim
à pesquisa que fiz depois de o ver, sendo que com quase três horas, o filme
pouco faz para elucidar o espetador acerca da sua figura central.
Não se pode, no
entanto, acusar o filme de não conter em si informação e facto histórico, pois
disso o filme tem em sobra, mas mantenho a minha opinião de que o filme pouco
ou nada tem a dizer sobre a sua figura central cuja breve vida conteve uma
infinidade de amizades com outras importantes figuras literárias, fugas do país,
o sofrimento da guerra, uma coleção de admiradores numerosos, entre outros,
sendo que quase tudo isso está, de certo modo, contido no filme. Desde o início
que o filme começa, de maneira clara e direta, a bombardear o espetador com
factos, aqui na forma da protagonista, filmada a preto-e-branco, a olhar
diretamente para a câmara e a descrever factualmente dados sobre a sua vida,
incluindo detalhes da sua morte. Depois disso passamos para um registo típico
de um filme biográfico não fosse o constante uso de personagens secundárias a
falarem diretamente para a câmara, dando mais informação ao espetador sobre a
escritora no amago do filme. Esta técnica bastante surpreendente num filme
deste malfadado género, mantém-se durante todo o filme, expondo Xiao Hong a
partir dos olhares dos seus amigos, admiradores e família, e mantendo uma
constante distância da mesma.
Isto, mais do que
fornecer qualquer tipo de retrato perspicaz da autora, cria uma confusão,
talvez intencional, de informações, por vezes contraditórias, e que, apesar da
sua claridade, criam uma sobrecarga imensa sobre o filme, que parece se perder
por entre essa inundação de diálogo expositivo dirigido à audiência. Os
intervenientes são, francamente, muito mais interessantes e bem definidos do
que a protagonista, devido a isto e ao resto da abordagem do filme, o que
permite a um exemplar elenco secundário injetar alguma vida neste filme, que
com a sua estrutura e duração consegue testar a paciência do mais forte dos
cinéfilos. Gostaria de especialmente louvar o trabalho de Yawen Zhu no papel de
Duanmu Hongliang, um autor admirador de Xiao Hong e uma figura central no
último terço do filme, que consegue capturar uma adoração apaixonante pela
protagonista e é, talvez a única pessoa no filme, que realmente transmite a
perda e melancolia que tanto impregnam a atmosfera da obra.
No papel principal d’A Era de Ouro temos a, já referida Tang
Wei. A sua contribuição ao filme é bastante curiosa. A atriz torna bastante
verosímil o génio e coleção de admiradores da autora, personificando na sua
presença um inegável carisma, beleza e inteligência. É fácil perceber porque é
que todas estas pessoas se sentiriam atraídas como traças a uma chama por Xiao
Hong, mesmo nos seus momentos mais petulantes ou abrasivos. No entanto, tudo
isto é exclusivamente superficial, sendo que a atriz, tal como todo o filme,
parecem querer manter uma distanciação colossal da vida interior da personagem
histórica. Isto não seria necessariamente problemático não fosse o extremo foco
do filme na vida pessoal da autora e visível desinteresse em explorar o seu
trabalho ou importância a não ser em alguns momentos fugazes. Com três horas de
melodrama histórico, e uma miríade de observações feitas sobre Xiao Hong, é
impressionante o quão pouco sabemos sobre ela ou a honesta falta de empatia
que, pelo menos, eu senti em relação à sua morte. A figura é fascinante e
elusiva mas há uma opacidade irritante sobre si, que parece paradoxal ao
interesse obsessivo no filme em catalogar cada movimento e momento da sua vida
pessoal e emocional. Isto é tanto culpa da atriz, como do texto como da
realizadora.
Ann Hui cria aqui
aquele que é talvez o seu mais ambicioso projeto, pelo menos em escala, virando
as costas ao íntimos e simples estudos de uma realidade contemporânea que
caracterizam muito o seu trabalho e virando-se para um épico biográfico de uma
figura de aparente extrema importância e fama literária. A simplicidade de
obras passadas é aqui substituído por floreados estruturais, como os atores a
olhar para a câmara ou a utilização de ocasional texto no ecrã, que cobrem e
decoram o que é, na verdade, um filme biográfico imensamente classicista. E
seguindo esse classicismo, temos uma sólida mas banal e desinteressante
concretização formal, sendo que apenas a fotografia tem algum interesse com o
seu uso de cores fortes e composições precisas e clássicas. O filme é tão
inegavelmente belo como é entediante e ineficaz.
No final, talvez
tenha sido a minha predisposição para detestar documentários ou a minha falta
de familiaridade com o sujeito do filme que me levam à minha presente situação
de insatisfação perante a obra, mas o facto é que não consigo encontrar grandes
aspetos positivos no filme, mesmo que o considerando apenas como um filme e
ignore toda a informação histórica na sua periferia. É uma obra de estranhos
paradoxos, um melodrama sem dinamismo dramático, um filme obcecado com a vida
privada mas que se mantém sempre distante da protagonista, uma montanha de
factos, citações e informações que deixa o público tão desinformado como estava
antes de ver o filme. A Era de Ouro é
quase um ensaio académico à volta de Xiao Hong, que apesar de estar
sobrecarregado de informação factual e histórica, parece se ter esquecido de
mostrar qualquer perspetiva ou formular qualquer tese acerca dessa informação.
Um filme ineficaz sobre uma celebrada autora e génio literário, que,
infelizmente, não contém nem sombra de inteligência ou perspetiva artística,
sendo apenas longo, enfadonho e ocasionalmente agradável nos seus visuais
clássicos e bastante comuns.
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