Tal como foi pedido através de um comentário no
Google+, aqui estão os meus pensamentos sobre Música no Coração.
The Sound of Music de Robert Wise é, ainda hoje, um dos mais bem-sucedidos
filmes alguma vez criados por Hollywood. Um sucesso de bilheteiras, um dos
filmes mais lembrados e adorados de sempre, um vencedor de 5 Óscares, incluindo
Melhor Filme, e um filme que, apesar da passagem do tempo, se mantém firmemente
na psique coletiva da contemporaneidade e que continua a ser relevante em
termos de cultura popular. O filme é difícil de observar sem o seu legado se
intrometer, sem qualquer nostalgia pessoal se infiltrarem no espetador, mas o contrário
também acontece, não fosse este um dos mais menosprezados e erradamente
descartados filmes para uma audiência contemporânea cheia de cinismo e
superioridade irónica.
O filme, cujo enredo
penso ser tão conhecido que seria uma tola futilidade colocar aqui um resumo, é
uma adaptação de um musical do duo Rodgers e Hammerstein, sendo que é, para
mim, a melhor adaptação do seu trabalho em filme. O verdadeiro herói por detrás
do sucesso do filme será, aliás, o argumentista Ernest Lehman que,
libertando-se de quaisquer noções de fidelidade para com a obra teatral, pega
num dos mais problemáticos trabalhos desse lendário duo do teatro musical e
sintetiza, reformula, reestrutura, molda e adapta o espetáculo num maravilhoso
texto, onde a maioria dos problemas que amaldiçoam o texto original se
dissipam. Lehman muda canções de lugar, muda motivações e comportamentos de
personagens, corta cenas e encurta momentos com uma absoluta precisão. O final
é um texto claro e dissimuladamente simples e com um ritmo onde as pausas
dramáticas são perfeitamente calibradas, permitindo que o filme flua
delicadamente apesar de ter quase três horas. Tantos outros musicais pecam por
uma falta de libertação das suas origens teatrais que The Sound of Music salta logo à vista. Longe de teatral, o filme é
intrinsecamente cinemático, se bem que a agradecer a esse facto temos também a
realização de Robert Wise.
Este não foi o primeiro musical de Robert Wise
a alcançar tão grande sucesso, tendo o realizador criado a versão para cinema
de West Side Story alguns anos antes
deste filme, mas nunca o impacto do seu cinema foi tão monumental como com este
filme, e raramente foi a sua eficiência melhor empregue que aqui. Tal como
muitos dos seus filmes, o início do filme é um triunfo de dinâmica e emoção
avassaladora, um momento de puro cinema cheio de grandiosidade e majestade, sendo
que o seu uso das paisagens naturais e dos planos por helicóptero é
inegavelmente inspirado. A sua insistência em filmar nas localizações reais,
por exemplo, representa tanto da sua abordagem ao filme, em que a atenção do
realizador com detalhes e pormenores paga os seus dividendos. No meio de toda a
grandiosidade do filme há um magistral domínio de tom, uma fuga ao simplicismo
sacarino da história e, como já disse, uma atenção ao pormenor que é típica do
realizador Veja-se a sua direção do simples número Maria, uma introdução na
segunda pessoa da protagonista do filme, em que a coreografia das mãos das
freiras é de uma enorme precisão, mostrando sempre um contraste entre as
pessoas que estão a favor ou contra Maria e apenas se tornando uma união visual
no final do número quando as freiras, como unidade de linhas pretas e
respeitosas, observam a chegada apressada e desajeitada da noviça que passa o
tempo a cantar e rodopiar pelas montanhas austríacas.
O visual do filme, de
forma geral, é do melhor que Hollywood poderia oferecer, com uma cenografia
que, seguindo o uso de localizações reais, parece almejar a um certo realismo
se bem que este é temperado por uma suavidade visual que engloba todo o design
do filme. Tanto na cenografia como nos figurinos há uma escolha insistente em
cores pastéis e suaves tonalidades em que o dramatismo cromático pertence
unicamente ao choque de vermelho que infeta a segunda metade do filme. Os
cenários são detalhados e complexos na sua superficial simplicidade, e os figurinos,
mais do que recriarem o ambiente pré-guerra são confortáveis desenhos
completamente pertencentes aos anos 60, mas com uma harmonia magistral em
relação ao resto da imagética do filme. A imagem do filme é de simplicidade precisamente
construída e que esconde o que é, na verdade, uma cuidada e pormenorizada
concretização. Isso nunca é mais visível que na fotografia do filme que, mais
do que triunfar nas filmagens de paisagens naturais, vai encontrando, nos momentos
mais negros e de pausa que Wise concede ao filme, uma delicadeza e elegância visual
surpreendente. O uso de luz e sombras é de imensa perfeição, especialmente na
segunda metade do filme e em cenas na abadia.
Mas toda a perfeição
visual do mundo seria um desperdício de talento e trabalho não fosse o elenco
genial. Julie Andrews e Christopher Plummer são de uma genialidade especial,
trabalhando num modo em que, apesar de aparentemente simples e pouco complexas,
as suas prestações são essenciais em não deixar o filme cair num vazio adocicado,
sem, no entanto negar a sua sinceridade. Andrews, que tinha acabado de ganhar o
Óscar de Melhor Atriz por Mary Poppins
quando este filme primeiro estreou, é um milagre em forma humana, sendo capaz
de injetar uma melancolia e sentido de abnegação dolorosa ao otimismo avassalador
que caracteriza a personagem de Maria Von Trapp, que é completamente removida
da realidade histórica da verdadeira Maria. Nas mãos de muitas outras atrizes,
Maria é um vácuo de fútil simplicidade, um sorriso santificado na forma de uma
jovem heroína romântica, uma imagem distante e inalcançável de melodiosa e inabalável
felicidade, mas, com o trabalho de Andrews, Maria nunca é distante ou fútil,
mas sim o coração emocional de toda a construção do edifício do filme. Plummer
não é de menor importância, sendo que o seu bem conhecido ódio pelo filme
contagia a sua presença no filme que, longe de ser simples e docemente ríspida,
é verdadeiramente abrasiva e severa, acrescentando uma acidez notória ao
desenvolver do romance e ao desenrolar do enredo, nunca permitindo que o filme caísse
na tolice açucarada que o ator julgava o filme ser.
Mas este tempero dos
mais simplisticamente doces aspetos do filme nunca é melhor visível que na
presença de Eleanor Parker como a Baronesa que tem intenções românticas e
mercenárias em relação ao Capitão Von Trapp. Parker é uma presença de
incandescente ironia e cinismo no meio do filme, movendo-se com uma elegância e
sofisticação quase sexual e que está muito além da inocência da figura de Maria.
Repare-se no modo como Wise lhe concede a sua atenção quando a atriz está
presente, usando-a não tanto como figura antagónica mas como forma de modular o
tom do filme. No meio de toda a inspiradora história de uma freira apaixonada
está esta presença, este toque de ironia e superioridade magnificamente
elegante e cortante. O guião e o realizador sabem, no entanto, quando se
afastar da sua figura, não permitindo que a sua leve manipulação e ciúme se
tornem demasiado fulcrais e centrais, permitindo à figura dissipar-se e não
distrair do verdadeiro poder antagónico do filme, cuja realidade da sua ameaça
é monumentalmente pesada e inabalável em relação à sobremesa musical que muitos
julgam o filme ser.
A estrutura do filme
é imensamente fácil de dividir em duas partes de invariável diferença tonal,
sendo que é na segunda em que essa ameaça nazi se manifesta em toda a sua sufocante
e opressiva totalidade. Primeiro temos o filme até ao casamento dos dois
protagonistas, ou se quisermos ser mais abrangentes poderíamos dizer que apenas
dura até à partida de Maria da casa dos Von Trapp. Esta parte é imensamente
inocente e alegre, com uma corrente de melancolia e romance pelo meio e é
maioritariamente sincera e tocante. Há uma condição quase infantil na
ingenuidade e inocência desta parte, que é contrastado com a enorme incongruência
do tom na segunda parte. Aí a inocência infantil passa a uma maturidade adulta.
O sonho de uma criança passa a ser o otimismo perseverante de um adulto. Se os
filmes musicais são usualmente caracterizados como felizes, simples e
invariavelmente risonhos e otimistas, a segunda metade deste filme parece pôr
essa noção à prova, colocando o otimismo do género face a uma das maiores
instituições do mal da humanidade, mesclando o romantismo histórico com o
legado sanguinário que a mera imagem da cruz suástica consigo carrega. Por
muitos anos, achei que o filme se perdia nesta segunda parte, perdendo Andrews
como foco do filme. Mas, tendo revisto o filme três vezes antes de escrever
este texto, tenho a dizer que a minha opinião tem-se vindo a alterar, sendo
que, apesar da sua simplicidade, há algo de imensamente complicado e até
sofisticado na mistura de tons e intenções nesta segunda parte, tanto que a
mudança de uma história de uma protagonista para uma história de uma família como
unidade parece-me não só defensível, como inerentemente essencial.
Os anos 60 foram uma
década muito negra para o cinema americano, sendo que a mediocridade opulente
parecia ser a ordem do dia. Os musicais foram particularmente afetados por
isto, entrando numa fase de decadência na segunda metade da década que iria
apenas culminar nos anos setenta, em que o género se tornou uma espécie em vias
de extinção no panorama cinematográfico americano. Este foi um dos seus últimos
momentos de indubitável glória na tradição classicista de Hollywood, sendo que
a delicadeza e primor estrutural e técnico permitiram ao filme escapar ao tipo
de falhas que afetaram outros filmes na época celebrados mas que hoje em dia
são objeto de escárnio e crítica, como My
Fair Lady Doctor Dolittle ou Hello Dolly! Onde o resto desses filmes
eram monstruosos e pesados, há uma leveza e claridade absoluta em The Sound of Music.
Não sou tolo o suficiente
ao ponto de negar que o filme é uma obra de classicismo otimista e concebido
para ganhar quantidades grotescas de dinheiro para os estúdios, mas, com tudo
isso em conta, o filme é impossível de ignorar. O charme da obra é inegável e
tem-se mantido vivo e relevante durante décadas e os aspetos, que anteriormente
mencionei, contribuem para que o filme seja uma obra modulada e tonalmente
variada, não sendo simplesmente uma alegria vazia sem limites. Este é o
absoluto píncaro do dito cinema para famílias, e talvez por isso tenha ganho
uma reputação tão paradoxal. Muitos adoram o filme, e muitos outros detestam a
sua existência, olhando com desdém as suas intenções, a sua musicalidade e o
seu otimismo e sinceridade. Para mim, que muitas vezes caio em semelhantes
cinismos e pensamentos críticos, o filme é uma obra de pouca ambição, simples
intenções, e maravilhosa concretização. Como muitos profissionais de Hollywood
dizem em chorosos discursos cheios de clichés quando ganham troféus, o filme é
simplesmente uma história bem contada. Uma história tocante e contada com todo
o luxo que Hollywood podia fornecer e com uma equipa incrivelmente sagaz e precisa
por detrás, fazendo deste filme um dos inabaláveis clássicos do cinema como arte
e como forma de entretenimento.
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