The Look of Silence, o segundo
documentário de Joshua Oppenheimer sobre os massacres de 1965 e 66 na Indonésia,
é praticamente impossível de separar do seu antecessor, The Act of Killing. De tal modo que sinto ser essencial o
visionamento do primeiro filme para se poder completamente apreciar este filme.
Não é que este filme não consiga existir como uma obra individual, mas há um
contraste em termos de foco e interesse entre os dois filmes, que me parece
essencial. Em termos mais pragmáticos, o primeiro filme oferece muito mais
contexto histórico que o primeiro, o que é absolutamente necessário para o
entendimento dos horrores humanos expostos no filme.
Não explicarei aqui o
contexto histórico e politico do filme pelo que encorajo quem quer que pense em
ver este filme em, ou ver o primeiro filme, ou em pesquisar sobre os massacres
contra os comunistas que assolaram a Indonésia nos anos 60, e cujos assassinos
são, hoje em dia, heróis, em que os massacres são ensinados nas escolas como
algo glorioso na história da nação.
Em The Act of Killing, a informação sobre o
massacre e a psique dos assassinos está no centro do filme, o ato de contar
histórias e interpretar o passado pessoal temas tão fortes como a história
sangrenta do país. Na pseudo sequela desse mesmo filme, o que temos é algo
bastante diferente, um foco muito menos abrangente, havendo uma família como
elemento principal do filme.
Acompanhamos Adi, cujo irmão foi morto durante os
massacres antes do seu nascimento, e a sua família, nomeadamente os seus pais
anciãos. Adi vai aparecendo como um oculista, atividade que vai possibilitando
uma série de entrevistas e confrontações improvisadas entre este descendente de
vítimas e vários assassinos e familiares dos que executaram centenas de
milhares de pessoas durante os massacres anticomunistas.
É um filme sobre a
assimilação do passado, sobre reações e olhares silenciosos. A face humana foi
poucas vezes tão perspicazmente explorada por uma câmara do que neste filme. O
filme oferece uma coleção de cenas e sequências em que os momentos em que os
assassinos e suas famílias pausam e pensam sobre o que vão dizer parece mais
importante que o que dizem. Uma filha ouve o pai descrever como bebia o sangue
dos comunistas que matava e vemos a sua assimilação da atrocidade e o modo como
a põe de parte e sorri para o homem que a entrevista. A boa educação parece
corroer cada entrevista, o horror do passado ignorado ou glorificado. O crime
tornado uma cicatriz para onde ninguém quer olhar. Quando confrontados, por
vezes com provas irrefutáveis, as pessoas entrevistadas lutam por desviar o
olhar da verdade do passado, e nesses momentos o filme expõe algo incrivelmente
horrendo acerca da natureza humana, melhor do que qualquer filme que vi
anteriormente.
Uma nação que cresce
sobre os cadáveres de um verdadeiro genocídio e em que as famílias vitimizadas
vivem lado a lado com os assassinos de seus pais, filhos, irmãos, etc. Há uma
tensão de cortar à faca por todo o filme que se vai progressivamente
intensificando à medida que os entrevistados se começam a aperceber do retrato
que Oppenheimer está a criar e que está longe da cicatriz não olhada que
caracteriza a sua relação com o passado.
Quando vi Shoah de Claude Lanzman, a sua frieza e
clareza na transmissão de informação a partir de vítimas e perpetradores do
Holocausto impressionou-me, aqui tal frieza não aparece no contar das
informações. Longe da narração aterradoramente objetiva de Lanzman na sua leitura
de documentos oficiais, aqui temos uma câmara que não corta, que não desvia o
olhar da face de assassinos, muitos dele com a aparência de afáveis avós, à
medida que eles vão relembrando e racionalizando o seu massacre, enquanto vão
contando como cortavam os genitais aos homens e os atiravam às águas de um rio.
Mas, talvez, mais que
a reação individual dos humanos no filme, a reação coletiva de uma nação seja o
aspeto mais assustador e fascinante do filme. Uma reportagem da NBC em que é
dada uma perspetiva glorificada e americana ao massacre é particularmente
chocante, mostrando a purga da ameaça comunista e a utilização de mão-de-obra
escrava tirada de campos de prisioneiros numa fábrica americana de borracha. O
olhar que se afasta do passado e da realidade, não se trata só do olhar do
indivíduo, é também o olhar do mundo.
Há uma simplicidade
formal na abordagem de Oppenheimer que surpreende depois dos floreados
exuberantes de The Act of Killing,
assemelhando-se The Look of Silence
mais a um documentário afetado pelo legado de Ingmar Bergman, do que ao noir
delirantemente absurdo em que o documentário anterior perversamente se ia
transformando. O filme é menos ambicioso e impressionante nesses aspetos, mas
em termos de impacto, é tão monumental como o outro filme. Os dois compondo uma
das mais importantes obras documentais na história do cinema contemporâneo, e
talvez na história do meio desde a sua génese. Como uma documentação de
testemunha política, se quisermos ignorar tudo o resto na obra, o filme
continua a ser imprescindível e essencial, nem que seja pela sua abjeta coragem
e humanidade latente.
Não sei se consigo
expressar por palavras a importância e o génio deste filme, mas apelo qualquer
pessoa a ver esta obra-prima, com a consciência que estão prestes a vislumbrar
um dos mais horrendos documentos sobre o horror e fealdade do ser humano.
Angustiante e aterradora na mesma medida que é uma inegável magistral joia
cinematográfica.
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