Em 1941, com Citizen Kane, Orson Welles tornou-se um
dos mais importantes autores da história do cinema, mas, apesar do seu génio
cinematográfico, a ambição que demonstrou na sua primeira longa-metragem de
Hollywood teve um preço que se fez sentir pelo resto da sua carreira. O filme
foi um desastre em termos financeiros, com pouco apoio da audiência e atacado
pela imprensa vingadora. A partir daí, o trabalho de Welles com estúdios passou
a ser fortemente marcado pela interferência desesperada desses mesmos na
alteração dos filmes de Welles. Muitas das suas obras apenas existem hoje em
dia na deformidade incompleta das edições feitas pelos estúdios, sendo que,
mesmo assim existem alguns filmes que Welles conseguiu completar sem
interferência. O filme de que me proponho a qui a falar á, talvez o mais
confuso e complexo caso deste tipo na carreira do realizador, resultando em
pelo menos sete versões diferentes do mesmo filme e na inexistência de uma
versão final de Welles.
A versão com que
estou mais familiarizado, e a única que vi em cinemas, é chamada versão da Corinth,
distribuída nos EUA pela Corinth Films, e por muitos anos considerada a versão
mais próxima da original, mas confusa, visão de Welles. Para obterem mais
informação sobre as diferentes versões e do purgatório que foi a pós-produção
do filme, aconselho a lerem este artigo de Jonathan Rosenbaum, pois não tenho tensões de escrever aqui tal dissertação sobre esse específico
aspeto de um dos mais misteriosos e estranhos trabalhos do enfant terrible de Hollywood.
Algo que me ficou
preso na memória desde a primeira vez que vi este filme, é o quão grotesco e
sonhador o filme consegue ser. Ver o filme numa sala de cinema, mergulhado na
escuridão e na coletividade, é algo parecido com ver um pesadelo acordado, em
que certos momentos não parecem fazer sentido na sua sequência, em que tudo
parece mergulhado num grotesco e exagero que desafia qualquer racionalidade e
em que o básico do comportamento humano não parece existir senão numa perversão
fantasmagórica do mesmo. O realizador terá expressado que nunca chegou a ter
completo domínio ou ideia sobre o que queria que fosse o filme final, sendo que
mesmo as versões mais próximas da visão de Welles estivessem inexoravelmente
inacabadas. Este é, portanto, uma obra quase que experimental, incompleta e
confusa. E talvez seja por tudo isso que é, para mim, um dos mais inesquecíveis
e maravilhosos filmes do realizador.
Acima de tudo, o
filme é o pináculo do trabalho do realizador no seu exílio europeu, sendo que é
uma espécie de pináculo para o cinema europeu da época. Digo isto, pois o filme
é, mais que um thriller ou um mistério, uma reflexão sobre o estado da Europa.
Arkadin, a figura central interpretada por Welles, é um homem com um passado
obscuro e violento, um monstro, um deus horrendo em forma humana, uma visão de
uma Europa criminosa e marcada pela destruição. Arkadin, quando confrontado com
um homem, Guy Van Stratten (Robert Arden), que tenta chantagear o mestre
criminoso com informação, Arkadin contrata o homem para investigar o seu
passado. Arkadin afirma sofrer de amnésia e assim se irá estruturar o filme,
como que uma versão macabramente delirante de Citizen Kane, uma busca pelo passado de um indivíduo cuja grandeza
é quase sobre-humana, como que Harry Limes tornado divindade.
Nessa busca por informação,
pelos crimes do passado, a Europa do pós-guerra vai sendo revelada numa série
de episódios, cada um mais grotesco que o outro. Um mundo podre e cheio de
segredos negros e perigosos, povoado por um dos mais magníficos elencos alguma
vez reunidos por Welles, cheio de estrelas internacionais, muitas delas
caracterizadas ao ponto de se tornarem gárgulas vivas. À medida que a
informação vai aparecendo, os informadores vão sendo destruídos, o passado
negro é apagado pela violência. A filha de Arkadin, Raina (Paola Mori), captura
o interesse de Guy, e nela se personifica uma ideia de pureza, de utopia. O
desejo de esconder da filha a monstruosidade da existência do pai, Arkadin
entra num processo de autodestruição, eliminando metodicamente o passado e, no
final, como que desparecendo de existência. A utopia de um novo mundo distante
tornada uma perversidade, uma ilusão pela qual uma Europa, cheia de crimes passados
e presentes, se elimina, se faz sumir de existência na esperança de a
preservar. Para a criação de um novo mundo, há que esquecer o velho e o
esquecimento aqui manifesta-se como uma destruição violenta.
As figuras do filme
são ora flagrantemente simples, como Guy, cujo próprio nome parece indicar a
sua condição de herói comum deste tipo de filmes como que Welles não quisesse
qualquer distração da sua viagem pelos labirintos negros do passado, ora
exaustivamente complexas, ao ponto de se tornarem ora arquétipos ora divindades
vivas, como Arkadin, cuja presença é muito mais que simplesmente humana, e tal
presença é maravilhosamente criada na figura do próprio Welles, poucas vezes
tão deliciosamente exagerado ou ameaçador como neste filme. O elenco já mencionado
que compõe a coleção de faces do passado é tão internacional como as suas
personagens, e as suas próprias faces parecem transportar um cinéfilo para
diferentes mundos cinemáticos. Katina Paxinou, Akim Tamiroff, Mischa Auer,
Michael Redgrave, Peter van Eyck e muitos outros oferecem ao filme, algum do
seu mais bizarro trabalho, saboreando a excentricidade macabra das suas figuras
e abraçando o barroquismo do filme na sua expressão e hipnotizante intensidade.
Tão grotesco como as
figuras humanas é o mundo conjurado por Wells, que se estende de castelos
medievais espanhóis à miséria de europeus exilados no deserto mexicano. O
estilo do realizador é aqui levados a extremos que, longe de terem a precisão
controlada e magistral de Le Procés,
um filme sob o completo controlo do seu autor, são uma tempestade descontrolada
e desenfreada de ideias visuais. Grandes angulares, deep focus, preto e branco cheio de sombras, cenários recheados de
detalhes que cansam o olho só com a sua existência. A miséria e a podridão
manifestam-se mesmo na beleza fria do mundo de Arkadin, um mundo de máscaras e
falsidades descaradas. Até aquilo que mais sacrossanto que deveria de existir,
como uma celebração religiosa em Espanha, se torna num aterrorizante desfile de
sombras. Mas nos extremos grotescos do filme, Welles encontra momentos de
beleza invulgar, como a neve que cai delicadamente sobre um edifício delapidado
em Copenhaga ignorando o caos do drama humano e transmitindo uma serenidade
quase espiritual no meio do inferno amoral da Europa sob o olhar de Welles.
Em 1955, as inovações
que marcaram o cinema europeu do pós-guerra, como o neorrealismo italiano,
começavam a deixar de ser inovadores, as suas características assimiladas e
desenvolvidas noutras direções já um pouco distantes dos ímpetos do cinema de
uma Europa ainda a fumegar. No futuro do cinema europeu temos as vanguardas do
cinema europeu, a Nouvelle Vague a apenas alguns anos de explodir no panorama
cinemático. Em 1955, Mr. Arkadin é como que o píncaro do cinema
do pós-guerra, a fase final e barroca da sua evolução, e no seu barroquismo
aparecem as primeiras chamas que irão incendiar o mundo do cinema na década
seguinte. O filme, por muito complexa e confusa que seja a sua história existe
como um momento de transição esquecida. Um filme sobre a Europa, tanto no
sentido histórico e moral como no sentido cinematográfico. Um monumento
esquecido numa das filmografias mais fascinantes na história do cinema e um
filme cuja feiura e grotesco quase niilista conseguem, estranhamente, ter
relevância nos dias de hoje. Um filme para uma Europa em crise, em
autodestruição e em esquecimento dos erros do passado.
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