sábado, 5 de setembro de 2015

MR. ARKADIN (1955) de Orson Welles



 Em 1941, com Citizen Kane, Orson Welles tornou-se um dos mais importantes autores da história do cinema, mas, apesar do seu génio cinematográfico, a ambição que demonstrou na sua primeira longa-metragem de Hollywood teve um preço que se fez sentir pelo resto da sua carreira. O filme foi um desastre em termos financeiros, com pouco apoio da audiência e atacado pela imprensa vingadora. A partir daí, o trabalho de Welles com estúdios passou a ser fortemente marcado pela interferência desesperada desses mesmos na alteração dos filmes de Welles. Muitas das suas obras apenas existem hoje em dia na deformidade incompleta das edições feitas pelos estúdios, sendo que, mesmo assim existem alguns filmes que Welles conseguiu completar sem interferência. O filme de que me proponho a qui a falar á, talvez o mais confuso e complexo caso deste tipo na carreira do realizador, resultando em pelo menos sete versões diferentes do mesmo filme e na inexistência de uma versão final de Welles.

 A versão com que estou mais familiarizado, e a única que vi em cinemas, é chamada versão da Corinth, distribuída nos EUA pela Corinth Films, e por muitos anos considerada a versão mais próxima da original, mas confusa, visão de Welles. Para obterem mais informação sobre as diferentes versões e do purgatório que foi a pós-produção do filme, aconselho a lerem este artigo de Jonathan Rosenbaum, pois não tenho tensões de escrever aqui tal dissertação sobre esse específico aspeto de um dos mais misteriosos e estranhos trabalhos do enfant terrible de Hollywood.

 Algo que me ficou preso na memória desde a primeira vez que vi este filme, é o quão grotesco e sonhador o filme consegue ser. Ver o filme numa sala de cinema, mergulhado na escuridão e na coletividade, é algo parecido com ver um pesadelo acordado, em que certos momentos não parecem fazer sentido na sua sequência, em que tudo parece mergulhado num grotesco e exagero que desafia qualquer racionalidade e em que o básico do comportamento humano não parece existir senão numa perversão fantasmagórica do mesmo. O realizador terá expressado que nunca chegou a ter completo domínio ou ideia sobre o que queria que fosse o filme final, sendo que mesmo as versões mais próximas da visão de Welles estivessem inexoravelmente inacabadas. Este é, portanto, uma obra quase que experimental, incompleta e confusa. E talvez seja por tudo isso que é, para mim, um dos mais inesquecíveis e maravilhosos filmes do realizador.

 Acima de tudo, o filme é o pináculo do trabalho do realizador no seu exílio europeu, sendo que é uma espécie de pináculo para o cinema europeu da época. Digo isto, pois o filme é, mais que um thriller ou um mistério, uma reflexão sobre o estado da Europa. Arkadin, a figura central interpretada por Welles, é um homem com um passado obscuro e violento, um monstro, um deus horrendo em forma humana, uma visão de uma Europa criminosa e marcada pela destruição. Arkadin, quando confrontado com um homem, Guy Van Stratten (Robert Arden), que tenta chantagear o mestre criminoso com informação, Arkadin contrata o homem para investigar o seu passado. Arkadin afirma sofrer de amnésia e assim se irá estruturar o filme, como que uma versão macabramente delirante de Citizen Kane, uma busca pelo passado de um indivíduo cuja grandeza é quase sobre-humana, como que Harry Limes tornado divindade.

 Nessa busca por informação, pelos crimes do passado, a Europa do pós-guerra vai sendo revelada numa série de episódios, cada um mais grotesco que o outro. Um mundo podre e cheio de segredos negros e perigosos, povoado por um dos mais magníficos elencos alguma vez reunidos por Welles, cheio de estrelas internacionais, muitas delas caracterizadas ao ponto de se tornarem gárgulas vivas. À medida que a informação vai aparecendo, os informadores vão sendo destruídos, o passado negro é apagado pela violência. A filha de Arkadin, Raina (Paola Mori), captura o interesse de Guy, e nela se personifica uma ideia de pureza, de utopia. O desejo de esconder da filha a monstruosidade da existência do pai, Arkadin entra num processo de autodestruição, eliminando metodicamente o passado e, no final, como que desparecendo de existência. A utopia de um novo mundo distante tornada uma perversidade, uma ilusão pela qual uma Europa, cheia de crimes passados e presentes, se elimina, se faz sumir de existência na esperança de a preservar. Para a criação de um novo mundo, há que esquecer o velho e o esquecimento aqui manifesta-se como uma destruição violenta.

 As figuras do filme são ora flagrantemente simples, como Guy, cujo próprio nome parece indicar a sua condição de herói comum deste tipo de filmes como que Welles não quisesse qualquer distração da sua viagem pelos labirintos negros do passado, ora exaustivamente complexas, ao ponto de se tornarem ora arquétipos ora divindades vivas, como Arkadin, cuja presença é muito mais que simplesmente humana, e tal presença é maravilhosamente criada na figura do próprio Welles, poucas vezes tão deliciosamente exagerado ou ameaçador como neste filme. O elenco já mencionado que compõe a coleção de faces do passado é tão internacional como as suas personagens, e as suas próprias faces parecem transportar um cinéfilo para diferentes mundos cinemáticos. Katina Paxinou, Akim Tamiroff, Mischa Auer, Michael Redgrave, Peter van Eyck e muitos outros oferecem ao filme, algum do seu mais bizarro trabalho, saboreando a excentricidade macabra das suas figuras e abraçando o barroquismo do filme na sua expressão e hipnotizante intensidade.

 Tão grotesco como as figuras humanas é o mundo conjurado por Wells, que se estende de castelos medievais espanhóis à miséria de europeus exilados no deserto mexicano. O estilo do realizador é aqui levados a extremos que, longe de terem a precisão controlada e magistral de Le Procés, um filme sob o completo controlo do seu autor, são uma tempestade descontrolada e desenfreada de ideias visuais. Grandes angulares, deep focus, preto e branco cheio de sombras, cenários recheados de detalhes que cansam o olho só com a sua existência. A miséria e a podridão manifestam-se mesmo na beleza fria do mundo de Arkadin, um mundo de máscaras e falsidades descaradas. Até aquilo que mais sacrossanto que deveria de existir, como uma celebração religiosa em Espanha, se torna num aterrorizante desfile de sombras. Mas nos extremos grotescos do filme, Welles encontra momentos de beleza invulgar, como a neve que cai delicadamente sobre um edifício delapidado em Copenhaga ignorando o caos do drama humano e transmitindo uma serenidade quase espiritual no meio do inferno amoral da Europa sob o olhar de Welles.

 Em 1955, as inovações que marcaram o cinema europeu do pós-guerra, como o neorrealismo italiano, começavam a deixar de ser inovadores, as suas características assimiladas e desenvolvidas noutras direções já um pouco distantes dos ímpetos do cinema de uma Europa ainda a fumegar. No futuro do cinema europeu temos as vanguardas do cinema europeu, a Nouvelle Vague a apenas alguns anos de explodir no panorama cinemático. Em 1955, Mr. Arkadin é como que o píncaro do cinema do pós-guerra, a fase final e barroca da sua evolução, e no seu barroquismo aparecem as primeiras chamas que irão incendiar o mundo do cinema na década seguinte. O filme, por muito complexa e confusa que seja a sua história existe como um momento de transição esquecida. Um filme sobre a Europa, tanto no sentido histórico e moral como no sentido cinematográfico. Um monumento esquecido numa das filmografias mais fascinantes na história do cinema e um filme cuja feiura e grotesco quase niilista conseguem, estranhamente, ter relevância nos dias de hoje. Um filme para uma Europa em crise, em autodestruição e em esquecimento dos erros do passado.

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