Sinto-me um pouco
receoso de expressar desde já a minha opinião acerca da grande opus de Miguel Gomes, As Mil e Uma Noites, em parte porque
ainda não vi o épico na sua forma completa. A escolha de dividir e distribuir o
filme em três volumes é, sem dúvida, uma escolha comercialmente sã e uma
maneira de assegurar uma maior acessibilidade do material a um público que
estremeceria face à “tarefa” de ver um filme de seis horas, mas, mesmo assim,
continuo infeliz de não ter a oportunidade de ver de uma só vez o material.
Parece-me que necessito de ver o filme completo antes de tentar transmitir
qualquer observação acerca dele mesmo, mas visto isso só ir acontecer em
Outubro, venho desde já expressar algumas opiniões acerca do primeiro volume,
sendo que no futuro talvez acabe por discordar com observações aqui feitas.
O filme,
recentemente chegado às salas de cinema portuguesas, traz consigo uma já enorme
carga de expetativas e de prestígio internacional. Estreado na Quinzena dos
Realizadores em Cannes e premiado em Sidney e na Polónia, o filme parece estar
a revelar-se como uma das mais ambiciosas obras do cinema de 2015 a nível
mundial, regressando a uma intensidade política e satírica que parece se ter
vindo a desvanecer em grande parte do cinema contemporâneo.
A ambição do filme,
que é efetivamente uma espécie de epopeia da crise económica portuguesa levada
ao nível do mito, é monumental. E, quando falo de ambição, falo tanto da
narrativa e conteúdo temático volátil como falo de forma e estrutura. O início
do filme perfeitamente demonstra este peso da ambição cinemática, iniciando-se
com uma visão documental e quase lírica sobre o encerramento dos estaleiros de
Viana do Castelo e o seu impacto na comunidade. Vemos imagens dispersas, rudes
e cruas mas belíssimas, capturadas pelo diretor de fotografia Sayombhu
Mukdeeprom (usual colaborador de Apichatpong Weerasethakul), e conjugadas com
um voz-off constante de trabalhadores afetados pelo fecho dos estaleiros. Mas,
juntamente a isto, temos a invasão de vespas asiáticas e sua destruição das
abelhas nativas, assim como a luta para a destruição das vespas que oferece à
audiência imagens magníficas de uma colmeia de vespas a arder e espalhar uma
chuva de fagulhas na escuridão de uma noite cerrada.
O realizador, que é
uma presença inescapável nestes primeiros capítulos do filme, afirma não
perceber a ligação dos dois eventos, mas esta confusão parece ser um pouco de
humildade forçada, sendo que uma ameaça estrangeira que entra em Portugal e
destrói os seus nativos não me parece ser muito difícil de metaforicamente
ligar às intenções políticas do filme. Esta confusão do realizador é, no
entanto, um dos melhores elementos do filme, culminando na fuga do realizador
da sua equipa de filmagens dentro do filme. A crise criativa junta-se à crise
económica e social e no desespero surge o génio, surge a estrutura. Do ridículo
e absurdo emerge a clareza, uma clareza que, na verdade, é um caminho a mais
glorioso ridículo e absurdo.
A estrutura e método
do resto do filme já foram bastante falados tanto nacional como
internacionalmente, mas, basicamente, Gomes utilizou jornalistas que iam
reportando notícias de acontecimentos em Portugal ao longo de um período de 12 meses,
fornecendo material para uma estrutura episódica que usa a história de Xerazade
d’ As Mil e Uma Noites. A figura da
contadora de histórias aparece num onírico capítulo das virgens de Bagdad, aqui
no papel de fornecedoras de histórias, como que análogas dos jornalistas para
Gomes, e a partir daí vamos observando capítulos do filme na forma de contos,
ora satíricos e crassos, ora repletos de realismo social mesclado com
tonalidades bíblicas.
Neste volume, temos
três desses contos, chamados “Homens de Pau Feito”, “A História do Galo e do
Fogo” e “O Banho dos Magníficos”. No primeiro temos uma sátira política que vê
políticos portugueses, entre eles o primeiro-ministro (Rogério Samora), a
receberem implacáveis estrangeiros e a negociarem as medidas económicas e
sociais a impor sobre o país. Pelo meio temos um feiticeiro das colónias
francesas em África, um spray que produz ereções mágicas, e uma parada de
nojentos comportamentos que apenas demonstram um distanciamento assustador
entre a realidade da calamidade social do país e os jogos incompetentes de
poder e relevância dos políticos europeus e portugueses. O humor é crasso,
grotesco e a sátira não podia ser mais óbvia, há uma raiva inegável por detrás
de cada momento, e uma gloriosa apreciação pelo ridículo e absurdo, tanto a um
nível textual como formal.
De seguida, uma
história de um galo em Resende, que canta a meio da noite e vai enfurecendo a
comunidade que põe o animal em tribunal. Se o primeiro conto é uma sátira ácida
dos políticos atuais interpretada por atores conhecidos, este é uma deliciosa
comédia absurdista que culmina no revelar de uma história de amor literalmente
fogoso entre jovens pré-adolescentes, pelo galo, durante o seu julgamento face
a um juiz que percebe a fala dos animais.
No terceiro, um
sindicalista cansado e deprimido (Adriano Luz) a tentar organizar o primeiro
banho do ano de 2014, com uma comunidade na miséria depois do encerramento dos
estaleiros vislumbrados no início da obra. Por três vezes vemos um relato real
de trabalhadores desempregados, em planos longos e quase estáticos, dando uma
atmosfera de inescapável miséria a estes últimos momentos do primeiro volume,
que também inclui imagens de teor bíblico como uma baleia encalhada na praia
que explode num sonho do protagonista, que no seu sofrimento lembra um Jonas do
Portugal em crise.
Tal estrutura
episódica, como já mencionei em textos anteriores, traz o problema da
comparação entre episódios, sendo que alguns se vão revelando mais
bem-sucedidos que outros. Uma coisa interessante de se verificar na progressão
do filme e dos três contos, é a gradação do humor que começa por ser crasso e
inescapável nos políticos com ereções, passa por um absurdo melancólico com o
galo profético e acaba numa espécie de humor negro que me lembra as supostas
comédias do Novo Cinema Romeno na sua negrura e deprimência.
Do meu gosto pessoal,
provavelmente escolheria o segundo conto como o capítulo mais glorioso deste
volume. Há algo de fascinante no trabalho dos não-atores escolhidos para o
filme, no absurdo do galo, no ridículo dos desenvolvimentos do enredo, algo de
brilhante na sátira e algo de estranhamente triste e melancólico na história de
amor jovem e imaturo. Tudo isto acompanhado de uma torrente de ideias formais e
narrativas que por vezes parecem afogar a audiência. Uma aparição de um imperador
chinês parece condenar a terra à destruição futura, um jogo formal de mensagens
de telemóvel cria um jogo de traduções mal feitas que parece repetir-se pelos
outros contos noutros formatos, as imagens são ao mesmo tempo quase documentais
como cheias de pormenores estranhíssimos como um laço no protagonista animal ou
um acordeonista que vai dando acompanhamento musical a uma das figuras da
história.
É fácil começar a
estabelecer ligações com outros autores na história do cinema como Pasolini,
Kiarostami, Andersson, Buñuel etc., mas tal não me parece ser de grande
interesse ou relevância. Com este filme, Gomes cria um filme indubitavelmente
único na sua forma, abordagem e ambição inimaginável. Um filme metatextual,
satírico, intelectual, populista, mitológico e documental. Uma mistura
miraculosamente clara, mas densa, de ideias e histórias que fazem do filme como
que Os Lusíadas do cinema português
contemporâneo. Uma epopeia do povo português, só que aqui não são heróis
navegadores que se tornam mitos gloriosos, mas sim a miséria da condição social
e económica e a incompetência política que são tornados em histórias e lendas,
tão magníficas no seu olhar onírico como ridículas no seu humor e no triste
absurdo do panorama atual do nosso país.
Sem comentários:
Enviar um comentário