sábado, 19 de setembro de 2015

PRAIA DO FUTURO (2014) de Karim Ainouz



 Uma paisagem de dunas arenosas recheada de moinhos de vento é cortada por duas figuras masculinas em motas, uma mistura de ritmos e movimentos contido num só plano, enquanto música preenche a banda-sonora. Os dois homens acabam numa praia, correm para a água e num turbilhão de imersiva imagética, os dois acabam emaranhados nas ondas. Um dos homens morre e o outro salva-se, acabando a sequência inicial com um nadador salvador sozinho no meio das ondas, enquanto o corpo do homem que não conseguiu salvar se afunda e desaparece, perante o nosso olhar, nas indefinidas profundezas aquáticas. Assim começa o quinto filme de Karim Ainouz, e é um dos mais miraculosos inícios que tenho ultimamente visto, criando uma hipnótica mistura de som, imagem, movimento e angústia que mais nenhum no momento no filme consegue superar, tal é a magnificência destes momentos. Há que dizer, no entanto, que o resto de Praia do Futuro não é de menosprezar.

 O filme centra-se à volta desse mesmo nadador salvador brasileiro, Donato (Wagner Moura), que, após os acontecimentos da sequência que acima descrevi, acaba por começar um relacionamento com o sobrevivente, Konrad (Clemens Schick), um dos dois turistas alemães desses ditos acontecimentos. Apesar da sua família, especialmente o seu irmão mais novo, Ayrton (Savio Ygor Ramos e Jesuíta Barbosa), com quem parece ter uma relação próxima, Donato acaba por mudar-se para Berlim com Konrad. O filme está, aliás dividido em três capítulos, sendo que o primeiro, “O Abraço do Afogado”, foca-se na parte do filme no Brasil, o segundo, “Um Herói Partido ao Meio”, retrata a chegada a Berlim e a adaptação inicial, finalmente o último capítulo, “Um Fantasma Que Fala Alemão”, decorre vários anos depois do início do filme, mostrando a ida de Ayrton a Berlim e sua confrontação com o irmão que abandonou a família.

 Esta terceira parte do filme é a única em que eu sinto haver algum problema entre o balanço tonal e formal do filme. O filme é imensamente opaco e ambíguo na sua exposição de conflitos e psicologias internas das personagens, parecendo querer explorar uma imersão sensorial ao invés de um desenvolvimento narrativo. Isto não é particularmente problemático nos dois capítulos iniciais, mas no último capítulo, em que o conflito depende de um desenvolvimento na relação das personagens, a abordagem maioritariamente investida na formalidade do filme deixa este final um pouco vazio e superficial quando comparado com o resto do filme. É o capítulo em que o filme mais se afasta da simples apreciação de uma atmosfera e de visuais potentes, onde o triunfo do filme realmente se encontra.

 O elenco, nomeadamente o trio principal, são simplesmente fantásticos, encontrando a humanidade na abordagem opaca e estilisticamente esmagadora de Ainouz. Moura é um particular golpe de génio, pegando numa personagem que, apesar de todo o filme se focar à volta das suas escolhas, emoções e relações pessoais, é bastante subdesenvolvido e pouco explorado pelo olhar do realizador. O que poderia ser uma imagem distante, uma cifra, torna-se nas mãos de Moura, uma presença de infindável fascínio e carisma, uma figura melancólica que centra todo o filme.

 Mas, apesar de louvar o modo como Moura excede o exercício estético do filme e as limitações textuais, alguns dos meus favoritos momentos do filme centram-se em volta da fisicalidade e sensualidade masculina que o filme consegue conjurar em cenas como uma dança meio tola, meio intoxicante, entre Konrad e Donato, ou qualquer das cenas de conteúdo sexual, em que os corpos se tornam tão evocativos como paisagens e onde a carnalidade é íntima e quase palpável mesmo por entre a paradoxal distanciação fria da maioria do filme.
 Uma distanciação principalmente proporcionada pela precisa formalidade do filme. A montagem e a fotografia são especialmente magistrais, criando ligações implícitas entre imagens e criando um ambiente hipnótico e um ritmo preciso e lânguido.

 Certas imagens do capítulo inicial são particularmente extraordinárias, lembrando o trabalho de Claire Denis em Beau Travail. Mas, talvez, a mais eficaz junção de atmosfera e conteúdo, seja mesmo o início da secção do filme passada em Berlim, onde o foco na melancolia e solidão de Donato são magnificamente acompanhados e exteriorizados pela sonhadora visão de Berlim que Ainouz consegue conjurar. O contraste entre o frio e solitário ambiente de Berlim e a colorida, precisa e até visualmente agressiva imagem do Brasil, é de imenso impacto no filme, criando um imediato caso de linguagens visuais em conflito e incompreensão. Um mundo de uma dualidade formalística e inquebrável em que os elementos humanos vagueiam perdidos e sem rumo certo, num mundo visualmente fluido e de incompreensões formais.

 No final, apesar de algumas dúvidas pessoais em relação ao controlo de tom e conteúdo no capítulo final do filme, Ainouz consegue com este filme, alcançar uma obra de forma magistral, uma experiência estética do mais alto nível de espetáculo cinemático. É um filme que tem de ser experienciado, com a sua imersiva abordagem e melancólica carnalidade e sentido de constante perda e isolamento. Os temas que o filme insinua na sua narrativa, como noções de liberdade, que lembra o trabalho de Kieslowski na sua trilogia, de solidão, isolamento cultural, sexualidade e dever fraternal, nunca são particularmente desenvolvidos em texto, narrativa ou mesmo pelo elenco, mas são maravilhosamente transmitidos e explorados de forma quase abstrata na abordagem formal do realizador. Um filme de gloriosa forma, de sentimento profundo e esmagador apesar de distante, e sufocante na sua intoxicação sensorial avassaladora. Um filme de impressões fugazes cristalizadas por uma singular visão. Algumas das imagens do filme serão, eu julgo, difíceis de esquecer, empregando a mente do espetador com a sua beleza bruta e hipnotizante.


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