Uma paisagem de dunas
arenosas recheada de moinhos de vento é cortada por duas figuras masculinas em
motas, uma mistura de ritmos e movimentos contido num só plano, enquanto música
preenche a banda-sonora. Os dois homens acabam numa praia, correm para a água e
num turbilhão de imersiva imagética, os dois acabam emaranhados nas ondas. Um
dos homens morre e o outro salva-se, acabando a sequência inicial com um
nadador salvador sozinho no meio das ondas, enquanto o corpo do homem que não
conseguiu salvar se afunda e desaparece, perante o nosso olhar, nas indefinidas
profundezas aquáticas. Assim começa o quinto filme de Karim Ainouz, e é um dos
mais miraculosos inícios que tenho ultimamente visto, criando uma hipnótica
mistura de som, imagem, movimento e angústia que mais nenhum no momento no
filme consegue superar, tal é a magnificência destes momentos. Há que dizer, no
entanto, que o resto de Praia do Futuro
não é de menosprezar.
O filme centra-se à
volta desse mesmo nadador salvador brasileiro, Donato (Wagner Moura), que, após
os acontecimentos da sequência que acima descrevi, acaba por começar um
relacionamento com o sobrevivente, Konrad (Clemens Schick), um dos dois
turistas alemães desses ditos acontecimentos. Apesar da sua família,
especialmente o seu irmão mais novo, Ayrton (Savio Ygor Ramos e Jesuíta Barbosa),
com quem parece ter uma relação próxima, Donato acaba por mudar-se para Berlim
com Konrad. O filme está, aliás dividido em três capítulos, sendo que o
primeiro, “O Abraço do Afogado”, foca-se na parte do filme no Brasil, o
segundo, “Um Herói Partido ao Meio”, retrata a chegada a Berlim e a adaptação
inicial, finalmente o último capítulo, “Um Fantasma Que Fala Alemão”, decorre
vários anos depois do início do filme, mostrando a ida de Ayrton a Berlim e sua
confrontação com o irmão que abandonou a família.
Esta terceira parte
do filme é a única em que eu sinto haver algum problema entre o balanço tonal e
formal do filme. O filme é imensamente opaco e ambíguo na sua exposição de
conflitos e psicologias internas das personagens, parecendo querer explorar uma
imersão sensorial ao invés de um desenvolvimento narrativo. Isto não é
particularmente problemático nos dois capítulos iniciais, mas no último capítulo,
em que o conflito depende de um desenvolvimento na relação das personagens, a
abordagem maioritariamente investida na formalidade do filme deixa este final
um pouco vazio e superficial quando comparado com o resto do filme. É o capítulo
em que o filme mais se afasta da simples apreciação de uma atmosfera e de
visuais potentes, onde o triunfo do filme realmente se encontra.
O elenco,
nomeadamente o trio principal, são simplesmente fantásticos, encontrando a
humanidade na abordagem opaca e estilisticamente esmagadora de Ainouz. Moura é
um particular golpe de génio, pegando numa personagem que, apesar de todo o
filme se focar à volta das suas escolhas, emoções e relações pessoais, é
bastante subdesenvolvido e pouco explorado pelo olhar do realizador. O que
poderia ser uma imagem distante, uma cifra, torna-se nas mãos de Moura, uma
presença de infindável fascínio e carisma, uma figura melancólica que centra
todo o filme.
Mas, apesar de louvar
o modo como Moura excede o exercício estético do filme e as limitações
textuais, alguns dos meus favoritos momentos do filme centram-se em volta da
fisicalidade e sensualidade masculina que o filme consegue conjurar em cenas
como uma dança meio tola, meio intoxicante, entre Konrad e Donato, ou qualquer
das cenas de conteúdo sexual, em que os corpos se tornam tão evocativos como
paisagens e onde a carnalidade é íntima e quase palpável mesmo por entre a paradoxal
distanciação fria da maioria do filme.
Uma distanciação
principalmente proporcionada pela precisa formalidade do filme. A montagem e a
fotografia são especialmente magistrais, criando ligações implícitas entre
imagens e criando um ambiente hipnótico e um ritmo preciso e lânguido.
Certas imagens do
capítulo inicial são particularmente extraordinárias, lembrando o trabalho de
Claire Denis em Beau Travail. Mas,
talvez, a mais eficaz junção de atmosfera e conteúdo, seja mesmo o início da
secção do filme passada em Berlim, onde o foco na melancolia e solidão de
Donato são magnificamente acompanhados e exteriorizados pela sonhadora visão de
Berlim que Ainouz consegue conjurar. O contraste entre o frio e solitário
ambiente de Berlim e a colorida, precisa e até visualmente agressiva imagem do
Brasil, é de imenso impacto no filme, criando um imediato caso de linguagens
visuais em conflito e incompreensão. Um mundo de uma dualidade formalística e
inquebrável em que os elementos humanos vagueiam perdidos e sem rumo certo, num
mundo visualmente fluido e de incompreensões formais.
No final, apesar de
algumas dúvidas pessoais em relação ao controlo de tom e conteúdo no capítulo
final do filme, Ainouz consegue com este filme, alcançar uma obra de forma
magistral, uma experiência estética do mais alto nível de espetáculo
cinemático. É um filme que tem de ser experienciado, com a sua imersiva
abordagem e melancólica carnalidade e sentido de constante perda e isolamento.
Os temas que o filme insinua na sua narrativa, como noções de liberdade, que
lembra o trabalho de Kieslowski na sua trilogia, de solidão, isolamento
cultural, sexualidade e dever fraternal, nunca são particularmente desenvolvidos
em texto, narrativa ou mesmo pelo elenco, mas são maravilhosamente transmitidos
e explorados de forma quase abstrata na abordagem formal do realizador. Um
filme de gloriosa forma, de sentimento profundo e esmagador apesar de distante,
e sufocante na sua intoxicação sensorial avassaladora. Um filme de impressões
fugazes cristalizadas por uma singular visão. Algumas das imagens do filme
serão, eu julgo, difíceis de esquecer, empregando a mente do espetador com a
sua beleza bruta e hipnotizante.
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