No início do novo
filme de Woody Allen, o seu protagonista, um professor universitário de
Filosofia, ao apresentar-se aos seus alunos fala um pouco do que irão falar na
sua cadeira. Quando fala de filosofia, Abe (Joaquin Phoenix) refere-se ao seu
objeto de estudo como, essencialmente, masturbação verbal. Tal descrição é
bastante apta a grande parte da filmografia de Allen e é particularmente
perfeita para uma crítica de Irrational
Man. Com uma filmografia em constante crescimento, o realizador parece
ter-se estabilizado numa oscilante qualidade nos seus filmes, sendo que depois
de alguns fracassos parece sempre haver uma obra digna da fama do realizador.
Este filme, mais do que um sucesso, junta-se à companhia do seu último filme, Magic in the Moonlight, e parece existir
como uma ocasionalmente fascinante exposição de ideias do realizador em forma
de insistentes e longos diálogos, dentro de um filme com uma infinidade de
problemas estruturais, rítmicos e temáticos. Mas, enquanto via o filme, algo
não me saía da cabeça, estaria Allen, com tão descarada categorização de um dos
seus sujeitos favoritos, num modo de autorreflexão e até autocrítica? Não seria
inédito no seu trabalho, mas poucas vezes parece o realizador ter sido tão
direto.
O filme, como já
mencionei, tem como protagonista um professor de Filosofia, amargo, alcoólico,
em postura intelectual de superioridade inabalável, estranhamente carismático e
imensamente misantrópico e até niilista nas suas visões sobre a vida, em geral,
e sobre a sua própria existência em particular. Estabelecendo uma amizade
intensa e mais tarde um, incrivelmente previsível e óbvio, romance, temos Jill
(Emma Stone), uma das suas estudantes. O filme começa por ser estritamente
centrado à volta de Abe, do seu cansaço e desistência da sua vida,
engendrando-se à volta de filosofias simplificadas e vazias na sua
intelectualidade e franca presunção. Ao ter as suas personagens a discutir e
dissecar as filosofias umas das outras de modo quase sintomático, Allen
consegue alcançar um tipo de humor extremamente crítico e ridículo, em que
quase goza com o vazio e futilidade da sua postura intelectual e auto
romantização constante das suas condições.
Mas, o filme tem uma estrutura bastante bipartida, sendo que
o filme, a partir de um momento crucial num restaurante, passa a ser um
recontar existencialista e grotescamente humorístico de Crime e Castigo de Dostoyevsky, sendo tão óbvio ao ponto de
referenciar o autor inúmeras vezes ao longo do filme, inclusive esta obra, num
momento que é tão óbvio e flagrantemente descarado que é quase cómico. Allen
volta assim a uma estrutura imensamente semelhante a Match Point, mas temperado com uma boa dose de autocritica que a
passada obra não possuía. Também vários temas de Manhattan, Crimes and
Misdemeanors e uma infinidade de outros filmes regressa. O filme é uma
repetição inescapável no trabalho do realizador, pelo que a repetição constante
e insistente dentro do texto do próprio filme começa a tornar-se mais irritante
que fascinante. O filme chega mesmo a fazer uma referência ao trabalho do autor
na Europa nos últimos anos, o que junto às referências que o filme parece
querer gritar ao espetador no que diz respeito a nomes de autores e de
correntes filosóficas, faz do filme mais uma coleção de ideias soltas e nomes
sonantes que Allen aprecia do que um filme minimamente interessado em explorar
a relação entre tais referências.
Há uma falta de
elegância imensa no filme, apesar de ser uma das obras mais esteticamente
agradáveis que Allen produz em anos, e uma estrutura bastante reacionária e
desajeitada que deixa algumas das suas mais fascinantes ideias num estado de
vazio tão superficial e desinteressante quão as suas personagens. Personagens
estas que não poderiam ser mais típicas do autor, o que é simultaneamente algo
bom e característico do seu idioma de autor mas também um enorme cansaço para
quem já tenha visto grande parte da sua filmografia que já ultrapassa os 50
títulos. Mas, apesar destas críticas e de uma colossal falta de ritmo, que
quase lembra os horrores de Judd Apatow e o seu olhar vago e monótono, o filme
não deixa de ser uma experiência prazerosa para o espetador. Pelo menos foi-o
para mim.
Parte do que permitiu
tal reação pessoal foi o elenco, sendo que Phoenix foi uma inspirada escolha,
tornando o papel do substituto de Allen dentro do filme e tornando-o em algo
completamente diferente. Outros atores, como Owen Wilson, imitam o autor em
demasia quando postos no papel análogo a Allen, mas Phoenix injeta Abe com um
cansaço palpável e decadência arrogante que faz muito para separar este
professor de filosofia do nervoso nova-iorquino que tantas vezes se manifesta
nestes filmes do autor. Stone, com um papel, que na primeira parte do filme é
um cliché ambulante sem qualquer função a não ser mover o enredo e vomitar as
ideias que Allen quer discutir, consegue contornar as limitações do texto e
implicar uma inteligência inocente e imatura a Jill, sendo que o final bastante
convoluto do filme apenas funciona devido ao seu trabalho. Uma confrontação
entre Abe e Jill é particularmente brilhante no modo como Phoenix se vai
tornando cada vez mais apreensivo e consequentemente predatória e Stone se vai
expondo cada vez mais como uma inocente assustada não só com Abe mas com as
suas mesmas implicações. Uma visão do mundo estilhaçada num momento, e Stone é
fantástica ao mostrá-lo. E, finalmente, temos Parker Posey que torna uma
professora de Química com quem Abe estabelece uma relação, na mais precisamente
abrasiva e clara presença no filme. Enquanto Phoenix e Stone se ocupam a
desembrulhar o turbilhão de ideias em vácuo que Allen lhes atribui, Posey é uma
presença palpavelmente humana e cujo olhar espelha um sofrimento e solidão que
parecem troçar das crises existencialistas e egotistas do par no centro do
filme.
É invariavelmente
fascinante observar estas criaturas semelhantes a humanos, discutirem as ideias
do seu mestre de marionetas. A uma distância que Allen não concede facilmente,
insistindo em voz-off e uma proximidade permanente com as suas personagens, as
figuras são impossivelmente ridículas e turbilhões catastróficos de pretensão
intelectual. Em várias partes do filme, o diálogo de Allen aponta para este
mesmo vazio. As discussões destas personagens e sua retórica são impossíveis de
relacionar com qualquer realidade, as figuras de Allen parecem viver num
congresso académico onde os humanos foram substituídos por teses em forma
humanóide, tanto que o filme parece ciente disto e entrar num jogo de crítica e
julgamento com a sua própria abordagem. Allen parece querer julgar esta sua
postura e esta sua frivolidade intelectual, mas acaba por tentar fazê-lo usando
esse mesmo tipo de pensamento. O filme torna-se uma espécie de redundância
falaciosa, em que Allen, mais que um autor preciso e certo das suas intenções
parece mostrar uma confusão crescente com o que quer dizer, estando demasiado
apaixonado e preso ao seu usual registo, fixo desde os anos 70.
Mas, pelo meio desta
confusão, está algo de fascinante. Por muito repetitivas que as ideias de Allen
são, algumas delas não deixam de ser interessantes. Por muito que o seu uso de
referências pareça vazio e sem propósito, há algo de estimulante em começar a
pensar em Kant, Dostoyevsky, Harendt, entre outros enquanto se vê o filme e
tentar aplicar os seus pensamentos ao filme. Allen é um autor extremamente
popular nos dias de hoje, e grande parte disso devém do modo como os seus
filmes, por muito vazios que sejam, estimulam o pensamento e a discussão. Tenho
sérias duvidas em relação a este filme e, sinceramente, à relevância de Allen
no panorama do cinema contemporâneo, mas não posso negar que adorei ver o filme
e passar a sua duração a pensar em argumentos a utilizar em relação a este, a
pensar na retórica do filme e a desafiá-la silenciosamente, etc. Se Allen cai
nessa mesma masturbação verbal e intelectual na sua crítica, também eu faço o
mesmo erro e acabo por ser estimulado por isso. O filme, para quem está na
mesma frequência de pensamento que Allen, deverá ser uma experiência
extraordinária, mas para quem não se encontra aí, o filme revelar-se-á
provavelmente como uma entediante coleção de discussões entre pessoas
insuportáveis e sem grande ligação a qualquer versão de realidade humana.
Talvez aí, Allen se revele como um derradeiro elitista cinemático, mas o facto
é que a popularidade da sua obra o demonstra quase como um populista e tal como
os estúdios que criam as mais formidáveis obras populistas, Allen vai
reciclando as mesmas ideias e formulas ad
nauseum e assim vai inevitavelmente satisfazendo o seu público.
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