Como falar de Viaggio in Italia? Sobre o que é Viaggio in Italia, em primeiro lugar? A
uma superficial análise, o filme é um retrato de um casal em moribunda
desunião, ambos numa viagem, não só, por Itália, nomeadamente Nápoles, mas
também numa viagem cujo destino final parece ser a conclusão do seu matrimónio.
Mas, devido ao olhar irreparavelmente ligado ao realismo, que Rossellini
confere a variados momentos no filme, a obra parece estar mais preocupada com
Nápoles em si. Um filme sobre uma terra e uma cidade mais do que sobre um
casal. Mas, para além da materialidade da terra, há algo de espiritual no
filme, algo que parece existir em todos os filmes de Rossellini, e que supera a
visão imediata e limitada do neorrealismo italiano. Penso que, depois de
reflexão, mais do que tudo o resto, o filme se revela como um filme sobre
cinema. Como arte, como imagem, como movimento, como tempo, como vida. Devido a
isso também afirmaria que, apesar de uma receção bastante fria quando estreou e
de muitas opiniões contemporâneas ainda o apontarem como um filme menor de
Rossellini, este é um dos mais fulcrais e importantes filmes da História do
cinema. Se do final de Stromboli
nasceu, de forma violenta, um novo cinema, em Viaggio in Italia, esse cinema já cresceu, maturou, aprendeu a
andar e olhar, e vislumbra o passado, vira-lhe as costas e avança para o seu
futuro.
Como, disse, a um
inicial e superficial olhar, o filme trata de uma crise matrimonial entre um
casal inglês a viajar pela Itália contemporânea de Rossellini, Alex e Katherine
Joyce interpretados por George Sanders e Ingrid Bergman. O filme inicia-se,
aliás, de modo dissimuladamente simples. Vemos uma estrada enquanto por ela
avançamos, obviamente por meio de um automóvel, observamos uma paisagem em
movimento vista da janela de um carro e rapidamente cortamos para o interior da
viatura. Estamos num Bentley a viajar por Nápoles, como o diálogo expositivo
nos informa, e olhando para o casal, vestido em tweed inglês e um casaco que
rasga a imagem com o seu padrão de leopardo, logo nos apercebemos da separação
entre os protagonistas e o mundo que os rodeia. Eles vivem insularmente no seu
melodrama matrimonial, cujo início nos é negado pela estrutura do filme, e
existem numa realidade suaves contrastes, e harmoniosos movimentos e
composições cinematográficas, enquanto, à sua volta, a câmara, seguindo uma
gramática visual mais próxima do neorrealismo que do cinema romântico de
Hollywood, observa a vida dos camponeses italianos que também se movimentam
pela estrada.
Logo aqui o filme se
parece começar a mostrar como um estudo sobre si mesmo, cinema sobre cinema. O
cinema neorrealista da Itália pós-guerra em desarmonia com um cinema
classicista de herança americana, que ganhava crescente popularidade numa nação
em reconstrução. Mas, Rossellini não se limita a esta simples dicotomia, acrescentando
outros cinemas ao seu jogo de contrastes, como um cinema de melodrama
aristocrático que lembra os filmes requintados de uma Itália fascista do
passado, assim como, em momentos específicos, parece cair numa abstração de
movimento e som inéditos na sua filmografia e de uma beleza que transcende a
simples captura de uma realidade material em filme.
Para além de um
movimento quase fatalista do matrimónio em colapso, há pouca estruturação
classicamente dramática ou narrativa no desenvolver do filme, sendo que a sua estruturação
se revolve muito mais à volta da repetição. A repetição de um tipo de sequência
singular a este filme, em que primeiro acompanhamos Katherine dentro do seu
Bentley, a partir do seu olhar, observamos a Itália contemporânea, Aqui observamos
toda uma vida em momentos fugazes, mulheres grávidas e procissões fúnebres,
religião e política, o trabalho dos camponeses e o alarido urbano. De seguida
temos momentos em que vemos Bergman a observar algo do passado, algo cujo tempo
preservou apesar da sua implacável passagem. Primeiro temos uma galeria de
esculturas clássicas, depois as ruínas de Cumae, em terceiro lugar temos o
Vesúvio e sua dormente fúria natural e por último uma visita às catacumbas,
templos de morte e em que o tempo é uma presença esmagadora na sua ameaça. Há
uma outra visita deste género, mas a sua estrutura é diferente e seu impacto
demasiado singular para juntar a estas estrutura de repetição.
Das quatro
sequências, a primeira é a que me deixou maior impacto, se bem que talvez não
seja a mais temática e formalmente relevante. A câmara de Rossellini quase
entra num transe de gloriosos movimentos em volta das esculturas. Os movimentos
congelados no tempo pelas peças ganham momentânea vida na sensualidade do
luxuriante trabalho de câmara e luz. O olhar de Bergman também expressa um
movimento, o do observador que tal como nós observa o milagre do cinema nas
mãos de Rossellini. A música de Renzo Rossellini, o irmão do realizador,
catapulta a sequência para algo que chega ao lírico, ao espiritual Nos olhos
das esculturas parece emergir uma vitalidade quase sobrenatural, o que contrasta
com a seca voz do guia que acompanha Katherine pelo seu passeio. A passagem do
tempo congelada num momento de êxtase aqui tornado espetáculo luxuriante pelo
artista Rossellini.
Há algo
intrinsecamente ligado à morte e à mortalidade no modo como Rossellini filma
estes momentos, mas também, paradoxalmente, há quase uma tentativa de tornar
essa morte em vida, a partir do cinema. Os movimentos no primeiro passeio, a
voz off no segundo que torna as ruínas num lugar de espiritualismo místico,
criando uma vida invisível nas suas superfícies, o modo como a interação humana
com o vulcão resulta em movimento, como se da rocha emergisse uma presença
viva, e o mesmo acontece com os corpos nas catacumbas, tornados gritantes
ameaças sob o olhar amedrontado de Bergman. Mas não são só estas visitas que
existem no paradoxo da vida e morte em simultâneo. Os amigos que o casal
encontra no início do filme parecem emergir de uma era passada, sombras de uma
aristocracia que já não tem lugar na Itália contemporânea. O fantasma da guerra
assombra toda a realidade, por vezes sendo mencionada em breves momentos de
diálogo. O próprio tio de Alex, que viveu numa casa em Nápoles que o casal
tenta vender, é um fantasma trazido ao de cima pelo diálogo e pelos objetos que
deixou para trás. O seu nome, Homer, quase lembra Homero de novo trazendo a
lembrança do passado da História e sua materialidade e imaterialidade ao filme.
Mas mais do que História, vida ou morte, estas indagações, para mim, reduzem.se
ao tempo, tempo passado tornado presente pelo cinema, estaticidade tornada
movimento.
Há outro passeio no
filme, este feito pelo casal a Pompeia, onde ambos observam as escavações arqueológicas
que aí decorrem e veem a descoberta de dois corpos, preservados no momento da
sua morte pela fúria vulcânica que sobre eles se abateu. Um casal, um homem e
uma mulher. Aqui Bergman, pela primeira vez, parece completamente avassalada
pelo momento, pelo horror, pela carga simbólica e espiritual do momento, quase
que recordando Karin em Stromboli e a
sua reação à pesca do atum. Mas a que reage Bergman, Katherine, o próprio
filme? À morte? Ao tempo? Durante todo o filme, Rossellini observa o passado em
objetos congelados na passagem do tempo, em cadáveres e edifícios, aqui o
presente é confrontado com algo violento, com a preservação do momento exato em
que dois humanos perderam a vida e a sua mortalidade é exposta em relevo
assustador. A mortalidade da personagem, da atriz e do filme em si. Passados
quase 62 nos desde as filmagens destas imagens, o próprio filme se tornou
documento da morte, documento do tempo aqui congelado, tendo os seus atores há
muito falecido, assim como o seu realizador e a própria terra onde foi filmado
já não é a mesma. O que é o filme senão uma série de imagens estáticas que em
sucessão criam movimento e que nesse movimento contêm o tempo do passado
trazido, como que congelado, ao presente do espetador? Depois do filme olhar
esse passado de uma plataforma superior, como nós olhamos o passado do nosso
presente, de repente há uma confrontação com a sua própria condição no tempo.
Rossellini filma aqui a morte, mas não é só a morte humana, mas também a morte
do cinema. O golpe desferido em Stromboli,
de onde um novo cinema nasceu, um cinema moderno e quase modernista, aqui acaba
por matar o cinema passado, enquanto o novo cinema que dele nasceu o observa
aterrorizado com o que vê, mas avançando implacavelmente no tempo.
Isto nunca se torna
mais explícito que nos momentos finais do filme, em que todas as preocupações
do filme parecem culminar numa fulgurante conclusão. Mas antes de falar desse
final e terminar também este raciocínio há que mencionar um pouco mais sobre o
filme, nomeadamente sobre a sua estrutura e seus atores.
Em termos de
estrutura narrativa o filme imensamente vago e errático sem grande direção
percetível, cheio de momentos mortos e um desenvolvimento da narrativa
matrimonial que deixa muito a desejar se julgarmos o filme pelos mesmos
critérios que aplicaríamos a um drama de Joseph L. Mankiewicz. Há uma porção do
filme simplesmente focada na procura por uma garrafa de água mineral, algo
estranhamente inconsequente e superficialmente desnecessário, como se ao atribuir
um tempo tão vasto a pormenores sem relevância, Rossellini estivesse a rasgar o
tecido da narrativa principal, ou pressuposta como principal. Tal estrutura, ou
aparente falta da mesma, conjugada com um método errático, dependente de
impulsos do momento e improvisações, deixou ambos os atores, estrelas de
Hollywood, perdidos nas mãos do realizador. Bergman, aqui já acostumada aos
devaneios do seu então marido, julgou este e os seus restantes filmes como
nobres fracassos e George Sanders várias vezes proclamou quão estranho e sem
propósito o filme e o seu processo teriam sido. Essa confusão dos atores
perdidos é aproveitada por Rossellini do mesmo modo que em Stromboli, a estranheza de Bergman é fulcral para o filme. Aqui
ambos estão envoltos num melodrama matrimonial que é confrontado com outro
cinema, ambos são artefactos clássicos em completo ataque das ideias do autor
em evolução, e a sua condição de atores perdidos é exacerbada pelo modo como o
realizador os filma. Para Rossellini os atores eram inseparáveis das
personagens, sendo que o que vemos no filme está mais próximo de uma narrativa
sobre Sanders e Bergman do que sobre Alex e Katherine. Em ambos os casos, por
exemplo, verificam-se crises matrimoniais, Bergman e Rossellini e Sanders com a
sua então esposa Zsa Zsa Gabor, e tanto nos atores como nas personagens há algo
de confrontacional e agressivo no modo como ambos os pares viajam por Itália,
num mundo estranho e a eles alienante, e onde são confrontados, de certo modo,
com a brevidade inevitável da sua existência e relevância.
O filme não é de fácil
consumo e tem provocado insatisfação, como podemos verificar pelos atores,
desde a sua construção, mas, para mim, é das mais gloriosas obras desta arte de
que aqui falo. E no seu final, como seria de esperar num filme deste autor,
todas estes fios de pensamento se juntam num triunfo cinemático em forma de
conclusão. O final é, na verdade, uma multiplicidade de conclusões, sendo que,
a mais visível é, certamente, a da narrativa matrimonial, o aspeto mais
classicista do filme. O casal, depois da crise despoletada pelas esculturas em
Pompeia, encontra-se prestes a aceitar a sua separação quando são forçados a
parar o carro, num momento que reflete o próprio início do filme. Aqui são
parados, de novo, pela pressuposta realidade italiana, uma procissão religiosa
que enche a estrada. Desta massa de gente, deste evento religioso, um milagre
narrativo parece ocorrer e, abruptamente, ao casal é concedido um final de
Hollywood. A multidão e seu fervor espiritual parecem produzir o milagre do
final feliz, do final populista. Mas, em contraste com este fim, Rossellini não
termina o filme nos seus dois aparentes protagonistas. Pelo contrário, a câmara
afasta-se dos dois ingleses, de costas para nós, e acaba por filmar o avançar
da multidão. O movimento da população, observado não com a tentativa de
realismo do neorrealismo nem com o polido brilho do melodrama, mas com um
lirismo e simplicidade que convertem as pessoas em puro e rarefeito movimento
filmado, congelado no tempo pela câmara em si. As estrelas de Hollywood tiveram
o seu final de Hollywood, mas o cinema de Rossellini vira-lhes as costas e
avança, impiedoso, imparável para a frente, para um futuro. O cinema do autor
celebrado pelo neorrealismo afasta-se do neorrealismo, mantendo algo da sua
observação, toca em Hollywood e nos clássicos e deles retira algo de imaterial,
algo de poético e transcendentemente romântico, depois de formado algo novo, a
morte tem de existir, a morte do velho para o nascimento do novo. A morte está
no passado, mas a carcaça persiste como os corpos de Pompeia, este novo cinema
olha para o passado, aterrorizado foge, o realismo não é a resposta, mas no
romantismo idealizado também não está. Com o passado, o clássico, o obsoleto
pelas costas, o cinema avança para o futuro, para o que será a Nouvelle Vague e
o cinema de Antonioni, para o que é o cinema moderno, e esse avanço está aqui
congelado no tempo, o seu movimento e existência preservados na obra genial e
avassaladora que é Viaggio in Italia
do mestre Roberto Rossellini.
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