Quando ouvi falar deste projeto, antes
sequer da sua estreia em Berlim no início deste ano, foi-me impossível conter a
antecipação e expetativas. Sergei Eisenstein visto por Peter Greenaway. Um dos
mais importantes autores na história da evolução do cinema celebrado por um dos
mais provocadores autores da contemporaneidade. Greenaway é, pelo menos para
mim, um realizador de difícil afeição, com as suas teorias e argumentos sobre a
morte do cinema e suas contradições constantes sobre o fim da arte e início do
cinema apenas agora, uma estética que desafia os limites do meio e o combina
com outras artes em misturas exuberantes mas friamente precisas. Mas, apesar de
entrevistas e conferências de imprensa que o realizador britânico fez, não é
uma das suas mais usuais experimentações de precisão, frieza, e formalismo
quase matemático que observamos, mas sim a que é talvez a sua mais indisciplinada
e jovial experiência cinematográfica.
O filme ocupa-se de
recontar, sob o característico olhar de Greenaway, os dez dias que Sergei
Eisenstein (Elmer Bäck) passou na cidade mexicana de Guajanuato, aquando da sua
expedição a esse país quando tentava filmar a sua obra Que Viva Mexico!, que resultou numa montanha de material filmado à
qual o realizador nunca teve acesso. Este foi um ponto de viragem na vida
profissional e artística do realizador, marcando uma queda de graça que
deixaria marcas no resto da sua vida, assim como um ponto de viragem nos seus
filmes que, depois desta experiência falhada, se transmutaram em biografias
maravilhosamente excessivas de figuras individuais na História russa ao invés
das experiências de montagem e fulgor popular que caracterizaram o início da
sua obra. Esse ponto de viragem é aqui apresentado, a partir de fontes
históricas, como a perda de virgindade do mestre soviético e sua relação com Palomino
Cañedo (Luis Alberti), aqui um guia mexicano na visita à cidade. Sob o peso do
legado da montagem soviética, Greenaway decide explodir em exuberante jogo
neste filme, seguindo o seu retrato louco do soviético, também o filme é louco
na montagem, emergindo como uma tempestade de constantes flashes de imagens
históricas, ecrãs tripartidos que lembram Abel Gance, manipulação digital da
imagem e das transições, uma demência estilística que é tão espectável da parte
de Greenaway como é surpreendentemente indisciplinada.
E essa indisciplina estilística, que parece
contrariar a precisão de obras passadas, estende-se também ao texto que está
curiosamente pejado de erros históricos e momentos de pura irracionalidade no
que diz respeito à própria lógica interna do filme e suas figuras. Tendo em
conta que os filmes de Greenaway emergem de pesquisas e estudos cuidados, e que
neste filme parte do diálogo é precisamente adaptado de passagens escritas pelo
próprio Eisenstein, há que presumir que estas pressupostas falhas foram
intencionais da parte do realizador. Greenaway é assumidamente fascinado por
Eisenstein, e aqui essa fascinação, apesar de estar contida na sua usual
teatralidade cinemática, parece explodir na emoção na medida que outros filmes
de Greenaway explodiam em literatura e exatidão. Uma viragem de indisciplinada
emoção e humanidade grotesca na vida de Eisenstein parecem transpirar para a
própria estrutura do filme de Greenaway, onde a emoção excessiva se sobrepõe à
lógica, à História, à própria linguagem do cinema.
E essa emoção nunca
atinge maior veículo que nas cenas de sexo que o realizador aqui filma com uma
maior dose de humor, empatia e até erotismo que no resto da sua filmografia. Os
corpos, longe de serem objetos estéticos em manipulação pitoresca, são aqui
humanos pulsantes em confronto físico, em espetáculo de emoção e sedução, em
euforia. Esta é uma temática típica de Greenaway, mas aqui é mais solta e leve
que em obras passadas, ainda se encontrando detalhes e aspetos que demarcam,
mesmo estes momentos de libertinagem deliciosa, como partes intrínsecas da
filmografia de Greenaway. Estruturalmente, a grande cena de sexo está no meio
exato do filme, reforçando a estrutura quase espelhada evidenciada pelo início
do filme e seu semelhante final. Mas esta precisão matemática e teatralidade
parecem-me um pouco depuradas neste filme, talvez pelo abundante uso de
exteriores cuja filmagem não se parece tão precisa ou influenciada pela pintura
como passados filmes, ou pela falta de rigidez. Nesta celebração Greenaway
parece afastar-se da pintura, que é tão necessária para a sua oeuvre, e torna como arte de principal
reflexão estética neste filme, o próprio cinema em si, obtendo algo de
jubilante e cheio de vitalidade numa filmografia onde tais palavras são
usualmente usadas apenas como exemplos do que não existe.
Também a comédia é
uma constante na obra de Greenaway, mas raramente foi tão abjetamente explorada
e usada como aqui. A violência grotesca que torna a comédia típica de Greenaway
em cortantes exemplos de comédia negra, aqui está maioritariamente ausente.
Eisenstein é uma caricatura maravilhosa e mesmo nos mais trágicos momentos há
uma leveza quase jocosa ao seu sofrimento que impedem o filme de cair com o
peso de sua seriedade. Eisenetsin in
Guanajuato está longe de ser a elegia historicamente focada e friamente
teatral que eu esperava, sendo ao invés disso um jogo de exuberância, emoções e
uma celebração profana e levemente perversa do seu sujeito. O filme é um apto
seguimento de Nightwatching e Goltzius and the Pelican Company, mas
infinitamente mais leve e jubilante que essas duas obras passadas.
Apesar de tudo isto
que até agora afirmei, esta obra não é algo grandemente atípico ou pouco
característico da oeuvre de
Greenaway, sendo que, em termos de registo dos atores, exuberância teatral e
anti naturalista da sua cenografia, uso tresloucado de grandes angulares e
backgrounds digitais, e outros componentes do design, o filme é
inquestionavelmente um produto da mente criativa de Greenaway. E tal não se
manifesta apenas na estética e forma, mas também na temática e filosofia
inerentes ao filme, para bem e mal da obra final.
Sexo e morte, e sua
inseparável relação, são constantes na obra de Peter Greenaway, sendo que este
filme em particular se assume como mais uma exploração destes mesmos temas. A
estruturação e depuração da figura de Eisenstein, numa criatura de ebuliente emoção,
torna o filme numa espiral de repetições cansativas das mesmas ideias que se
verificam nos últimos trinta anos da obra de Greenaway. Há um nível didático a
esta insistência, que apenas parece mostrar uma estagnação na ideologia do
autor, cujo estilo e técnica estão em constante evolução, mas cujas ideias
estruturantes dos seus filme parecem tão congelados e moribundas como ele acusa
o cinema de estar enquanto arte.
Independentemente deste
crónico estado de repetição que parece trair as próprias teorias pessoais do
autor, há algo de fascinante nesta sua mais recente obra. Eisenetsin in Guajnajuato consegue, ao mesmo tempo, revelar-se como
uma obra um tanto ou quanto menor, como uma obra essencial na evolução do autor
britânico, cujas indagações filosóficas ficam, para mim, sempre muito longe do génio
da sua experimentação formal. Um espetáculo de celebração do próprio cinema,
aqui sob a autoria de uma das mais auto curadas e auto promovidas figuras do
circuito artístico contemporâneo. O filme, para quem se deixar levar pelas suas
excentricidades e experiências de tresloucada inspiração, é um espetáculo
exuberante e fascinante, uma indisciplinada e deselegante obra longe da perfeição ou mesmo
exatidão formal, mas inegavelmente cativante e digna de atenção.
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