domingo, 27 de setembro de 2015

EISENSTEIN IN GUANAJUATO (2015) de Peter Greenaway



 Quando ouvi falar deste projeto, antes sequer da sua estreia em Berlim no início deste ano, foi-me impossível conter a antecipação e expetativas. Sergei Eisenstein visto por Peter Greenaway. Um dos mais importantes autores na história da evolução do cinema celebrado por um dos mais provocadores autores da contemporaneidade. Greenaway é, pelo menos para mim, um realizador de difícil afeição, com as suas teorias e argumentos sobre a morte do cinema e suas contradições constantes sobre o fim da arte e início do cinema apenas agora, uma estética que desafia os limites do meio e o combina com outras artes em misturas exuberantes mas friamente precisas. Mas, apesar de entrevistas e conferências de imprensa que o realizador britânico fez, não é uma das suas mais usuais experimentações de precisão, frieza, e formalismo quase matemático que observamos, mas sim a que é talvez a sua mais indisciplinada e jovial experiência cinematográfica.

 O filme ocupa-se de recontar, sob o característico olhar de Greenaway, os dez dias que Sergei Eisenstein (Elmer Bäck) passou na cidade mexicana de Guajanuato, aquando da sua expedição a esse país quando tentava filmar a sua obra Que Viva Mexico!, que resultou numa montanha de material filmado à qual o realizador nunca teve acesso. Este foi um ponto de viragem na vida profissional e artística do realizador, marcando uma queda de graça que deixaria marcas no resto da sua vida, assim como um ponto de viragem nos seus filmes que, depois desta experiência falhada, se transmutaram em biografias maravilhosamente excessivas de figuras individuais na História russa ao invés das experiências de montagem e fulgor popular que caracterizaram o início da sua obra. Esse ponto de viragem é aqui apresentado, a partir de fontes históricas, como a perda de virgindade do mestre soviético e sua relação com Palomino Cañedo (Luis Alberti), aqui um guia mexicano na visita à cidade. Sob o peso do legado da montagem soviética, Greenaway decide explodir em exuberante jogo neste filme, seguindo o seu retrato louco do soviético, também o filme é louco na montagem, emergindo como uma tempestade de constantes flashes de imagens históricas, ecrãs tripartidos que lembram Abel Gance, manipulação digital da imagem e das transições, uma demência estilística que é tão espectável da parte de Greenaway como é surpreendentemente indisciplinada.

   E essa indisciplina estilística, que parece contrariar a precisão de obras passadas, estende-se também ao texto que está curiosamente pejado de erros históricos e momentos de pura irracionalidade no que diz respeito à própria lógica interna do filme e suas figuras. Tendo em conta que os filmes de Greenaway emergem de pesquisas e estudos cuidados, e que neste filme parte do diálogo é precisamente adaptado de passagens escritas pelo próprio Eisenstein, há que presumir que estas pressupostas falhas foram intencionais da parte do realizador. Greenaway é assumidamente fascinado por Eisenstein, e aqui essa fascinação, apesar de estar contida na sua usual teatralidade cinemática, parece explodir na emoção na medida que outros filmes de Greenaway explodiam em literatura e exatidão. Uma viragem de indisciplinada emoção e humanidade grotesca na vida de Eisenstein parecem transpirar para a própria estrutura do filme de Greenaway, onde a emoção excessiva se sobrepõe à lógica, à História, à própria linguagem do cinema.

 E essa emoção nunca atinge maior veículo que nas cenas de sexo que o realizador aqui filma com uma maior dose de humor, empatia e até erotismo que no resto da sua filmografia. Os corpos, longe de serem objetos estéticos em manipulação pitoresca, são aqui humanos pulsantes em confronto físico, em espetáculo de emoção e sedução, em euforia. Esta é uma temática típica de Greenaway, mas aqui é mais solta e leve que em obras passadas, ainda se encontrando detalhes e aspetos que demarcam, mesmo estes momentos de libertinagem deliciosa, como partes intrínsecas da filmografia de Greenaway. Estruturalmente, a grande cena de sexo está no meio exato do filme, reforçando a estrutura quase espelhada evidenciada pelo início do filme e seu semelhante final. Mas esta precisão matemática e teatralidade parecem-me um pouco depuradas neste filme, talvez pelo abundante uso de exteriores cuja filmagem não se parece tão precisa ou influenciada pela pintura como passados filmes, ou pela falta de rigidez. Nesta celebração Greenaway parece afastar-se da pintura, que é tão necessária para a sua oeuvre, e torna como arte de principal reflexão estética neste filme, o próprio cinema em si, obtendo algo de jubilante e cheio de vitalidade numa filmografia onde tais palavras são usualmente usadas apenas como exemplos do que não existe.

 Também a comédia é uma constante na obra de Greenaway, mas raramente foi tão abjetamente explorada e usada como aqui. A violência grotesca que torna a comédia típica de Greenaway em cortantes exemplos de comédia negra, aqui está maioritariamente ausente. Eisenstein é uma caricatura maravilhosa e mesmo nos mais trágicos momentos há uma leveza quase jocosa ao seu sofrimento que impedem o filme de cair com o peso de sua seriedade. Eisenetsin in Guanajuato está longe de ser a elegia historicamente focada e friamente teatral que eu esperava, sendo ao invés disso um jogo de exuberância, emoções e uma celebração profana e levemente perversa do seu sujeito. O filme é um apto seguimento de Nightwatching e Goltzius and the Pelican Company, mas infinitamente mais leve e jubilante que essas duas obras passadas.

 Apesar de tudo isto que até agora afirmei, esta obra não é algo grandemente atípico ou pouco característico da oeuvre de Greenaway, sendo que, em termos de registo dos atores, exuberância teatral e anti naturalista da sua cenografia, uso tresloucado de grandes angulares e backgrounds digitais, e outros componentes do design, o filme é inquestionavelmente um produto da mente criativa de Greenaway. E tal não se manifesta apenas na estética e forma, mas também na temática e filosofia inerentes ao filme, para bem e mal da obra final.

 Sexo e morte, e sua inseparável relação, são constantes na obra de Peter Greenaway, sendo que este filme em particular se assume como mais uma exploração destes mesmos temas. A estruturação e depuração da figura de Eisenstein, numa criatura de ebuliente emoção, torna o filme numa espiral de repetições cansativas das mesmas ideias que se verificam nos últimos trinta anos da obra de Greenaway. Há um nível didático a esta insistência, que apenas parece mostrar uma estagnação na ideologia do autor, cujo estilo e técnica estão em constante evolução, mas cujas ideias estruturantes dos seus filme parecem tão congelados e moribundas como ele acusa o cinema de estar enquanto arte.

 Independentemente deste crónico estado de repetição que parece trair as próprias teorias pessoais do autor, há algo de fascinante nesta sua mais recente obra. Eisenetsin in Guajnajuato consegue, ao mesmo tempo, revelar-se como uma obra um tanto ou quanto menor, como uma obra essencial na evolução do autor britânico, cujas indagações filosóficas ficam, para mim, sempre muito longe do génio da sua experimentação formal. Um espetáculo de celebração do próprio cinema, aqui sob a autoria de uma das mais auto curadas e auto promovidas figuras do circuito artístico contemporâneo. O filme, para quem se deixar levar pelas suas excentricidades e experiências de tresloucada inspiração, é um espetáculo exuberante e fascinante, uma indisciplinada e deselegante obra longe da perfeição ou mesmo exatidão formal, mas inegavelmente cativante e digna de atenção.


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