Em 1948, no pico da
sua fama e reconhecimento crítico em Hollywood, Ingrid Bergman, a atriz sueca
tornada estrela pela indústria cinematográfica americana, enviou uma carta a
Roberto Rossellini, expressando a sua admiração pelo seu trabalho e a sua
disponibilidade e desejo de com ele trabalhar. Rossellini também estava no
píncaro da sua carreira artística, sendo internacionalmente reconhecido pelos
seus filmes neorrealistas. Hoje em dia, ambos são lendas da história do cinema,
duas criaturas míticas que em seis filmes colaboraram, para além de
estabelecerem o que foi na altura uma escandalosa ligação romântica. Bergman
seria temporariamente ostracizada por uma Hollywood moralista que não via com bons
olhos o romance adúltero, e as colaborações entre a atriz e o realizador, fariam
com que muitos renunciassem a Rossellini pelo modo como este se afastava do
Neorrealismo nos filmes que fez com Bergman. Apesar de oposições e críticas,
este casal e o seu trabalho são marcos incontornáveis na história desta arte,
sendo que os seus filmes revelam-se, talvez, como os mais importantes e
corajosos trabalhos que ambos alguma vez iriam criar nas suas carreiras.
Stromboli foi a sua primeira colaboração, e o filme em que durante
as filmagens, a relação amorosa entre os dois terá tido início. Foi também o
único dos seis filmes a ter uma produtora americana, a RKO, sendo que o
escândalo, que levou à ostracização da atriz, faria com que os estúdios se
afastassem da estrela sueca e do realizador italiano, cujos seguintes filme seriam
produções exclusivamente europeias. De certo modo, é o mais experimental e explorador
filme da sua colaboração, sendo por consequência, talvez, o mais inconsistente
e problemático da sua oeuvre
conjunta. E, devido a tais problemas, o mais fascinante e interessante dos
seis.
Bergman interpreta Karin,
uma mulher de origem lituana que durante a 2ª Guerra Mundial fugiu para a
Checoslováquia, acabando por ter de novo fugido e acabado num campo de
refugiados, de pessoas sem lugar, na Itália do pós-guerra. É aí que a
encontramos, presa por vedações de arame farpado e com o seu pedido de
emigração para a Argentina a lhe ser recusado. Como modo de sair do seu
internamento no campo, Karin seduz e casa-se com um dos seus guardas, um
pescador italiano, Antonio (Mario Vitale), que a leva para sua casa na ilha de
Stromboli. A ilha tem um vulcão no seu centro e seu desenvolvimento é mínimo,
existindo num primitivismo antigo que nada tem a ver com os ambientes urbanos
dos filmes passados de Rossellini. Nessa ilha e nesse matrimónio, Karin
encontra outra prisão, cheia de moralismos católicos e hostilidade, sendo que,
insatisfeita e combativa, a protagonista vai flirtando com os homens da ilha,
exige ao marido mais dinheiro e comodidades e, num final ato de desespero,
decide fugir da ilha e do seu casamento, terminando o filme a tentar atravessar
a ilha depois de uma erupção vulcânica.
O filme marca uma
evolução drástica na filmografia de Rossellini que, até este filme, estava
firmemente preso ao neorrealismo italiano, sendo que com este filme, mais do
que uma obra neorrealista, Rossellini criou um melodrama centrado à volta de
uma estrela de Hollywood. Mais do que uma mudança formal ou estética, o filme
mostrou uma mudança em sujeito e conceito, passando o cinema do autor de uma
exploração da Itália e Europa pós-guerra a um estudo sobre a presença de
Bergman. Em L’Amore, Anna Magnani era
certamente central, mas eram as suas personagens que observávamos e nelas uma
coletividade de uma Itália contemporânea. Em Stromboli nenhuma dessa coletividade existe em Karin. Eu diria
mesmo que o centro do filme não é, de todo, Karin, mas sim Bergman, a estrela,
a presença, a atriz estrangeira.
O uso de estrelas de
cinema por autores é algo que acho inerentemente fascinante, e Rosselini
utiliza a persona de Bergman de modo extraordinário. Karin é lituana, com um
nome escandinavo e encontra-se em Itália sem saber falar italiano, Ingrid
Bergman é uma atriz sueca, estrela de Hollywood, e aqui apresentada em Itália,
sem saber falar italiano, sendo o seu diálogo todo em inglês (excetuando na
versão completamente dobrada em italiano). Nem Bergman, nem Karin pertencem ao
ambiente onde estão e é dessa estranheza que o conflito do filme emerge, sendo
que Karin é uma pessoa sem lugar, tal como todos os refugiados no princípio do
filme, e, neste momento da história do cinema, também Bergman se apresentava
sem lugar. O filme e o romance que teve com o realizador despoletaram o
escândalo em Hollywood, sendo que a atriz só viria de novo a ser aceite nesse
mundo de doirados estúdios e estrelas quando em 1956 fez Anastasia e ganhou o Oscar de Melhor Atriz. É a volta da sua
presença majestosa e inteiramente distinta dos não atores que preenchem o resto
do filme que Rossellini encontra muita da fricção que faz o filme crescer em
fúria reprimida, culminando na explosão literal e metafórica do final do filme.
Quando filma algo que
não Bergman, o realizador parece ter na mente o seu neorrealismo tão característico,
filmando os pescadores no seu trabalho e a erupção vulcânica que resulta na
evacuação da ilha com uma observação removida e ao mesmo tempo dramaticamente
realista que lembra os seus anteriores trabalhos. Mas, mesmo esses momentos
estão contagiados pela presença luminosa da estrangeira luminosa, tornando, a
partir da sua observação, as cenas que descrevo em momentos de um lirismo
absoluto mesclado com uma imagética realista. A cena de pesca é particularmente
apaixonante, indo de uma observação passiva da serenidade relativa do trabalho
físico, a uma revulsa palpável à violência caótica da matança dos enormes peixes.
O olhar de Karin contamina a fórmula neorrealista e daí algo novo emerge, um
desenvolvimento fascinante do estilo, uma rutura pela progressão, um avanço
para o cinema moderno. As imagens de Rossellini, apesar de semelhantes às de
Visconti em La Terra Trema, têm em
falta a observação afastada mas precisa que tornou as visões de Visconti em
mitos contemporâneos da realidade italiana, ao invés tornando a comunidade
piscatória numa opressiva atmosfera, numa prisão, para a sua protagonista neste
melodrama realista,
O filme, apesar de
tais visões espetaculares, é marcado por uma estrutura bastante repetitiva,
tanto estrutural como tematicamente, dando a impressão que, no meio do filme,
se encontra uma curta-metragem de absoluta perfeição avassaladora. Mas isso,
por outro lado, removeria o impacto do final, dependente, em grande parte, do
lento crescendo de angústia que Rosselini vai tecendo. Uma angústia de Karin, de
Bergman e dos espetadores à medida que vai sendo exposto a uma série de
moralidades e julgamentos católicos do autor sobre as suas personagens, não
sendo o seu olhar reprovador e dissecante apenas virado para a figura caprichosa
e desesperada de Karin. O moralismo católico de Rossellini chega a mesmo a ser
algo opressivo e difícil de aguentar enquanto audiência, mas, para quem esteja
disposto a caminhar este caminho particular do autor italiano, o final do filme
tem em si um milagre cinemático.
A protagonista passa
todo o filme em busca da sua liberdade, nunca a encontrando. Nos momentos
finais, caminha, em fuga, pela rochosa ilha vulcânica, passando pelo seu cume,
em busca dessa tão inalcançável liberdade. Bergman estava grávida de Rosselini
quando estas cenas foram filmadas, sendo que Karin também é feita grávida pelo
autor, reforçando a unidade que as duas presenças são, a atriz e a figura do
filme. A paisagem, mais do que uma extensão violenta da emoção da protagonista,
parece uma manifestação divina de uma fúria superior. Fúria dirigida ao mundo,
talvez. Em sofrimento e exaustão a protagonista cai e suplica a Deus que a
ajude, depois de um filme em que a religião parecia bastante longe da sua
mente. Os seus súplicos tornam-se gritos e a câmara corta de um desconfortável
plano da sofredora Bergman para o céu em que pássaros voam, enquanto Bergman
suplica e declara a glória de Deus. Se Bergman e Karin foram uma única e
estranha presença em todo o filme, aqui elas tornam-se coletivas, simbólicas,
metafóricas. A busca de liberdade filmada entre a fúria suprema da Natureza é
tornada batalha espiritual e a estrela tantas vezes julgada pelo realizador que
a olha, mesmo assim, com visível encanto, torna-se figura sofredora e
suplicante. Mas quem suplica nestes momentos finais? Karin? Ingrid Bergman?
Roberto Rossellini? A estrela de Holywood? O mais celebrado autor neorrealista?
O neorrealismo em si, vendo-se obsoleto e esgotado? O melodrama superficial? Os
amantes pecaminosos e em busca de perdão? O cinema em si? Quem sabe. Cada
espetador, talvez. Mas na absoluta incerteza reina o génio destes momentos,
chocantes e violentos queimam o cinema de Rossellini e abrem alas para uma nova
fase do seu desenvolvimento e do resto do cinema mundial.
Os seus seguintes
filmes explorariam mais firme e controladamente esta passagem do neorrealismo a
algo novo, algo moderno e fértil de possibilidades. O seu catolicismo será mais
comedido e menos fulgurantemente agressivo que aqui. E Bergman será mais humana
e menos incandescente presença superior. E talvez por tudo isso, este seja,
simultaneamente, a sua mais indisciplinada e imperfeita criação assim como a
sua mais gloriosa e impactante. Como um vulcão cinemático que rebenta com um
universo de novas possibilidades, Stromboli
rompeu o dogma tanto de Hollywood como da vanguarda neorrealista, rompeu o
cinema de maneira simples mas emocionalmente esmagadora. No final deste filme,
por entre o espiritualismo e religiosidade cortante, temos algo de majestoso, o
cinema em crescimento, em inovação, em nascimento e morte simultânea.
Sem comentários:
Enviar um comentário