Há um tipo de filme
que se costuma chamar “estudo de personagem” pelo qual eu, normalmente, tenho
pouca afeição. Filmes de registos que almejam o naturalismo e se reduzem a
peças de observação em que a audiência é convidada a se maravilhar sobre o trabalho
do elenco, sendo que o trabalho de ator e, ocasionalmente, o texto são o centro
de todo o edifício do filme. É um tipo de cinema muito presente na produção
independente americana, cuja crónica falta de ambição e banalidade quase anti
criativa me provocam muito mais repulsa que admiração, especialmente na passada
década. Mas, por vezes, desse cinema aparece uma obra que surpreende pela sua
perspicácia, e em que uma falta de ambição formal não denuncia uma falta de
atenção para com este aspeto, e em que a intimidade alcançada com a mera
observação consegue ser de uma perspicácia cortante e nos deixa a nós, a
audiência, como que hipnotizados pelas vidas que vemos se desenrolarem defronte
dos nossos olhos. Georgia de Ulu
Grosbard é, para mim pelo menos, um desses filmes, um triunfo de observação
intima e dissecação pessoal, e um dos mais fascinantes estudos familiares que
se podem encontrar no cinema americano das ultimas décadas, o que, se
considerarmos a vastidão de possibilidades, é algo de irrepreensível valor e
relevância.
O filme tem como sua
principal preocupação a relação entre duas irmãs, Sadie (Jennifer Jason Leigh)
e Georgia Flood (Mare Winningham). Sadie é uma toxicodependente e provavelmente
também uma alcoólica que sonha em ser uma estrela musical como a sua irmã mais
velha, que nos aparece como uma estrela de folk logo no início do filme com uma
fama considerável. Enquanto Sadie é uma constante espiral de caos e
autodestruição, Georgia é serena, doméstica e quase desinteressada na sua própria
fama. O filme em si, tem início depois de mais uma das crises pessoais de Sadie
quando ela toma refúgio na casa da irmã, sendo que, daí para a frente, o que
observamos é mais um ciclo na vida das duas, em que Sadie faz escolhas
duvidosas e erráticas, acaba por se casar com um ingénuo e inocente homem, Axel
(Max Perlich), e acaba mesmo numa cama de hospital a ser cuidada pela sua irmã.
O filme é quase um estudo de relações familiares em que a dependência e o
afastamento são as palavras de ordem. É um retrato surpreendentemente abrasivo
e doloroso de uma família e, pelo menos assim me pareceu, uma experiencia de
difícil consumo, fugindo a simplicismos redutivos ou mesmo à estrutura de
contrastes binários que parece estabelecer no início da sua observação das duas
irmãs.
Mas não se iluda quem
imagina que o filme se limita a uma complacente observação, pois o trabalho de
montagem e direção é de óbvio poder e relevância desde os primeiros momentos do
filme. Georgia inicia-se num ritmo de imediata velocidade frenética, passando
da imagem de Sadie num descapotável a uma serena imagem da infância das duas
irmãs e de seguida mergulhando numa sequência de pequenas cenas, quase
vinhetas, que demonstram o último desastre pessoal e profissional na vida de
Sadie. O ritmo é errático, rápido e um pouco atordoante, mas depressa o filme
para, numa pausa formidável quando Sadie assiste a um concerto da sua irmã. A
presença em palco e em cena de Georgia é como que um bloco de imobilidade
rítmica, prendendo o filme numa observação prolongada do seu número musical,
melodioso e calmo em contraste com a crua e sofredora presença de Sadie. Há uma
qualidade que quase se aproxima da perversidade nestes momentos iniciais,
depois de testemunharmos intimamente o desastre de Sadie, paramos com ela para
observar a irmã que ela idolatra. Ela é tão fã da irmã como as pessoas à sua
volta, tentando alcançar algo que lhe é negado, a glória de Georgia, e nós,
pelo veículo da câmara, quase conseguimos estar mais próximos de Georgia do que
Sadie, sempre afastada, sempre distanciada e bloqueada por si mesma.
Momentos como este,
há que honestamente dizer, nunca funcionariam se não fosse o glorioso elenco
aqui reunido. Todos os atores são impecáveis, mesmo os que têm menor tempo de
presença têm um impacto imenso e fulcral no desenvolvimento do filme. Mas,
sejamos sinceros, que o que eleva estas duas maravilhosamente dolorosas horas
de cinema ao triunfo são as duas atrizes no seu centro, em duas interpretações
quase simbióticas nos seus contrastes. Uma presença fogosa, em constante
movimento irritante e uma calma e serena imobilidade em forma humana. Devido a
Leigh e Winningham o filme quase se assemelha a observar um comboio embater
contra uma parede imóvel e o espetáculo é tão avassalador como feio, abrasivo e
acidamente humano na sua especificidade vivida.
Jennifer Jason Leigh
é um milagre de impetuosidade interpretativa, completamente selvagem na sua
linguagem corporal e erráticos movimentos. Muitos a consideraram demasiado
óbvia e exagerada mas, devido ao seu exagero, é impossível ignorar Sadie, que
consome todo o ar das cenas em que entra, focando todo o filme na sua mera
presença. Mas, esse exagero, apesar de carismático na sua emoção ferida e
vulnerabilidade, é também grotesco e feio em certos momentos, exemplificando a
sua decadência e destrutividade de um modo que se recusa a simplificar a sua
persona. Olhemos as cenas no hospital, a adormecer a meio de uma fala com um
cigarro na boca, meio dormente e cansada, e contrastemos esse animal ferido e
destroçado com as cenas musicais de Sadie, com a sua voz tão melodicamente
suave como arame farpado e o seu latente desespero. Há um carisma estranho que
rapidamente se torna em desconforto, uma dependência pela irmã que trai as suas
próprias palavras e um carisma que não corresponde à sua horrível voz e,
franca, falta de talento musical.
Em contraste com a
presença energética de Leigh, temos Winnigham numa interpretação que lhe valeu
uma merecida nomeação para o Óscar de Melhor Atriz Secundária. Na medida em que
Sadie é um turbilhão de fúria e desordem, Georgia é uma presença de suprema
calma e quietude doméstica. A sua própria presença em palco parece contradizer
a sua fama, o seu impacto sobre todo o filme, recusando-se a injetar qualquer
tipo de dinamismo ou carisma de estrela mesmo quando em palco, Georgia parece
uma antítese completa de Sadie e uma complementação fenomenal do estilo antagónico
de Jason Leigh. Subtileza e exagero em contraste contínuo durante o filme. Mas
seria erróneo, e uma traição da complexidade do filme, apenas definir Georgia
como uma presença contrastante a Sadie. Uma das coisas mais fascinantes no
trabalho de Winnigham é o modo como a sua calma, ocasionalmente, parece
revelar-se como uma fachada deliberadamente construída em oposição a Sadie e
não uma manifestação de um temperamento natural. Para além disso, e dos fugazes
momentos de vulnerabilidade implícita, há uma aura de solidão e melancolia que
penetra toda a presença da cantora, reduzindo-a a um distante e frio membro de
uma família, sem amigos exteriores ao seu núcleo e deliberadamente apática e
afastada da emoção que a rodeia. As sombras de desinteresse e aborrecimento que
assombram os seus olhares a Sadie são dos mais imperdoavelmente cruéis momentos
do filme.
Os momentos entre as
duas irmãs são os pontos mais altos do filme, sendo que até a mise-en-scène
manifesta a sua conturbada relação, colocando muitas vezes Georgia mais perto
da câmara nas composições. Georgia, parada e calma, e Sadie em constantes
movimentos, em que Sadie parece ter a necessidade de preencher os espaços
vazios na imagem. No entanto, alguns dos mais notáveis e celebrados momentos do
filme são exemplos do contrário destas mesmas escolhas composicionais. Falo das
passagens musicais que envolvem as duas irmãs, nomeadamente a famosa sequência
de nove minutos em que Sadie canta a canção “Take Me Back”. O realizador, como
em muitas cenas do filme, apenas corta para a reação da irmã que observa a
performance, sendo que Georgia, num ato de maternal caridade, de benevolência
superior e de agressividade fraternal, intervém no momento de Sadie,
harmonizando no background e dando alguma consistência a um numero musical que
mais parece uma auto dissecação emocional feita por Sadie para o seu público. O
filme força esta comparação binária entre as duas irmãs, mas em momentos como
este quebra a sua própria rigidez e dualidade, mostrando uma agressividade e
frieza em Georgia, quase que uma necessidade por intervir na vida de Sadie mas
também um desejo de alguma da intensidade emocional dela. Sadie é um farrapo
humano que necessita de Georgia para existir, mas o contrário também parece,
por momentos registar-se, com Georgia como um vácuo em necessidade de preenchimento
cru e emocional. Uma salvação pública tao espinhosa como simpatética, e um
momento de cruel observação como são muitos neste filme.
Num dos momentos
cruciais de Georgia, Sadie confronta
a irmã dizendo-lhe que consegue sentir o que ela sente, sendo prontamente
respondida com uma negação de Georgia, e aí se encontra um dos mais importantes
aspetos do filme. Há uma constante distância entre os seres humanos do filme,
por muito próximos e empáticos que possam ser, criando uma coleção de sujeitos
singulares em permanente estado de isolação. Sadie parece ser um mistério para
si mesma e Georgia um pico de solidão vazia que deambula calmamente pela vida,
ambas em constante jogo de aproximação e afastamento em que a real intimidade e
empatia parecem ser impossíveis de alcançar. Vemos um ciclo repetitivo de
confrontação passiva-agressiva e autodestruição caótica, e mesmo no final,
noutra das comparações cruéis que o realizador força entre as irmãs, o ciclo
continua. Sadie, antes de cantar o ultimo número musical do filme, bebe água e
parece relativamente rejuvenescida depois do estado em que a vimos no hospital,
mas, no final, volta a estar na mesma posição que estava no início do filme, em
palco com uma bebida alcoólica na mão e o peso da irmã a simultaneamente
levantar e destroçar. Admiro o filme por momentos assim, pelo modo como se
recusa a simplificar a existência destas duas figuras que criou, confrontando a
audiência e nunca criando um conforto desnecessário pelo meio da sua examinação
corrosiva e perspicaz das duas irmãs. Em termos formais há pouca ambição no
filme, mas na sua impiedade existe glória cinemática e um impacto emocional
que, ao invés de deixar a audiência numa catarse classicista, a deixa numa
reticência cruel, num momento de não conclusão, de desconforto e angústia.
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