terça-feira, 29 de setembro de 2015

GEORGIA (1995) de Ulu Grosbard

 Um amigo pessoal, e leitor deste blog, enviou-me uma lista de vários filmes, sobre os quais gostaria de saber os meus pensamentos. Aqui vai o primeiro texto de muitos, sendo que a sua lista é considerável e ainda vai demorar algum tempo até todos esses filmes estarem aqui, neste blog, explorados. 




 Há um tipo de filme que se costuma chamar “estudo de personagem” pelo qual eu, normalmente, tenho pouca afeição. Filmes de registos que almejam o naturalismo e se reduzem a peças de observação em que a audiência é convidada a se maravilhar sobre o trabalho do elenco, sendo que o trabalho de ator e, ocasionalmente, o texto são o centro de todo o edifício do filme. É um tipo de cinema muito presente na produção independente americana, cuja crónica falta de ambição e banalidade quase anti criativa me provocam muito mais repulsa que admiração, especialmente na passada década. Mas, por vezes, desse cinema aparece uma obra que surpreende pela sua perspicácia, e em que uma falta de ambição formal não denuncia uma falta de atenção para com este aspeto, e em que a intimidade alcançada com a mera observação consegue ser de uma perspicácia cortante e nos deixa a nós, a audiência, como que hipnotizados pelas vidas que vemos se desenrolarem defronte dos nossos olhos. Georgia de Ulu Grosbard é, para mim pelo menos, um desses filmes, um triunfo de observação intima e dissecação pessoal, e um dos mais fascinantes estudos familiares que se podem encontrar no cinema americano das ultimas décadas, o que, se considerarmos a vastidão de possibilidades, é algo de irrepreensível valor e relevância.

  O filme tem como sua principal preocupação a relação entre duas irmãs, Sadie (Jennifer Jason Leigh) e Georgia Flood (Mare Winningham). Sadie é uma toxicodependente e provavelmente também uma alcoólica que sonha em ser uma estrela musical como a sua irmã mais velha, que nos aparece como uma estrela de folk logo no início do filme com uma fama considerável. Enquanto Sadie é uma constante espiral de caos e autodestruição, Georgia é serena, doméstica e quase desinteressada na sua própria fama. O filme em si, tem início depois de mais uma das crises pessoais de Sadie quando ela toma refúgio na casa da irmã, sendo que, daí para a frente, o que observamos é mais um ciclo na vida das duas, em que Sadie faz escolhas duvidosas e erráticas, acaba por se casar com um ingénuo e inocente homem, Axel (Max Perlich), e acaba mesmo numa cama de hospital a ser cuidada pela sua irmã. O filme é quase um estudo de relações familiares em que a dependência e o afastamento são as palavras de ordem. É um retrato surpreendentemente abrasivo e doloroso de uma família e, pelo menos assim me pareceu, uma experiencia de difícil consumo, fugindo a simplicismos redutivos ou mesmo à estrutura de contrastes binários que parece estabelecer no início da sua observação das duas irmãs.

 Mas não se iluda quem imagina que o filme se limita a uma complacente observação, pois o trabalho de montagem e direção é de óbvio poder e relevância desde os primeiros momentos do filme. Georgia inicia-se num ritmo de imediata velocidade frenética, passando da imagem de Sadie num descapotável a uma serena imagem da infância das duas irmãs e de seguida mergulhando numa sequência de pequenas cenas, quase vinhetas, que demonstram o último desastre pessoal e profissional na vida de Sadie. O ritmo é errático, rápido e um pouco atordoante, mas depressa o filme para, numa pausa formidável quando Sadie assiste a um concerto da sua irmã. A presença em palco e em cena de Georgia é como que um bloco de imobilidade rítmica, prendendo o filme numa observação prolongada do seu número musical, melodioso e calmo em contraste com a crua e sofredora presença de Sadie. Há uma qualidade que quase se aproxima da perversidade nestes momentos iniciais, depois de testemunharmos intimamente o desastre de Sadie, paramos com ela para observar a irmã que ela idolatra. Ela é tão fã da irmã como as pessoas à sua volta, tentando alcançar algo que lhe é negado, a glória de Georgia, e nós, pelo veículo da câmara, quase conseguimos estar mais próximos de Georgia do que Sadie, sempre afastada, sempre distanciada e bloqueada por si mesma.

  Momentos como este, há que honestamente dizer, nunca funcionariam se não fosse o glorioso elenco aqui reunido. Todos os atores são impecáveis, mesmo os que têm menor tempo de presença têm um impacto imenso e fulcral no desenvolvimento do filme. Mas, sejamos sinceros, que o que eleva estas duas maravilhosamente dolorosas horas de cinema ao triunfo são as duas atrizes no seu centro, em duas interpretações quase simbióticas nos seus contrastes. Uma presença fogosa, em constante movimento irritante e uma calma e serena imobilidade em forma humana. Devido a Leigh e Winningham o filme quase se assemelha a observar um comboio embater contra uma parede imóvel e o espetáculo é tão avassalador como feio, abrasivo e acidamente humano na sua especificidade vivida.

 Jennifer Jason Leigh é um milagre de impetuosidade interpretativa, completamente selvagem na sua linguagem corporal e erráticos movimentos. Muitos a consideraram demasiado óbvia e exagerada mas, devido ao seu exagero, é impossível ignorar Sadie, que consome todo o ar das cenas em que entra, focando todo o filme na sua mera presença. Mas, esse exagero, apesar de carismático na sua emoção ferida e vulnerabilidade, é também grotesco e feio em certos momentos, exemplificando a sua decadência e destrutividade de um modo que se recusa a simplificar a sua persona. Olhemos as cenas no hospital, a adormecer a meio de uma fala com um cigarro na boca, meio dormente e cansada, e contrastemos esse animal ferido e destroçado com as cenas musicais de Sadie, com a sua voz tão melodicamente suave como arame farpado e o seu latente desespero. Há um carisma estranho que rapidamente se torna em desconforto, uma dependência pela irmã que trai as suas próprias palavras e um carisma que não corresponde à sua horrível voz e, franca, falta de talento musical.

  Em contraste com a presença energética de Leigh, temos Winnigham numa interpretação que lhe valeu uma merecida nomeação para o Óscar de Melhor Atriz Secundária. Na medida em que Sadie é um turbilhão de fúria e desordem, Georgia é uma presença de suprema calma e quietude doméstica. A sua própria presença em palco parece contradizer a sua fama, o seu impacto sobre todo o filme, recusando-se a injetar qualquer tipo de dinamismo ou carisma de estrela mesmo quando em palco, Georgia parece uma antítese completa de Sadie e uma complementação fenomenal do estilo antagónico de Jason Leigh. Subtileza e exagero em contraste contínuo durante o filme. Mas seria erróneo, e uma traição da complexidade do filme, apenas definir Georgia como uma presença contrastante a Sadie. Uma das coisas mais fascinantes no trabalho de Winnigham é o modo como a sua calma, ocasionalmente, parece revelar-se como uma fachada deliberadamente construída em oposição a Sadie e não uma manifestação de um temperamento natural. Para além disso, e dos fugazes momentos de vulnerabilidade implícita, há uma aura de solidão e melancolia que penetra toda a presença da cantora, reduzindo-a a um distante e frio membro de uma família, sem amigos exteriores ao seu núcleo e deliberadamente apática e afastada da emoção que a rodeia. As sombras de desinteresse e aborrecimento que assombram os seus olhares a Sadie são dos mais imperdoavelmente cruéis momentos do filme.

 Os momentos entre as duas irmãs são os pontos mais altos do filme, sendo que até a mise-en-scène manifesta a sua conturbada relação, colocando muitas vezes Georgia mais perto da câmara nas composições. Georgia, parada e calma, e Sadie em constantes movimentos, em que Sadie parece ter a necessidade de preencher os espaços vazios na imagem. No entanto, alguns dos mais notáveis e celebrados momentos do filme são exemplos do contrário destas mesmas escolhas composicionais. Falo das passagens musicais que envolvem as duas irmãs, nomeadamente a famosa sequência de nove minutos em que Sadie canta a canção “Take Me Back”. O realizador, como em muitas cenas do filme, apenas corta para a reação da irmã que observa a performance, sendo que Georgia, num ato de maternal caridade, de benevolência superior e de agressividade fraternal, intervém no momento de Sadie, harmonizando no background e dando alguma consistência a um numero musical que mais parece uma auto dissecação emocional feita por Sadie para o seu público. O filme força esta comparação binária entre as duas irmãs, mas em momentos como este quebra a sua própria rigidez e dualidade, mostrando uma agressividade e frieza em Georgia, quase que uma necessidade por intervir na vida de Sadie mas também um desejo de alguma da intensidade emocional dela. Sadie é um farrapo humano que necessita de Georgia para existir, mas o contrário também parece, por momentos registar-se, com Georgia como um vácuo em necessidade de preenchimento cru e emocional. Uma salvação pública tao espinhosa como simpatética, e um momento de cruel observação como são muitos neste filme.

  Num dos momentos cruciais de Georgia, Sadie confronta a irmã dizendo-lhe que consegue sentir o que ela sente, sendo prontamente respondida com uma negação de Georgia, e aí se encontra um dos mais importantes aspetos do filme. Há uma constante distância entre os seres humanos do filme, por muito próximos e empáticos que possam ser, criando uma coleção de sujeitos singulares em permanente estado de isolação. Sadie parece ser um mistério para si mesma e Georgia um pico de solidão vazia que deambula calmamente pela vida, ambas em constante jogo de aproximação e afastamento em que a real intimidade e empatia parecem ser impossíveis de alcançar. Vemos um ciclo repetitivo de confrontação passiva-agressiva e autodestruição caótica, e mesmo no final, noutra das comparações cruéis que o realizador força entre as irmãs, o ciclo continua. Sadie, antes de cantar o ultimo número musical do filme, bebe água e parece relativamente rejuvenescida depois do estado em que a vimos no hospital, mas, no final, volta a estar na mesma posição que estava no início do filme, em palco com uma bebida alcoólica na mão e o peso da irmã a simultaneamente levantar e destroçar. Admiro o filme por momentos assim, pelo modo como se recusa a simplificar a existência destas duas figuras que criou, confrontando a audiência e nunca criando um conforto desnecessário pelo meio da sua examinação corrosiva e perspicaz das duas irmãs. Em termos formais há pouca ambição no filme, mas na sua impiedade existe glória cinemática e um impacto emocional que, ao invés de deixar a audiência numa catarse classicista, a deixa numa reticência cruel, num momento de não conclusão, de desconforto e angústia.


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