O novo documentário sobre
o mundo da moda realizado por Frédéric Tcheng foca-se na criação da primeira
coleção de alta-costura concebida para a casa Dior por Raf Simons. Confesso
que, conhecendo o trabalho do designer belga para a Dior, tinha as minhas
reservas pessoais em relação ao filme, julgando ter de ver uma glorificação de
um trabalho pelo qual nutro muito pouca afeição. Isso devém grandemente do
facto de que o filme, apesar de se passar em 2012 no inicio do período de
Simons como diretor criativo da Dior, o filme acabou de estrear agora nos
cinemas, três anos depois dos acontecimentos, três anos em que Simons tem
desenvolvido o seu trabalho para a casa. Esse legado informa de modo inevitável
o visionamento do filme, assombrando o espetador num modo semelhante a como os
dez anos de Christian Dior na mesma posição de Simons assombram qualquer
momento do filme. As costureiras chegam mesmo a dizer que o fantasma do
costureiro do passado ainda caminha pelo atelier. Mas mais que Christian, é o
nome Dior que pesa sobre o filme, sobre Simons e até sobre Christian nas
passagens em que o filme mostra filmagens de arquivo, que se vão tornando cada
vez mais desnecessárias e obstrutivas à medida que vão ocorrendo.
Como figura central
de um documentário, Raf Simons é verdadeiramente fascinante, especialmente no
modo como é filmado por Tcheng. O designer, maioritariamente conhecido, no início
do filme, pelo seu estilo vagamente minimalista e pelo seu trabalho em
pronto-a-vestir masculino, é uma escolha estranha para diretor da Dior, cujo
estilo sempre esteve ligado à opulência e feminilidade na alta-costura. Esse
conflito entre o estilo e legado, associados com o nome da casa, vem juntar-se
a uma série de outros aspetos como o facto de Simons falar mal francês, ter uma
forte ligação às artes plásticas e até à sua personalidade introvertida,
criando uma figura incompreendida e aparentemente distante do seu ambiente
presente. Essa distância apenas exacerbada por Tcheg que, apesar do enfase na
figura de Simons, poucas vezes tenta compreender o designer ou criar qualquer
intimidade entre o espetador e ele. Isto possibilita uma visão mais conflituosa
e complexa de Simons e sugere que o filme está longe de querer ser uma completa
glorificação, estando, na verdade, muito mais interessado em ser um thriller.
Num simples title card, o realizador dá à audiência uma informação vital para a
apreciação do filme, ao invés dos usuais meses de trabalho para construir uma
coleção de alta-costura, Simons e a equipa da Dior dispuseram apenas de oito
semanas. Assim se cria um ambiente de contínua tensão que é apenas quebrada no
momento em que, no clímax do filme, as manequins caminham por entre um
labirinto de flores no desfile final. Essa tensão, originária tanto no tempo
limitado como nos conflitos internos da Dior, vai-se intensificando. Graças à
distância crítica que mantém do seu principal sujeito, Tcheger cria um retrato
errático do designer, cujo comportamento é ora inspirador ora autoindulgente e
francamente irritante, como numa sequência em que parece recusar qualquer
pedido que lhe façam em relação à publicidade e organização do desfile. Há uma
relativa frieza na observação, o que combinado com o stress e tensão cria como
que um filme à volta de reféns. O designer torna toda a equipa refém das suas
exigências e ideias, Simons é refém da Dior, das expetativas e do legado e
importância da casa, e é neste ambiente que vemos a criação de uma coleção,
desde as primeiras ideias do designer, passando pela confeção, criação dos
tecidos, provas, e acabando no desfile já referido.
E é nessa criação,
que envolve muito mais pessoas para além de Simons, que o filme realmente
brilha. Eu esperava uma obra glorificante e com uma narrativa de um herói
individual, o que na verdade encontrei neste filme, se pensarmos em filmes
biográficos, é algo mais semelhante a um Lincoln
que a um The Iron Lady, uma visão de
um trabalho conjunto com uma figura central que o filme nunca eleva em demasia.
Na verdade a equipa que trabalha todos os dias no atelier da Dior e que
concretiza a coleção é tão ou mais importante que Simons neste filme.
O filme desenvolve-se
num jogo de tensão e conflitos, sendo que os mais fulcrais, apesar do que eu
pensava e do que anteriormente mencionei, são entre um criador de ideias e as
pessoas que concretizam essas ideias, assim como entre intenções criativas e
artísticas face a um mundo da moda que se baseia no comércio. Arte e comércio,
uma temática suficiente para uma saga de documentários e que apesar de estar
aqui presente, poderia ser muito mais desenvolvido e explorado. A observação de
Tcheng não é tão incisiva ou formidável como a que vemos nos filmes de
Frederick Wiseman, mas é hipnotizante mesmo assim. A sua preocupação em
retratar individualmente as frustrações e preocupações de vários membros da
equipa, quer sejam encarregues das finanças ou da criação de têxteis, conjura
uma visão coletiva de um mundo que parece muitas vezes existir numa bolha de
indulgências, superficialidade e elitismo.
Para além de alguns
problemas estruturais e de montagem, como a insistência nos filmes de arquivo
mesmo quando não aprecem acrescentar nada ao filme depois da introdução
inicial, a obra padece de uma preocupante falta de estilo. Quando, há quase um
ano, escrevi sobre Saint Laurent de
Bertrand Bonello celebrei o modo como esse filme mostrava o mundo da moda de um
modo formalmente magnífico, como que criando uma linguagem cinemática que
corresponde ao sujeito do filme. Tal sofisticação não existe neste documentário,
sendo que o filme tem o aspeto de tantos outros filmes semelhantes, sendo que,
talvez intencionalmente, qualquer beleza ou estilo provém, não do olhar da
audiência ou do realizador, mas das criações da Dior que vão aparecendo pelo
filme. Mas, por vezes, há singulares momentos de graça e subtil força como uma
imagem dos pés de uma costureira que, apesar de usar a casaca branca que
uniformiza todos os que trabalham no atelier, usa sandálias de salto alto e
unhas pintadas enquanto pressiona o pedal da sua máquina de costura. Um momento
de observação simples que encontra esse elusivo estilo e preocupação estética
nos pés de uma costureira e não de uma estrela de cinema ou modelo vestida com
as roupas costuradas pela dona de tais pés.
Um momento semelhante
marca o começo do capítulo final do filme, o desfile de apresentação da
coleção. Aí vemos a equipa do atelier passar por entre os muros de flores que
inundam a passerelle, maravilhadas com a sua beleza e fantasia. Apesar das
minhas reservas e das limitações do filme, quando vemos a coleção final, há
algo de triunfante e comovedor no espetáculo. Dos convidados e das celebridades
Simons recebe os aplausos do triunfo, mais abaixo, onde se encontra o resto da
equipa, celebra o trabalho coletivo. O filme não torna inválida qualquer uma
destas celebrações, terminando também o filme num momento de chorosa
celebração, enquanto admite a complexidade e o trabalho árduo por detrás da
beleza e elegância apresentada na passerelle por entre realeza e estrelas de
cinema radiantes.
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