domingo, 6 de setembro de 2015

A GIRL WALKS HOME ALONE AT NIGHT (2014) de Ana Lily Amirpour



 Aquando da minha reflexão inicial acerca do primeiro filme de Ana Lily Amirpour, deparei-me com uma aparentemente invariável bifurcação no meu pensamento sobre a obra. De um lado temos uma visão da obra que se apoia em aspetos políticos e feministas que são impossíveis de separar do filme, quer seja pelo seu próprio título, quer seja pelo facto de ter uma mulher como realizadora, ou mesmo no que diz respeito às imagens mais repetidas e impossíveis s de ignorar do filme. Por outro lado temos o lado estético e formal do filme, que pega em inúmeras referências cinematográficas, inspirando-se especialmente na Nouvelle Vague e fazendo uma espécie de pastiche intencionalmente superficial que não explora de modo deliberado as questões mais políticas anteriormente referidas. Um exercício político ou um puramente estético?

 Olhando para uma breve descrição do enredo parece logo haver uma certa inclinação para o primeiro caminho argumentativo. O filme situa-se em Bad City, uma localização descaradamente fictícia, no Irão, acompanhando uma figura misteriosa, uma vampira apenas identificada como A Rapariga (Sheila Vand), vaguear pela noite. Ao longo dos seus passeios noturnos, a predadora sobrenatural vai atacando variadas figuras masculinas, sendo que a primeira vítima que vemos no filme, é um proxeneta seduzido pela protagonista e devorado por ela depois de eroticamente a deixar chupar no seu dedo. A palavra “sex” está tatuada no seu pescoço, se houver algumas dúvidas sobre as intenções da cena.

 Envergando um chador, a protagonista é uma presença escura e predatória no filme, uma manifestação agressiva e predatória cujas vítimas são sempre homens, sendo que as mais violentas cenas são dedicadas a homens que o filme dedicadamente retratou com alguma repugnância e julgamento implícito, como no caso da primeira vítima. O nome que é atribuído pelos créditos à protagonista é de interesse, tornando A Rapariga numa figura quase arquétipa ou mesmo simbólica. A Rapariga revoltando-se violentamente contra os homens de uma sociedade intensamente patriarcal.

 Um bom argumento contra este pensamento seria a ênfase num romance entre a protagonista e um jovem chamado Arash (Arash Marandi), ou a falta de ênfase na realidade social do Irão, em que o filme, apesar de ser uma produção americana, insiste em se localizar. Em relação ao romance, eu gostaria de apontar para o seu primeiro encontro em que os dois estão vestidos no figurino de um vampiro. A Rapariga está vestida nas suas roupas usuais, um rasgão de negro em todos os planos em que se encontra, com os olhos com fortíssima maquilhagem escura. O rapaz enverga uma capa de vampiro, uma máscara barata, uma dentadura de vampiro e também maquilhagem de olhos. Ao longo da cena deparamo-nos com a figura masculina completamente indefesa e confusa perante a mulher que se impõe sobre ele. No final, ele sentado no chão olha para cima, para A Rapariga. O controlo que seria de esperar entre os dois géneros neste tipo de ambiente social é invertido, o poder nunca está do lado de Ashar, mesmo em cenas seguintes, A Rapariga é perpetuamente a figura de poder e de independência em todo o filme.

 Mas, ao mesmo tempo que menciono toda esta possível leitura, vejo-me face a um certo obstáculo quando confrontado com o estilo do filme e com a imensa falta de ênfase ou importância da localização do enredo do filme.

  E aqui, eu viro-me para o estilo do filme, que se inspira em inúmeras fontes, sendo a inspiração na Nouvelle Vague e no trabalho de Godard em específico extremamente difícil de ignorar. O preto-e-branco, a montagem, o cenário do apartamento da Rapariga, as escolhas musicais, a composição de muitos planos, e até a camisola às riscas da protagonista que me parece ser uma explícita e direta referência a Jean Seberg em À bout de souffle. A própria filmagem ter sido feita na Califórnia (algo muitas vezes difícil de ignorar), parece corresponder à atitude de homenagem e dissecação violenta que os autores da Nouvelle Vague faziam sobre Hollywood e o cinema americano. Ao usar as técnicas desses autores, a jovem realizadora traz uma certa artificialidade e superficialidade estilística ao seu filme, retirando o foco do conteúdo social e enfatizando as escolhas e gostos cinematográficos da realizadora enquanto criadora formal.

 Mas, pensando sobre a história desse célebre movimento francês, há que lembrar que, apesar de Agnès Varda, a Nouvelle Vague foi fortemente masculina, especialmente no que diz respeito ao cinema de Godard, que eu acusaria de misoginia descarada e escondida por entre a sua estilística masturbação intelectual. Seberg, no filme de Godard que acima referi, é uma figura fortemente objetificada, uma bela imagem que acompanha Jean-Paul Belmondo, ouvindo até ao final do filme, que lembra o primeiro encontro do casal do filme de Amirpour, as suas ideias e pensamentos.

 Pegando num estilo com uma história de misoginia e poder masculino, Amirpour faz uma curiosa apropriação a uma perspetiva fortemente feminina de uma história definitivamente concentrada numa figura feminina. O filme não está a fazer a experimentação do movimento francês, pelo contrário está a fazer uma apropriação bastante direta dos filmes desse movimento. A localização da história do filme pode não expor a sociedade patriarcal em que se desenrola, mas o estilo de Amirpour cria um ambiente e forma cinemática fortemente associada a esse mesmo tipo de pensamento. O estilo e as escolhas aparentemente superficiais, tornam.se o conteúdo dos aspetos sociais anteriormente referidos.

 Talvez tudo isto seja apenas uma visão pessoal que estou a forçosamente impor sobre a realidade do filme, mas, tendo em conta certas perspetivas pessoais sobre o trabalho da Nouvelle Vague, é-me impossível não criar tal sequência de ideias.

 Mas, para além de tudo isto, há que mencionar que o filme, apesar de um humor seco reminiscente do trabalho de Jim Jarmusch, é vítima de uma estrutura extremamente repetitiva. As cenas individuais são maravilhosamente prodigiosas nos seus visuais e prazeres sonoros, mas quando editadas num filme de 101 minutos, a experiência de ver o filme começa a tornar-se um pouco exaustiva e até entediante. Penso que se se cortassem algumas das repetições do filme, a obra apenas beneficiária, mas tais conjeturas são inúteis, sendo que mais vale aproveitar e apreciar o filme que temos.

 Temos aqui uma obra com uma certa imaturidade, cheio de ideias e ambições (pelo menos estilísticas), e com momentos de brilhante beleza. Vale a pena ver o filme, nem que seja pela imagem da protagonista a deslizar num skateboard por uma rua, o chador a esvoaçar no ar faz dela um morcego. Uma sombra da noite. Uma visão de liberdade solitária. Um momento de glorioso cinema que me faz sonhar com os futuros filmes de Amirpour. Oxalá esses futuros trabalhos sejam tão fascinantes como esta sua estreia.


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