Aquando da minha reflexão inicial
acerca do primeiro filme de Ana Lily Amirpour, deparei-me com uma aparentemente
invariável bifurcação no meu pensamento sobre a obra. De um lado temos uma
visão da obra que se apoia em aspetos políticos e feministas que são
impossíveis de separar do filme, quer seja pelo seu próprio título, quer seja
pelo facto de ter uma mulher como realizadora, ou mesmo no que diz respeito às
imagens mais repetidas e impossíveis s de ignorar do filme. Por outro lado
temos o lado estético e formal do filme, que pega em inúmeras referências
cinematográficas, inspirando-se especialmente na Nouvelle Vague e fazendo uma
espécie de pastiche intencionalmente
superficial que não explora de modo deliberado as questões mais políticas
anteriormente referidas. Um exercício político ou um puramente estético?
Olhando para uma
breve descrição do enredo parece logo haver uma certa inclinação para o
primeiro caminho argumentativo. O filme situa-se em Bad City, uma localização
descaradamente fictícia, no Irão, acompanhando uma figura misteriosa, uma
vampira apenas identificada como A Rapariga (Sheila Vand), vaguear pela noite.
Ao longo dos seus passeios noturnos, a predadora sobrenatural vai atacando
variadas figuras masculinas, sendo que a primeira vítima que vemos no filme, é
um proxeneta seduzido pela protagonista e devorado por ela depois de eroticamente
a deixar chupar no seu dedo. A palavra “sex” está tatuada no seu pescoço, se
houver algumas dúvidas sobre as intenções da cena.
Envergando um chador,
a protagonista é uma presença escura e predatória no filme, uma manifestação
agressiva e predatória cujas vítimas são sempre homens, sendo que as mais
violentas cenas são dedicadas a homens que o filme dedicadamente retratou com
alguma repugnância e julgamento implícito, como no caso da primeira vítima. O
nome que é atribuído pelos créditos à protagonista é de interesse, tornando A Rapariga
numa figura quase arquétipa ou mesmo simbólica. A Rapariga revoltando-se
violentamente contra os homens de uma sociedade intensamente patriarcal.
Um bom argumento
contra este pensamento seria a ênfase num romance entre a protagonista e um
jovem chamado Arash (Arash Marandi), ou a falta de ênfase na realidade social
do Irão, em que o filme, apesar de ser uma produção americana, insiste em se
localizar. Em relação ao romance, eu gostaria de apontar para o seu primeiro
encontro em que os dois estão vestidos no figurino de um vampiro. A Rapariga
está vestida nas suas roupas usuais, um rasgão de negro em todos os planos em
que se encontra, com os olhos com fortíssima maquilhagem escura. O rapaz
enverga uma capa de vampiro, uma máscara barata, uma dentadura de vampiro e
também maquilhagem de olhos. Ao longo da cena deparamo-nos com a figura
masculina completamente indefesa e confusa perante a mulher que se impõe sobre
ele. No final, ele sentado no chão olha para cima, para A Rapariga. O controlo
que seria de esperar entre os dois géneros neste tipo de ambiente social é
invertido, o poder nunca está do lado de Ashar, mesmo em cenas seguintes, A
Rapariga é perpetuamente a figura de poder e de independência em todo o filme.
Mas, ao mesmo tempo
que menciono toda esta possível leitura, vejo-me face a um certo obstáculo
quando confrontado com o estilo do filme e com a imensa falta de ênfase ou
importância da localização do enredo do filme.
E aqui, eu viro-me
para o estilo do filme, que se inspira em inúmeras fontes, sendo a inspiração
na Nouvelle Vague e no trabalho de Godard em específico extremamente difícil de
ignorar. O preto-e-branco, a montagem, o cenário do apartamento da Rapariga, as
escolhas musicais, a composição de muitos planos, e até a camisola às riscas da
protagonista que me parece ser uma explícita e direta referência a Jean Seberg
em À bout de souffle. A própria
filmagem ter sido feita na Califórnia (algo muitas vezes difícil de ignorar),
parece corresponder à atitude de homenagem e dissecação violenta que os autores
da Nouvelle Vague faziam sobre Hollywood e o cinema americano. Ao usar as
técnicas desses autores, a jovem realizadora traz uma certa artificialidade e
superficialidade estilística ao seu filme, retirando o foco do conteúdo social
e enfatizando as escolhas e gostos cinematográficos da realizadora enquanto
criadora formal.
Mas, pensando sobre a
história desse célebre movimento francês, há que lembrar que, apesar de Agnès
Varda, a Nouvelle Vague foi fortemente masculina, especialmente no que diz
respeito ao cinema de Godard, que eu acusaria de misoginia descarada e
escondida por entre a sua estilística masturbação intelectual. Seberg, no filme
de Godard que acima referi, é uma figura fortemente objetificada, uma bela
imagem que acompanha Jean-Paul Belmondo, ouvindo até ao final do filme, que
lembra o primeiro encontro do casal do filme de Amirpour, as suas ideias e
pensamentos.
Pegando num estilo
com uma história de misoginia e poder masculino, Amirpour faz uma curiosa
apropriação a uma perspetiva fortemente feminina de uma história
definitivamente concentrada numa figura feminina. O filme não está a fazer a
experimentação do movimento francês, pelo contrário está a fazer uma
apropriação bastante direta dos filmes desse movimento. A localização da
história do filme pode não expor a sociedade patriarcal em que se desenrola,
mas o estilo de Amirpour cria um ambiente e forma cinemática fortemente
associada a esse mesmo tipo de pensamento. O estilo e as escolhas aparentemente
superficiais, tornam.se o conteúdo dos aspetos sociais anteriormente referidos.
Talvez tudo isto seja
apenas uma visão pessoal que estou a forçosamente impor sobre a realidade do
filme, mas, tendo em conta certas perspetivas pessoais sobre o trabalho da
Nouvelle Vague, é-me impossível não criar tal sequência de ideias.
Mas, para além de
tudo isto, há que mencionar que o filme, apesar de um humor seco reminiscente
do trabalho de Jim Jarmusch, é vítima de uma estrutura extremamente repetitiva.
As cenas individuais são maravilhosamente prodigiosas nos seus visuais e
prazeres sonoros, mas quando editadas num filme de 101 minutos, a experiência
de ver o filme começa a tornar-se um pouco exaustiva e até entediante. Penso
que se se cortassem algumas das repetições do filme, a obra apenas beneficiária,
mas tais conjeturas são inúteis, sendo que mais vale aproveitar e apreciar o
filme que temos.
Temos aqui uma obra
com uma certa imaturidade, cheio de ideias e ambições (pelo menos estilísticas),
e com momentos de brilhante beleza. Vale a pena ver o filme, nem que seja pela
imagem da protagonista a deslizar num skateboard por uma rua, o chador a
esvoaçar no ar faz dela um morcego. Uma sombra da noite. Uma visão de liberdade
solitária. Um momento de glorioso cinema que me faz sonhar com os futuros
filmes de Amirpour. Oxalá esses futuros trabalhos sejam tão fascinantes como
esta sua estreia.
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