É deveras
interessante que Topsy-Turvy seja o
segundo filme de Mike Leigh a aparecer neste blogue. Esta obra e Mr. Turner são anomalias na carreira do
realizador, sendo dois dos três únicos filmes de época na carreira do
realizador, e sendo os únicos dois filmes a basearem-se em realidades
históricas, a vida de J. W. Turner no caso do primeiro filme que aqui vimos, ou
na criação da opereta de Gilbert e Sullivan, o Mikado, neste caso.
Também seria bom de referir o modo como em
ambos os filmes podemos observar o olhar de Leigh sobre o processo criativo,
processos bem diferentes do processo de Leigh, mas que, de algum modo,
conseguem aparecer nos filmes quase que refletindo o trabalho do seu próprio
autor. No entanto, apesar dessas semelhanças e singularidades quando comparados
com a obra de Leigh, estes dois filmes partilham uma grande e fulcral
diferença, sendo que em Turner víamos um retrato individual de um protagonista
central e em Topsy-Turvy examinamos
um esforço coletivo, com algumas figuras a ganhar mais ou menos relevo ao longo
do filme mas explorando uma multidão de personagens, desde o autor do texto ao
coro, aos figurinistas, ao coreógrafo etc. Com este tipo de abordagem,
aplicando o mesmo tipo de valores de retrato coletivo presentes na maior parte
da sua oeuvre, Leigh criou o que é,
na minha opinião, um dos mais belos filmes sobre teatro já filmados.
Muitos são os filmes que se focam nas artes
performativas do palco, sendo bastante fácil conjurar variados nomes de filmes
absolutamente geniais como The Red Shoes,
Synecdoche New York, The Company, Opening Night, e por aí fora. Uma coisa que a maior parte destes
filmes têm em comum é uma certa miopia no seu olhar, uma certa preocupação
enfática com a narrativa do herói individual, algo que em Leigh está longe de
ocorrer. O autor britânico olha sobre uma infinidade de momentos aparentemente
desnecessários, enchendo o seu filme de informação sobre a história da época,
sobre a vida privada das personagens, até olhando uma visita ao dentista de um
dos autores do espetáculo. Em Leigh, há pouco de místico ou glorioso na criação
do Mikado, o que há é uma humanidade
pulsante que envolve todo o filme, uma banalidade narrativa que
dissimuladamente esconde um dos mais complexos trabalhos do realizador, criando
uma fascinante ligação entre o processo criativo com as realidades da vida numa
sociedade.
A sociedade de que falo situa-se na Inglaterra da segunda metade do
século XIX, um ambiente insular e alienante aqui recriado com uma surpreendente
fidelidade histórica. A equipa criativa do filme chegou ao ponto de supostamente
reproduzir a maquilhagem usada na época a partir de amostras da maquilhagem
original estudadas em laboratório. Vemos aqui um realismo estranho para um
filme de época, especialmente um tão longe do realismo social ou mesmo do
miserabilismo Dickensiano. É como se a linguagem usual de Leigh não tivesse
qualquer problema em se adaptar à estruturação do filme biográfico de época,
que, apesar de tudo, é uma denominação bem apta a este filme. A ênfase na
recriação de uma realidade contemporânea, muitas vezes bizarra ou grotesca, é
aqui transposta a uma meticulosa e quase obsessiva recriação histórica, até
passando ao trabalho dos atores, que seguindo o método de improvisação
preferido por Leigh, se restringiram a trabalhar sobre factos históricos referentes
às suas personagens.
Ao longo do filme, o mundo vitoriano é mostrada
como uma realidade tão material e presente como uma família de classe baixa na
Inglaterra dos nossos dias, sendo que mesmo assim existe um curioso olhar da
parte de Leigh, que vai colocando certos momentos ao longo do filme que parecem
mostrar uma sociedade isolada e em que a mudança vai ocorrendo em soluços
maioritariamente ignorados pelas suas personagens. O telefone aparece como uma
invenção, uma novidade bizarra, a caneta com depósito de tinta é discutida num
diálogo, a exposição sobre o Japão que dá a Gilbert (Jim Broadbent) a ideia de
criar um espetáculo situado no Japão Feudal, apenas salienta esta estranha
distanciação de uma inteira sociedade. Um mundo em auto isolamento e cheio de
valores imperialistas e colonialistas, que se vão revelando em passagens do
filme. Também uma fissura invariável entre a cultura continental e a cultura
inglesa se vai revelando pelo filme, sendo particularmente notável na ambiciosa
e frustrada figura de Sullivan (Allan Cordunner).
Mas é relação dessa sociedade com os
indivíduos envolvidos no processo criativo que realmente torna o filme no que
é. Com este seu elenco, um dos melhores numa carreira cheia de formidáveis elencos,
Leigh cria um retrato íntimo sobre o processo desta pequena comunidade da
companhia teatral. Mas, para além disso, o retrato de Leigh não explora só o
trabalho um tanto ou quanto superficial de Gilbert e Sullivan, mas também
parece refletir sobre o seu próprio trabalho, especialmente quando observa a
figura de Gilbert.
Interpretado por Jim Broadbent no seu melhor
trabalho com o realizador, Gilbert emerge como uma espécie de realizador dentro
do filme, tentando chegar a uma espécie de verismo que não pode deixar de ser
ridículo quando vamos vendo o espetáculo de artificialismo exótico que é o Mikado. Uma cena em que Gilbert leva um
grupo de japoneses ao teatro para que as suas atrizes aprendam a “andar como
japonesas”, revela a futilidade do verismo de Gilbert. Mas ao mesmo tempo,
quando contrastando o ridículo dos ensaios e das intenções de Gilbert com o
vislumbre do número musical final em toda a sua sonhadora opulência, o filme
parece chegar a algo de sublime na sua apreciação sobre o processo tanto de
Leigh como de Gilbert.
Numa cena seguinte, Gilbert inventa um gesto
que “vende” ao espetador como um gesto tradicional japonês, e ensaia uma cena
com os seus atores, invariavelmente presos a um artificialismo dramático que
tenta capturar o estilo do teatro da era vitoriana em Inglaterra. O autor do
texto vai lembrando os atores das motivações durante a cena, orquestrando o
artificial e insistindo num verismo estranho, um conflito criativo em forma
humana e um comentário perspicaz de Leigh sobre o tema da realidade teatral.
Mais que tendo simplesmente um grande trabalho
de Broadbent, o filme contém uma gloriosa coleção de alguns dos melhores atores
com quem Leigh já trabalhou. Os filmes do criador inglês são imensamente
focados no trabalho de ator, requerendo uma criação pormenorizada de
personagens distintas muitas vezes pintadas em pinceladas excêntricas mas não
por isso menos eficazes no mundo realista de Leigh. O olhar do filme é ao mesmo
tempo intimista e impassível tanto face ao ridículo da vida das suas figuras,
como face ao sofrimento e melancolia que assombram muitos dos membros da
companhia teatral.
Perdoem-me por me perder em elogios à equipa
do filme, mas tenho de salientar o trabalho de alguns membros do elenco como
Shirley Henderson como uma das atrizes da companhia, uma visão de fragilidade
resiliente, uma alcoólica cuja tragédia é apenas vislumbrada em momentos
fugazes mas que apunhala o tom muitas vezes cómico do filme, lembrando o
espetador de todas as vidas que se estendem para além do olhar do filme. O
final do filme pertence-lhe, revisitando a ligação entre a realidade da
companhia e da sociedade com a realidade do palco. Aqui vemos as letras de uma
das canções do espetáculo serem ditas num momento de autorreflexão da atriz no
seu camarim, sendo que Leigh corta para o número a ser interpretado em palco,
terminando o filme com o artificialismo surpreendentemente tocante da rendição
de “The Sun Whose Rays Are All Ablaze”.
Lesley Manville, uma regular dos filmes de
Leigh, aprece como a mulher de Gilbert, as suas cenas com Broadbent nunca
exploram abertamente o casamento dos dois, mas na sua figura minguante vemos as
marcas de uma relação complexa à qual o nosso olhar não tem completo acesso.
Timothy Spall, apesar de uma voz um pouco fraca para o seu trabalho musical no
filme, mostra aqui uma figura de um ator orgulhoso, desejoso de glórias
passadas e resignado à sua situação atual. Martin Savage como uma das
principais estrelas do elenco da companhia dentro do filme exibe-se como uma
figura do ator pomposo e orgulhoso, um toxicodependente errático com a fachada
de um ator maniento e maravilhosamente excêntrico. A presença e o trabalho de Allan
Cordunner é também indispensável na sua interpretação de Sullivan, que vai
partilhando o maior protagonismo do filme juntamente com Gilbert.
O momento mais glorioso deste filme não
depende porém, do trabalho coletivo do elenco, mas sim do génio de Leigh na sua
realização. Falo de uma cena em que vemos Gilbert brincar com uma espada
japonesa que o vimos comprar em cenas anteriores. Ele imita o comportamento que
viu anteriormente, tal como as suas direções futuras aos seus atores ele baseia
esta interpretação na mimese do que ele acha ser “a maneira japonesa”. Há aqui
uma jovialidade e um desprendimento luminosos num filme tão repleto de cenas de
repressivos comportamentos sociais. A norma vitoriana não tem lugar nesta sala
com Gilbert neste particular momento. A câmara aproxima-se de um Gilbert que
parece pensar, parece ter tido uma ideia no seu desprendimento, na sua
brincadeira, e o ator em cena olha diretamente para a câmara como que
partilhando a luz da sua epifania com a audiência que o observa. Leigh corta
para uma cena do espetáculo final, completamente montado no palco. Este é, para
mim o mais belo momento no filme de Leigh, um momento em que o artificial
teatral, a ingenuidade de Gilbert e Sullivan e do próprio realizador, a
recriação da sociedade vitoriana e a própria condição do filme como uma obra
cinemática se conjugam num momento de perfeição. O píncaro no que é talvez, o
mais facilmente apreciado dos filmes de Leigh, e que é, ao mesmo tempo e de
modo surpreendente, o seu mais ambicioso e revelador trabalho.
Sem comentários:
Enviar um comentário