quinta-feira, 3 de setembro de 2015

TOPSY-TURVY (1999) de Mike Leigh




 É deveras interessante que Topsy-Turvy seja o segundo filme de Mike Leigh a aparecer neste blogue. Esta obra e Mr. Turner são anomalias na carreira do realizador, sendo dois dos três únicos filmes de época na carreira do realizador, e sendo os únicos dois filmes a basearem-se em realidades históricas, a vida de J. W. Turner no caso do primeiro filme que aqui vimos, ou na criação da opereta de Gilbert e Sullivan, o Mikado, neste caso.

 Também seria bom de referir o modo como em ambos os filmes podemos observar o olhar de Leigh sobre o processo criativo, processos bem diferentes do processo de Leigh, mas que, de algum modo, conseguem aparecer nos filmes quase que refletindo o trabalho do seu próprio autor. No entanto, apesar dessas semelhanças e singularidades quando comparados com a obra de Leigh, estes dois filmes partilham uma grande e fulcral diferença, sendo que em Turner víamos um retrato individual de um protagonista central e em Topsy-Turvy examinamos um esforço coletivo, com algumas figuras a ganhar mais ou menos relevo ao longo do filme mas explorando uma multidão de personagens, desde o autor do texto ao coro, aos figurinistas, ao coreógrafo etc. Com este tipo de abordagem, aplicando o mesmo tipo de valores de retrato coletivo presentes na maior parte da sua oeuvre, Leigh criou o que é, na minha opinião, um dos mais belos filmes sobre teatro já filmados.

 Muitos são os filmes que se focam nas artes performativas do palco, sendo bastante fácil conjurar variados nomes de filmes absolutamente geniais como The Red Shoes, Synecdoche New York, The Company, Opening Night, e por aí fora. Uma coisa que a maior parte destes filmes têm em comum é uma certa miopia no seu olhar, uma certa preocupação enfática com a narrativa do herói individual, algo que em Leigh está longe de ocorrer. O autor britânico olha sobre uma infinidade de momentos aparentemente desnecessários, enchendo o seu filme de informação sobre a história da época, sobre a vida privada das personagens, até olhando uma visita ao dentista de um dos autores do espetáculo. Em Leigh, há pouco de místico ou glorioso na criação do Mikado, o que há é uma humanidade pulsante que envolve todo o filme, uma banalidade narrativa que dissimuladamente esconde um dos mais complexos trabalhos do realizador, criando uma fascinante ligação entre o processo criativo com as realidades da vida numa sociedade.

  A sociedade de que falo situa-se na Inglaterra da segunda metade do século XIX, um ambiente insular e alienante aqui recriado com uma surpreendente fidelidade histórica. A equipa criativa do filme chegou ao ponto de supostamente reproduzir a maquilhagem usada na época a partir de amostras da maquilhagem original estudadas em laboratório. Vemos aqui um realismo estranho para um filme de época, especialmente um tão longe do realismo social ou mesmo do miserabilismo Dickensiano. É como se a linguagem usual de Leigh não tivesse qualquer problema em se adaptar à estruturação do filme biográfico de época, que, apesar de tudo, é uma denominação bem apta a este filme. A ênfase na recriação de uma realidade contemporânea, muitas vezes bizarra ou grotesca, é aqui transposta a uma meticulosa e quase obsessiva recriação histórica, até passando ao trabalho dos atores, que seguindo o método de improvisação preferido por Leigh, se restringiram a trabalhar sobre factos históricos referentes às suas personagens.

 Ao longo do filme, o mundo vitoriano é mostrada como uma realidade tão material e presente como uma família de classe baixa na Inglaterra dos nossos dias, sendo que mesmo assim existe um curioso olhar da parte de Leigh, que vai colocando certos momentos ao longo do filme que parecem mostrar uma sociedade isolada e em que a mudança vai ocorrendo em soluços maioritariamente ignorados pelas suas personagens. O telefone aparece como uma invenção, uma novidade bizarra, a caneta com depósito de tinta é discutida num diálogo, a exposição sobre o Japão que dá a Gilbert (Jim Broadbent) a ideia de criar um espetáculo situado no Japão Feudal, apenas salienta esta estranha distanciação de uma inteira sociedade. Um mundo em auto isolamento e cheio de valores imperialistas e colonialistas, que se vão revelando em passagens do filme. Também uma fissura invariável entre a cultura continental e a cultura inglesa se vai revelando pelo filme, sendo particularmente notável na ambiciosa e frustrada figura de Sullivan (Allan Cordunner).

 Mas é relação dessa sociedade com os indivíduos envolvidos no processo criativo que realmente torna o filme no que é. Com este seu elenco, um dos melhores numa carreira cheia de formidáveis elencos, Leigh cria um retrato íntimo sobre o processo desta pequena comunidade da companhia teatral. Mas, para além disso, o retrato de Leigh não explora só o trabalho um tanto ou quanto superficial de Gilbert e Sullivan, mas também parece refletir sobre o seu próprio trabalho, especialmente quando observa a figura de Gilbert.

 Interpretado por Jim Broadbent no seu melhor trabalho com o realizador, Gilbert emerge como uma espécie de realizador dentro do filme, tentando chegar a uma espécie de verismo que não pode deixar de ser ridículo quando vamos vendo o espetáculo de artificialismo exótico que é o Mikado. Uma cena em que Gilbert leva um grupo de japoneses ao teatro para que as suas atrizes aprendam a “andar como japonesas”, revela a futilidade do verismo de Gilbert. Mas ao mesmo tempo, quando contrastando o ridículo dos ensaios e das intenções de Gilbert com o vislumbre do número musical final em toda a sua sonhadora opulência, o filme parece chegar a algo de sublime na sua apreciação sobre o processo tanto de Leigh como de Gilbert.

 Numa cena seguinte, Gilbert inventa um gesto que “vende” ao espetador como um gesto tradicional japonês, e ensaia uma cena com os seus atores, invariavelmente presos a um artificialismo dramático que tenta capturar o estilo do teatro da era vitoriana em Inglaterra. O autor do texto vai lembrando os atores das motivações durante a cena, orquestrando o artificial e insistindo num verismo estranho, um conflito criativo em forma humana e um comentário perspicaz de Leigh sobre o tema da realidade teatral.

 Mais que tendo simplesmente um grande trabalho de Broadbent, o filme contém uma gloriosa coleção de alguns dos melhores atores com quem Leigh já trabalhou. Os filmes do criador inglês são imensamente focados no trabalho de ator, requerendo uma criação pormenorizada de personagens distintas muitas vezes pintadas em pinceladas excêntricas mas não por isso menos eficazes no mundo realista de Leigh. O olhar do filme é ao mesmo tempo intimista e impassível tanto face ao ridículo da vida das suas figuras, como face ao sofrimento e melancolia que assombram muitos dos membros da companhia teatral.

 Perdoem-me por me perder em elogios à equipa do filme, mas tenho de salientar o trabalho de alguns membros do elenco como Shirley Henderson como uma das atrizes da companhia, uma visão de fragilidade resiliente, uma alcoólica cuja tragédia é apenas vislumbrada em momentos fugazes mas que apunhala o tom muitas vezes cómico do filme, lembrando o espetador de todas as vidas que se estendem para além do olhar do filme. O final do filme pertence-lhe, revisitando a ligação entre a realidade da companhia e da sociedade com a realidade do palco. Aqui vemos as letras de uma das canções do espetáculo serem ditas num momento de autorreflexão da atriz no seu camarim, sendo que Leigh corta para o número a ser interpretado em palco, terminando o filme com o artificialismo surpreendentemente tocante da rendição de “The Sun Whose Rays Are All Ablaze.

 Lesley Manville, uma regular dos filmes de Leigh, aprece como a mulher de Gilbert, as suas cenas com Broadbent nunca exploram abertamente o casamento dos dois, mas na sua figura minguante vemos as marcas de uma relação complexa à qual o nosso olhar não tem completo acesso. Timothy Spall, apesar de uma voz um pouco fraca para o seu trabalho musical no filme, mostra aqui uma figura de um ator orgulhoso, desejoso de glórias passadas e resignado à sua situação atual. Martin Savage como uma das principais estrelas do elenco da companhia dentro do filme exibe-se como uma figura do ator pomposo e orgulhoso, um toxicodependente errático com a fachada de um ator maniento e maravilhosamente excêntrico. A presença e o trabalho de Allan Cordunner é também indispensável na sua interpretação de Sullivan, que vai partilhando o maior protagonismo do filme juntamente com Gilbert.

 O momento mais glorioso deste filme não depende porém, do trabalho coletivo do elenco, mas sim do génio de Leigh na sua realização. Falo de uma cena em que vemos Gilbert brincar com uma espada japonesa que o vimos comprar em cenas anteriores. Ele imita o comportamento que viu anteriormente, tal como as suas direções futuras aos seus atores ele baseia esta interpretação na mimese do que ele acha ser “a maneira japonesa”. Há aqui uma jovialidade e um desprendimento luminosos num filme tão repleto de cenas de repressivos comportamentos sociais. A norma vitoriana não tem lugar nesta sala com Gilbert neste particular momento. A câmara aproxima-se de um Gilbert que parece pensar, parece ter tido uma ideia no seu desprendimento, na sua brincadeira, e o ator em cena olha diretamente para a câmara como que partilhando a luz da sua epifania com a audiência que o observa. Leigh corta para uma cena do espetáculo final, completamente montado no palco. Este é, para mim o mais belo momento no filme de Leigh, um momento em que o artificial teatral, a ingenuidade de Gilbert e Sullivan e do próprio realizador, a recriação da sociedade vitoriana e a própria condição do filme como uma obra cinemática se conjugam num momento de perfeição. O píncaro no que é talvez, o mais facilmente apreciado dos filmes de Leigh, e que é, ao mesmo tempo e de modo surpreendente, o seu mais ambicioso e revelador trabalho.


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