Enquanto via o novo
filme de Jonathan Demme, Ricki and the
Flash, havia outro filme do mesmo realizador que não saía da minha cabeça.
Falo de Rachel Getting Married, outro
drama familiar, em parte centrado à volta do regresso de um membro ausente de
uma família, trauma do passado e um casamento. Ao contrário do filme anterior, Ricki não é um drama observacional e
realista de uma família estilhaçada, mas sim um star vehicle construído à volta da figura popularmente idolatrada
de Meryl Streep.
A atriz aqui
interpreta Ricki Rendazzo, outrora Linda Brummell, a vocalista de uma banda
rock em Los Angeles cujo sucesso se parece resumir a algumas atuações regulares
num diminuto e modesto bar. O filme trata principalmente da visita de Ricki à
sua família, depois de ser chamada pelo ex-marido, Pete (Kevin Kline), devido à
depressão da filha, Julie (Mamie Gummer), que acabou de ser abandonada pelo
marido. A protagonista havia deixado a sua família há anos, estando ausente da
maioria da vida dos filhos em ordem de perseguir o seu sonho de se tornar uma
estrela de rock, e essa escolha atormenta cada segundo do filme. A reunião
familiar está longe de ser idílica, envolvendo também os dois filhos de Ricki,
Adam (Nick Westrate), que é gay e hostil perante a presença da mãe e das suas
opiniões conservadoras, e Josh (Sebastian Stan), cujo casamento com Emily
(Hailey Gates) ocupa o último ato do filme e cuja relação de educada
distanciação da mãe consegue ser mais dolorosa que qualquer acusação ressentida
dos outros membros da família. Pelo caminho também encontramos a mulher de
Pete, Maureen (Audra McDonald), que parece um pico de calma e perfeição
doméstica face ao caos e amargura de Ricki, e o namorado e membro da banda de
Ricki, Greg (Rick Springfield), cuja relação com a protagonista funciona como
um constante conflito secundário no enredo à volta de Ricki.
Terão reparado que,
mais que descrever um enredo, limitei-me basicamente a listar uma coleção de
personagens. O que me parece apto ao filme, que mais que guiado por qualquer
narrativa ou enredo, parece ser uma oportunidade para olharmos este grupo de
pessoas chocar entre si e resolver e complicar os seus conflitos e relações ao
longo de 101 minutos de filme. Mas a verdadeira estrela do filme é Ricki, ou
melhor dizendo, Streep.
O seu trabalho é
exímio sem revelar os floreados técnicos que por vezes tendem a tornar as suas
contribuições em experiências performativas a acontecer separadamente dos seus
filmes. Há uma leveza refrescante no trabalho da atriz, que mesmo assim injeta
uma resignação e amargura formidável na personagem de Ricki. Sempre de voz
rouca, e uma atitude entre o constante desafio e uma solidão sintomática, o
filme pertence à atriz e à personagem, por vezes para o detrimento da obra
final que sacrifica o resto do seu foco para simplesmente parar e observar o
trabalho de Meryl Streep, aqui num raro registo de comédia relativamente leve.
O resto do elenco é
também louvável, se bem que todos sofrem da mesma crónica falta de atenção do realizador
que apenas parece ter olhos e tempo para venerar a sua atriz principal. O que
nunca é mais notório e impossível de ignorar que no número estonteante de
momentos musicais que enchem o filme, muitos deles mostrados em sequência e sem
grandes diferenças entre si. E este problema estende-se a quase todos os
aspetos do filme.
Por exemplo, no texto
de Diablo Cody existe uma variedade de correntes bastante negras e deprimentes
que correm por entre a comédia familiar. Uma visão sobre as diferenças entre
classes económicas é bastante visível, especialmente no modo como parece
indicar que, por vezes, mais do que um passado de ressentimentos e abandonos,
as diferenças económicas e sociais entre Ricki, que acabou de declarar
falência, e o resto da sua abastada família são a principal fonte de
incompreensão e distanciamento. Mas também o modo como é fortemente sugerido
que apesar de talento, que o filme vai reforçando a partir das cenas musicais e
reações dentro do filme, trabalho árduo, que nunca parece ser questionado, e
sacrifício pessoal foi impossível para Ricki alcançar qualquer módico sucesso,
algo que parece intrinsecamente desafiar o sonho americano em que tantas destas
narrativas semelhantes se apoiam. Mas nada disto é suficientemente explorado e,
sem a crueza e caos controlado de Rachel
Getting Married, o aspeto e tom polidos e normalizados do filme e sua
realização acabam por sufocar qualquer aspeto mais complexo ou idiossincrático
do trabalho de Cody.
Também as personagens sofrem o mesmo destino que os temas do
filme, sendo que figuras como os dois filhos de Ricki nunca são suficientemente
explorados. O mesmo acontece com a filha, que apesar da relevância que tem na
estrutura do filme, parece ser esquecida na segunda metade do filme, e que
devido a isto nunca se torna mais complexa ou credível que a caricatura
gritante de uma mulher deprimida, com que a atriz e o filme ficam reduzidos. O
que poderia ser interessante, revelando pela reticência, a distância abismal
entre os membros da família fruto de um passado dramático que não nos é
completamente revelado. E esse talvez seja o único aspeto bem controlado por
Demme, o facto de que observamos um capítulo tardio neste drama familiar, sendo
que a tragédia se encontra permanentemente fora do nosso olhar nas sombras de
um passado cujo peso sobre as personagens é constante.
Há uma melancolia
perseverantemente presente durante todo o filme, que é apenas levantada nos
momentos finais, aonde Cody, Demme e o elenco parecem finalmente celebrar o
lado mais idiossincrático do filme e da família no seu centro, criando um
exuberante final musical com coreografias improváveis e um rejubilo coletivo
que, apesar de parecer um pouco simplista e irracional, é uma explosão de
energia e alegria. E essa celebração final apenas reforça a amargura do resto
do filme, deixando a audiência numa surpreendente nota agridoce, tão simples
quão secretamente complexa.
O filme é como um
barril de pólvora cujo atilho está em constante perigo de combustão espontânea.
Há uma tensão e melancolia que cortam o humor prometendo uma possível explosão
a qualquer momento, mas essa explosão nunca vem. O filme está sempre no limiar
de ser algo verdadeiramente imperdível, maturo e complexo, mas o caos
estrutural e o trabalho desleixado de Demme na sua veneração a Streep vão
traindo o filme. Mesmo assim, é um filme inequivocamente agradável cortado com
por momentos curiosamente acídicos, que será decerto um delicioso divertimento
para qualquer fã devoto da atriz principal que aqui oferece um dos seus
melhores trabalhos em anos, sob os olhos de um realizador que parece estar
disposto a sacrificar todo o seu filme para lhe dar mais oportunidades de
brilhar.
Sem comentários:
Enviar um comentário