terça-feira, 8 de setembro de 2015

RICKI AND THE FLASH (2015) de Jonathan Demme



 Enquanto via o novo filme de Jonathan Demme, Ricki and the Flash, havia outro filme do mesmo realizador que não saía da minha cabeça. Falo de Rachel Getting Married, outro drama familiar, em parte centrado à volta do regresso de um membro ausente de uma família, trauma do passado e um casamento. Ao contrário do filme anterior, Ricki não é um drama observacional e realista de uma família estilhaçada, mas sim um star vehicle construído à volta da figura popularmente idolatrada de Meryl Streep.

 A atriz aqui interpreta Ricki Rendazzo, outrora Linda Brummell, a vocalista de uma banda rock em Los Angeles cujo sucesso se parece resumir a algumas atuações regulares num diminuto e modesto bar. O filme trata principalmente da visita de Ricki à sua família, depois de ser chamada pelo ex-marido, Pete (Kevin Kline), devido à depressão da filha, Julie (Mamie Gummer), que acabou de ser abandonada pelo marido. A protagonista havia deixado a sua família há anos, estando ausente da maioria da vida dos filhos em ordem de perseguir o seu sonho de se tornar uma estrela de rock, e essa escolha atormenta cada segundo do filme. A reunião familiar está longe de ser idílica, envolvendo também os dois filhos de Ricki, Adam (Nick Westrate), que é gay e hostil perante a presença da mãe e das suas opiniões conservadoras, e Josh (Sebastian Stan), cujo casamento com Emily (Hailey Gates) ocupa o último ato do filme e cuja relação de educada distanciação da mãe consegue ser mais dolorosa que qualquer acusação ressentida dos outros membros da família. Pelo caminho também encontramos a mulher de Pete, Maureen (Audra McDonald), que parece um pico de calma e perfeição doméstica face ao caos e amargura de Ricki, e o namorado e membro da banda de Ricki, Greg (Rick Springfield), cuja relação com a protagonista funciona como um constante conflito secundário no enredo à volta de Ricki.

 Terão reparado que, mais que descrever um enredo, limitei-me basicamente a listar uma coleção de personagens. O que me parece apto ao filme, que mais que guiado por qualquer narrativa ou enredo, parece ser uma oportunidade para olharmos este grupo de pessoas chocar entre si e resolver e complicar os seus conflitos e relações ao longo de 101 minutos de filme. Mas a verdadeira estrela do filme é Ricki, ou melhor dizendo, Streep.

 O seu trabalho é exímio sem revelar os floreados técnicos que por vezes tendem a tornar as suas contribuições em experiências performativas a acontecer separadamente dos seus filmes. Há uma leveza refrescante no trabalho da atriz, que mesmo assim injeta uma resignação e amargura formidável na personagem de Ricki. Sempre de voz rouca, e uma atitude entre o constante desafio e uma solidão sintomática, o filme pertence à atriz e à personagem, por vezes para o detrimento da obra final que sacrifica o resto do seu foco para simplesmente parar e observar o trabalho de Meryl Streep, aqui num raro registo de comédia relativamente leve.

  O resto do elenco é também louvável, se bem que todos sofrem da mesma crónica falta de atenção do realizador que apenas parece ter olhos e tempo para venerar a sua atriz principal. O que nunca é mais notório e impossível de ignorar que no número estonteante de momentos musicais que enchem o filme, muitos deles mostrados em sequência e sem grandes diferenças entre si. E este problema estende-se a quase todos os aspetos do filme.

 Por exemplo, no texto de Diablo Cody existe uma variedade de correntes bastante negras e deprimentes que correm por entre a comédia familiar. Uma visão sobre as diferenças entre classes económicas é bastante visível, especialmente no modo como parece indicar que, por vezes, mais do que um passado de ressentimentos e abandonos, as diferenças económicas e sociais entre Ricki, que acabou de declarar falência, e o resto da sua abastada família são a principal fonte de incompreensão e distanciamento. Mas também o modo como é fortemente sugerido que apesar de talento, que o filme vai reforçando a partir das cenas musicais e reações dentro do filme, trabalho árduo, que nunca parece ser questionado, e sacrifício pessoal foi impossível para Ricki alcançar qualquer módico sucesso, algo que parece intrinsecamente desafiar o sonho americano em que tantas destas narrativas semelhantes se apoiam. Mas nada disto é suficientemente explorado e, sem a crueza e caos controlado de Rachel Getting Married, o aspeto e tom polidos e normalizados do filme e sua realização acabam por sufocar qualquer aspeto mais complexo ou idiossincrático do trabalho de Cody.

Também as personagens sofrem o mesmo destino que os temas do filme, sendo que figuras como os dois filhos de Ricki nunca são suficientemente explorados. O mesmo acontece com a filha, que apesar da relevância que tem na estrutura do filme, parece ser esquecida na segunda metade do filme, e que devido a isto nunca se torna mais complexa ou credível que a caricatura gritante de uma mulher deprimida, com que a atriz e o filme ficam reduzidos. O que poderia ser interessante, revelando pela reticência, a distância abismal entre os membros da família fruto de um passado dramático que não nos é completamente revelado. E esse talvez seja o único aspeto bem controlado por Demme, o facto de que observamos um capítulo tardio neste drama familiar, sendo que a tragédia se encontra permanentemente fora do nosso olhar nas sombras de um passado cujo peso sobre as personagens é constante.

 Há uma melancolia perseverantemente presente durante todo o filme, que é apenas levantada nos momentos finais, aonde Cody, Demme e o elenco parecem finalmente celebrar o lado mais idiossincrático do filme e da família no seu centro, criando um exuberante final musical com coreografias improváveis e um rejubilo coletivo que, apesar de parecer um pouco simplista e irracional, é uma explosão de energia e alegria. E essa celebração final apenas reforça a amargura do resto do filme, deixando a audiência numa surpreendente nota agridoce, tão simples quão secretamente complexa.

  O filme é como um barril de pólvora cujo atilho está em constante perigo de combustão espontânea. Há uma tensão e melancolia que cortam o humor prometendo uma possível explosão a qualquer momento, mas essa explosão nunca vem. O filme está sempre no limiar de ser algo verdadeiramente imperdível, maturo e complexo, mas o caos estrutural e o trabalho desleixado de Demme na sua veneração a Streep vão traindo o filme. Mesmo assim, é um filme inequivocamente agradável cortado com por momentos curiosamente acídicos, que será decerto um delicioso divertimento para qualquer fã devoto da atriz principal que aqui oferece um dos seus melhores trabalhos em anos, sob os olhos de um realizador que parece estar disposto a sacrificar todo o seu filme para lhe dar mais oportunidades de brilhar.

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