quarta-feira, 2 de setembro de 2015

A CLOCKWORK ORANGE (1971) de Stanley Kubrick


 É absolutamente impossível, pelo menos para mim, separar A Clockwork Orange de Stanley Kubrick da sua fama, do seu legado e do seu papel na cultura cinematográfica contemporânea. Quando uma pessoa, neste momento presente, vê esta obra seminal de Kubrick pela primeira vez, é verdadeiramente uma impossibilidade não levar consigo uma enorme carga de expetativas e ideias preformadas. É um dos mais controversos filmes já feitos, e, por óbvia consequência, um dos mais discutidos, dissecados, analisados e infames obras do cinema mundial. Há quem acuse o filme de ser pornográfico e de glorificar a violência, quem o acuse de simpatizar com o horror animalesco e sociopata que é o seu protagonistas, Alex (Malcolm McDowell), há quem acuse o filme de conservadorismo moral e político, há quem o acuse de vazio e esteticismos vácuos e superficiais, etc. E penso que todos sabemos que de tal infâmia só nasce uma maior sede por se ver tal obra, uma sede que alimentou o sucesso do filme desde a sua estreia em 1971 e que ainda o mantém indubitavelmente vivo e até relevante nos dias de hoje.

  Um dos mais populares argumentos contra o filme devém da sua representação de atos de vandalismo, amoralidade e violência sexual de um modo que torna tudo isto uma fonte de entretenimento. Acusam Alex de ser uma figura simpatética, uma figura de rebeldia jovem que se torna uma imagem apelativa a muitos espetadores, o que certamente é comprovado em parte pela popularidade do filme entre adolescentes do sexo masculino com algumas pretensões intelectuais.

 Para contrariar este específico argumento há apenas que mencionar o nome de Kubrick. O que eu quero dizer com tal frase é que o trabalho de Kubrick por muito estilístico e formal que seja nunca me parece cair na glorificação para entretenimento da violência. Bem pelo contrário, eu diria mesmo que existe um aborrecimento distante e formal no olhar do cineasta. Os acontecimentos violentos são tornados eventos estéticos, as cenas de violência sexual são muitas vezes olhadas de modo distante e pouco interessado no erotismo que poderia ser retirado da violência. Uma cena de uma menage a trois, é mostrada com a velocidade aumentada e acompanhada por música clássica tornada cacofonia eletrónica. A câmara não se move e os corpos estão longe de serem eróticos ou sensuais sob o olhar quase clinico com que os vemos. O sexo e a violência, longe de serem aliciantes tornam-se frios e distantes, exercícios em forma e ritmo, em que o ser humano e os seus prazeres viscerais não têm lugar.

 E essa negação de prazer é algo que a mim é inescapável no filme, que é, talvez, um dos mais difíceis filmes de rever, sendo uma constante fonte de desconforto para o espetador que ora se sente desconfortável por assistir aos horrores amorais do protagonista ora se tem de confrontar com o facto de se estar a entreter com tais atos. O olhar de Alex no primeiro plano do filme, diretamente para a audiência, não é tanto um desafio como um sorriso de boas-vindas que lembra a cumplicidade horripilante entre os assassinos e os espetadores em Funny Games de Michael Haneke. Tal como nesse filme, Kubrick parece olhar como seus principais alvos a sociedade atual, mas principalmente a audiência que vai ver o seu filme. Uma audiência que muitas vezes é aliciada pela promessa de choque e sexualidade explícita e que se vê confrontada com um dos mais agressivamente formais e glaciais filmes do mainstream ocidental. Com 138 minutos cheios de cenas de diálogo compridas e densas e sequências que apenas mostram jogos de forma e estrutura e pouco mais, o filme está bem longe de ser um filme de fácil entretenimento, ou, para ser sincero, de qualquer tipo de entretenimento.

 Em poucos filmes do realizador, a sua técnica se mostra tão fulcral no que diz respeito à apreciação do filme. O uso de grandes angulares e composições cheias de headspace, o filme mostra uma visão desequilibrada e meio distorcida do mundo, uma estranheza tão ocasionalmente bela como doentia. O uso de música e de montagem em acompanhamento da música também é fulcral. Não há grande noção de espontaneidade no filme, todos os momentos transpiram de um controle absoluto e implacável, como se o filme fosse um ballet preciso de violência e perversão.

 Certos momentos do filme chegam a tais níveis de estilização que parecem assemelhar-se a uma espécie de euforia monstruosa e sanguinária tornada pop art. A morte de uma mulher num quarto cheio de arte erótica é mostrada como uma explosão repentina de flashes de pinturas. No entanto, tais elementos de exuberância estilística parecem ir-se tornando cada vez mais escassos ao longo do filme. Kubrick parece aborrecer-se com o seu filme, ou então, depois de ter ganho o interesse nem que seja formal da sua audiência a partir do seu tratamento da violência, o realizador desinteressado simplesmente castiga os espetadores restantes com o que ainda sobra do filme.

  O design do filme é uma maravilha tão fenomenal como o controle sobre a câmara é absoluto, criando uma visão de um mundo do futuro sem alterar muito aos anos setenta. Uma das coisas que é impossível de ignorar é a obsessão do filme com arte, quer seja música, cinema, literatura, pintura ou escultura. Essa obsessão é especialmente aparente no modo como a cenografia injeta pinturas, especialmente pinturas eróticas em posições de destaque nos interiores do filme.
 O filme explora grandemente como a sociedade horrenda do filme aprecia a arte, sendo que esta se torna meio de controlo violento na transformação de Alex. Os uniformes do gangue de Alex parecem saídos de uma passerelle de moda avant-garde, criaturas desumanas e exageradamente masculinas e violentas na sua apresentação. A primeira cena de uma violação é mostrada num teatro em ruinas. Singin’ in the Rain, uma apoteose de euforia e alegria em cinema é tornada num macabro acompanhamento de outra brutal cena de violência sexual.

 A arte e o modo como as pessoas a apreciam tornado objeto de poder sobre o outro. A violência e o abuso de poder sobre outro ser humano são temas inescapáveis no filme, tanto no que diz respeito a Alex como n o que diz respeito a toda a sociedade dentro do filme cujo comportamento lembra um desumano mecanismo bem oleado, onde a violência parece ser a única maneira de se obter uma fachada de ordem.

 Mas, apesar de todo este desconforto e repulsa virtuosamente concretizados, tenho de admitir que em toda a sua tempestade de niilismo, o filme é uma comédia negra acima de tudo. Uma sátira decididamente inglesa sobre a podridão de uma sociedade, seus indivíduos e sobre a audiência que vê o filme. É muitas vezes difícil encontrar o humor, que mais facilmente causa nojo ou estremecimentos que risos, mas a principal razão para ele ser algo inegável no filme é o trabalho fascinante de McDowell. O ator aqui tornado agente de caos e violência, tem um carisma estranhíssimo que acompanha os seus comportamentos e expressões reptilianas e desumanas, conseguindo um registo de comédia poucas vezes por mim visto. Talvez seja possível para alguém encontrar algo de atraente no trabalho de McDowell mas para mim a chave do seu sucesso está mesmo na repulsa que ele consegue conjurar por entre o seu carisma. Mais que ser humano, Alex é um constante monstro, frio e olhado à distância por uma câmara desinteressada na sua complexidade e mais fascinada com o fenómeno estético da sua existência. Ele, talvez, seja um bom argumento para pessoas que dizem achar que o filme glorifica e torna atraente a figura de Alex, sendo que eu não consigo ver isso, mas não nego que tal aconteça, tal como não percebo as pessoas que fetichizam crocs mas admito a sua existência neste mundo.

 Longe de ser um filme amoral, eu penso que o filme, ocasionalmente, demonstra um moralismo acídico que para mim consegue ser mais repelente que a suposta exploração gratuita que muita gente acusa o filme de conter. No entanto, quaisquer reservas que as ideologias do filme me possam levantar, o simples facto deste filme, este opulente exercício intelectual e formal, ter resultado em décadas de análise e em tantos pontos de vista diferentes (basta pesquisar sobre este filme para nos apercebermos da variedade de opiniões dispares) para eu não conseguir, de todo, negar o seu valor.

 A Clockwork Orange é um filme desconfortável e muitas vezes um castigo intencional para com a sua audiência, mas é também uma das obras mais fascinantes dos anos setenta, essa década a rebentar com desenvolvimentos cinemáticos, e talvez um dos filmes mais deliciosamente controversos na história de todo o meio. Com tal legado, tenho de admitir que nunca diria que gosto do filme, mas sim que, talvez, é uma das obras mais importantes alguma vez feitas nem que seja no seu despertar de discussão e que não questiono a legitimidade das infindáveis listas dos melhores filmes de sempre que incluem este filme nas suas escolhas. Não descrevi aqui o enredo do filme em parte pelo estatuto de absoluto clássico que o filme tem, assim como pelo facto de que falo para pessoas que já viram o filme. Não tenho grandes desejos de influenciar pessoas a passarem pelo castigo niilista que Kubrick preparou para a sua audiência sobre a forma de uma comédia negra num futuro demasiado perto da realidade do filme para confortavelmente denominar de ficção-científica.

 Penso que Kubrick criou o filme que intencionou fazer, trazendo uma perfeição técnica e formal que, apesar de difícil de apreciar e desfrutar, é indubitavelmente magistral. As suas ideias são questionáveis e absolutamente discutíveis, mas há algo de imperdível e fascinante em A Clockwork Orange como se fosse o mais perfeitamente coreografado e sanguinário desastre de automóvel já visto. É impossível desviar o olhar por muito horrível que seja o que estamos a ver e por muito horrível que nos sintamos por olhar tal catástrofe.

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