Numa das imagens mais
marcantes do primeiro filme de Kim Farrant, vemos uma paisagem desértica que
enche toda a composição com uma mistura quase abstrata de areia dourada e
sombras contrastantes rasgando a areia. Por esta paisagem vemos uma espécie de
caminho traçado nas dunas, uma trilha irregular que ondula pelo deserto como se
de um enorme serpente se tratasse. Numa imagem, o deserto transmuta-se numa
besta nascida do deserto australiano.
É neste mundo, em que
a natureza se apresenta como uma ameaça omnipresente, que Lily (Maddison Brown)
e Tommy Parker (Nicholas Hamilton) desaparecem uma noite. Ambos são os filhos
de Catherine (Nicole Kidman) e Matthew Parker (Joseph Fiennes), compondo uma
unidade familiar que, pelo início do filme, acabaram de se mudar para Nathgari,
uma cidade remota rodeada pelo deserto que se expande imparável até ao
horizonte. No passado da família, como é típico deste tipo de filme, parecem
existir vários segredos, corroendo e infetando cada interação, cada momento que
com eles passamos.
Apesar desta premissa
narrativa bastante comum, o filme desenrola o seu enredo num modo ambíguo e
vago, criando um filtro de opacidade inescrutável por cima das figuras tanto da
família como da comunidade. O final do filme acompanha este tipo de discurso
quase evasivo, pelo que desaconselho o filme a quem quer que requeira
explicações e resoluções definitivas para os seus filmes. Se tentarmos comparar
Strangerland com outros filmes, é
seguro dizer que está mais próximo de um Picnic
at Hanging Rock que de um Prisoners.
Para muitos membros
da audiência, esta insistência em ambiguidade pode destruir a experiência do
filme, que se apoia mais em paisagens quem em diálogos e cenas de exposição
para fazer o seu impacto no público. Sendo um filme narrativo apoiado em
personagens, isto é particularmente desconcertante quando as motivações dos
humanos que passam pelo filme nos são persistentemente negadas, criando um
filme em que os comportamentos, especialmente dos pais, parecem manifestar em
comportamentos inexplicáveis. Se a família se encontra num mundo habitado por
estranhos e ameaças, então também é assim o olhar da audiência sobre a trama do
filme.
Mas voltando à
comparação com Picnic at Hanging Rock.
Em ambos os filmes, um dos temas principais é a sexualidade feminina, mas
enquanto o outro filme se desenrolava sobre a pátina do filme de época, este
filme não tem tal filtro, sendo muito mais óbvio nas suas intenções. A filha e
as suas escapadelas sexuais consomem todo o filme, tornando o seu pai numa
figura errática e paranoica, a comunidade num júri silenciosamente moralista, e
a sua mãe numa figura que se vai perdendo a si própria na sua tormenta pessoal.
Num dos momentos mais
impactantes do filme, observamos Nicole Kidman emergir nua do deserto,
caminhando pela cidade sob o olhar horrorizado, curioso e lascivo dos seus
habitantes. Ninguém a acode, até o seu marido aparecer e a cobrir com a sua
camisa e guiar para fora dos olhares dos estranhos. A única pessoa que mesmo
assim parece demonstrar alguma preocupação com a mulher desnuda e confusa é
Coreen (Lisa Flanagen), uma mulher de origem aborígene. Nesta sociedade patriarcal,
moralmente podre, a única pessoa que parece mostrar compaixão para com a vítima
feminina é uma descendente dos nativos quase completamente exterminados pela
colonização do passado. A perspetiva feminina da realizadora é particularmente
bem-vinda em cenas como esta, nunca objetificando o corpo da atriz ou desviando
o olhar da sua condição num mundo insistente em vitimizar as suas mulheres.
Mais do que se
envolver na trama do desaparecimento como outros policiais, o filme parece mais
interessado em virar o seu olhar para a Austrália, tanto na sua condição de
terra, de continente natural, como na sua condição de nação, de sociedade.
Grandes ambições para um primeiro filme, que acabam, infelizmente, por causar
alguns problemas ao filme. O ritmo da obra é particularmente problemático, e o
desenvolvimento do enredo com a sua insistência em ambiguidades é digna de
admiração e louvor, mas não se consegue evitar a impressão de que o filme
necessitava de uma mão mais delicada e segura na sua execução.
Em relação ao seu
elenco, a impressão que deixam é forte na generalidade, sendo que Kidman é um
particular píncaro. Em Catherine, Kidman consegue criar alguém de uma
psicologia misteriosa e opaca, mas ao mesmo tempo visceral no seu desespero,
confusão e conflito. A sugestão de um passado promíscuo é particularmente
fascinante no trabalho de Kidman, mesmo nos seus momentos mais excessivos como
quando enverga as roupas da sua filha, numa desconfortável cena de sedução. Os
contrastes, contradições e ambiguidades do texto conseguem fazer sentido em
Catherine devido ao trabalho da atriz. O mesmo não se pode dizer de Joseph
Fiennes que se perde por entre as demandas do filme, oscilando entre quase
vilania e sofrimento paterno, sem a delicadeza ou mestria do trabalho da sua coprotagonista.
Isto deixa o filme particularmente desequilibrado, apesar do, já mencionado, bom
trabalho do resto do elenco.
Como primeiro
trabalho da sua realizadora, o filme deixa-me expectante pelo seu trabalho
futuro. Aqui, o seu trabalho a um nível formal é impressionante para uma
estreante, criando um ambiente constantemente árido e sufocante, quase
personificando a paisagem e tornando os interiores claustrofóbicos, não
negando, no entanto, a beleza do ambiente circundante. Também é louvável o seu
uso de som na criação de tensão ao longo do filme. Tenho assim esperanças que o
seu próximo trabalho seja algo mais bem conseguido que Strangerland, sem, no entanto, negar que esta sua estreia é, já
por si, uma obra com uma perspetiva interessante e chamativa.
Sem comentários:
Enviar um comentário