sexta-feira, 28 de agosto de 2015

BANDE DE FILLES (2014) de Céline Sciamma



 Quando, recentemente, escrevi sobre o primeiro filme de Xavier Dolan, apontei como o seu estilo imaturo permitia ao filme existir como uma obra sobre a adolescência que vibrava com a mesma intensidade da sua personagem, um filme sobre um adolescente feito por um adolescente. Com o seu mais recente filme, a realizadora Céline Sciamma demostra uma abordagem bastante distinta. Aqui não existe volatilidade estilista nem ritmos erráticos, havendo, ao invés, uma maturidade e segurança que apenas poderiam existir no trabalho de uma criadora com uma certa maturidade estilística. Isto não impede o seu trabalho de ser um bom filme, sendo que ambas estas visões são obviamente válidas, oferecendo diferentes possibilidades.

 A protagonista do filme é Marieme (Karidja Touré), uma jovem afro-francesa de uma família de classe baixa. Ela vive com a sua irmã mais nova e com o irmão mais velho, muitas vezes agressivo e abusivo. A sua mãe é uma figura muito ausente do filme, aparecendo no seu trabalho nas limpezas, e pouco mais. O filme vai seguindo Marieme, especialmente no que diz respeito à sua relação com um grupo de raparigas que um dia a convida para irem a um centro comercial juntas. O gangue no centro do filme é liderado por Lady (Assa Sylla) e passam os seus dias a roubar, beber, a provocar lutas, e a se divertirem, gastando o dinheiro que vão acumulando com as suas atividades. Elas vestem-se de cabedal e joias baratas, parecem inspirar-se nas estrelas pop americanas e criticam o modo como todos os outros se vestem. Sob o olhar de Marieme, batizada de Vic por Lady, vemos a ideia sedutora de pertencer a um grupo assim.

 Pelo filme vemos Vic ou Marieme, ganhar relevância no grupo, desenvolver uma relação romântica com um amigo do irmão e progressivamente ir-se afundando no mundo das drogas. Mais do que julgar as ações da sua protagonista, o filme vai observando Marieme sem grandes moralismos, vendo a sua confusão e juventude a uma distância respeitosa e criando uma enorme atmosfera de empatia. Há até uma certa atmosfera de celebração, mesmo quando o filme se torna particularmente violento e até desconfortável. O filme é uma busca, uma procura, um caminho com um destino incerto e talvez inexistente. Mais do que procurar uma conclusão, o filme parece procurar a confusão e a reflexão da sua protagonista, evitando muitos clichés usuais de tais narrativas adolescentes.

 Um dos melhores aspetos do filme é o modo como demonstra a necessidade de Marieme de se integrar no grupo de raparigas. Há algo de confuso e perdido na figura da jovem protagonista, como se estivesse numa constante procura por um lugar, por uma identidade. Ao longo do filme essa fonte de identidade, de propósito, vai-se alterando, mas inicialmente, quando se começa a tornar parte ativa do gangue, o olhar da realizadora é particularmente exímio. Há algo de sedutor e atrativo na pertença, na aceitação dos pares e isso é magnificamente exposto pelo filme. Numa das mais belas cenas do filme, a música de Rihana acompanha as raparigas enquanto dançam num quarto de hotel que pagaram com dinheiro roubado. A cena começa abruptamente num grande plano de Lady, como se estivéssemos, de repente, num videoclip, mas à medida que nos afastamos vamos vendo quão maravilhosamente comum o momento pode ser, uma festa-de-pijama glorificada. Marieme começa por olhar o grupo separada da sua dança mas depressa as acompanha, juntando-se ao grupo. Fazendo parte dessa irmandade e tendo propósito e lugar.

 Nem todos os momentos do filme transparecem o génio da cena do quarto de hotel, mas o sentido de delicada observação de Marieme é omnipresente. Poucas vezes se vê uma sinergia tão potente entre uma personagem e um realizador. O filme é, formalmente, pouco original e simples, mas tem uma certa eficiência e clareza que lhe conferem uma certa elegância.

 As imagens têm um papel importantíssimo no filme, os figurinos e caracterização ajudam-nos a ver os modos como a protagonista vai criando a sua identidade, mudando a sua imagem. Primeiro para se assemelhar às outras raparigas, mas, mais tarde no filme, para se dessexualizar quando está a viver numa casa com dois homens. O modo como as personagens femininas se veste parece sempre balançar-se entre uma criança a brincar com roupas de adultos e um adulto a criar fachadas como armaduras para enfrentar o mundo. Durante algumas das cenas de maior violência do filme, o arrancar de uma peça de roupa a uma rapariga torna-se um troféu de guerra, e um corte de cabelo torna-se uma humilhação pública.

 Também a própria iluminação parece oscilar entre o naturalismo geral do filme e uma beleza interessantemente simples encontrada no mundo da protagonista. Um quarto de hotel iluminado de azul, ou um beijo escondido nas sombras a ser intermitentemente iluminado por uma luz automática, são ambos momentos de uma beleza subtil e não ostentosa.

 A acompanhar o magnificamente intimista trabalho da realizadora, temos um elenco formidável, sendo que a atriz principal é particularmente louvável. A sua expressão é limitada, os seus olhos tendem a fugir ao olhar dos seus companheiros de cena, há uma constante insegurança e confusão interna no seu trabalho por muito assertiva que Marieme possa parecer. O sentido de irmandade e camaradagem entre as raparigas do gangue é particularmente sublime.


 O filme é fantástico, disso não tenho dúvidas, mas não sei se lhe chamaria ambicioso, pelo menos no que diz respeito à sua forma. Há algo de inequivocamente limitado na sua visão, algo de específico que é ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição. A clareza e direção firme da realização são louváveis, conseguindo apesar disto obter momentos emocionalmente fortes, sem nunca cair no melodrama ou dramatismo forçado, mas há uma certa falta de criatividade e originalidade que não me deixa completamente celebrar o filme. De qualquer modo, o seu olhar não moralista, direto, simpatético e gentilmente humano sobre a vida de uma jovem a tentar descobrir o seu lugar no mundo fazem do filme uma experiência que talvez não seja essencial e imperdível mas que é certamente interessante e portadora de uma delicada beleza.

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