Quando, recentemente,
escrevi sobre o primeiro filme de Xavier Dolan, apontei como o seu estilo
imaturo permitia ao filme existir como uma obra sobre a adolescência que
vibrava com a mesma intensidade da sua personagem, um filme sobre um
adolescente feito por um adolescente. Com o seu mais recente filme, a
realizadora Céline Sciamma demostra uma abordagem bastante distinta. Aqui não
existe volatilidade estilista nem ritmos erráticos, havendo, ao invés, uma
maturidade e segurança que apenas poderiam existir no trabalho de uma criadora
com uma certa maturidade estilística. Isto não impede o seu trabalho de ser um
bom filme, sendo que ambas estas visões são obviamente válidas, oferecendo
diferentes possibilidades.
A protagonista do
filme é Marieme (Karidja Touré), uma jovem afro-francesa de uma família de
classe baixa. Ela vive com a sua irmã mais nova e com o irmão mais velho,
muitas vezes agressivo e abusivo. A sua mãe é uma figura muito ausente do
filme, aparecendo no seu trabalho nas limpezas, e pouco mais. O filme vai
seguindo Marieme, especialmente no que diz respeito à sua relação com um grupo
de raparigas que um dia a convida para irem a um centro comercial juntas. O
gangue no centro do filme é liderado por Lady (Assa Sylla) e passam os seus
dias a roubar, beber, a provocar lutas, e a se divertirem, gastando o dinheiro
que vão acumulando com as suas atividades. Elas vestem-se de cabedal e joias
baratas, parecem inspirar-se nas estrelas pop americanas e criticam o modo como
todos os outros se vestem. Sob o olhar de Marieme, batizada de Vic por Lady,
vemos a ideia sedutora de pertencer a um grupo assim.
Pelo filme vemos Vic
ou Marieme, ganhar relevância no grupo, desenvolver uma relação romântica com
um amigo do irmão e progressivamente ir-se afundando no mundo das drogas. Mais
do que julgar as ações da sua protagonista, o filme vai observando Marieme sem
grandes moralismos, vendo a sua confusão e juventude a uma distância respeitosa
e criando uma enorme atmosfera de empatia. Há até uma certa atmosfera de
celebração, mesmo quando o filme se torna particularmente violento e até
desconfortável. O filme é uma busca, uma procura, um caminho com um destino
incerto e talvez inexistente. Mais do que procurar uma conclusão, o filme
parece procurar a confusão e a reflexão da sua protagonista, evitando muitos
clichés usuais de tais narrativas adolescentes.
Um dos melhores
aspetos do filme é o modo como demonstra a necessidade de Marieme de se
integrar no grupo de raparigas. Há algo de confuso e perdido na figura da jovem
protagonista, como se estivesse numa constante procura por um lugar, por uma
identidade. Ao longo do filme essa fonte de identidade, de propósito, vai-se
alterando, mas inicialmente, quando se começa a tornar parte ativa do gangue, o
olhar da realizadora é particularmente exímio. Há algo de sedutor e atrativo na
pertença, na aceitação dos pares e isso é magnificamente exposto pelo filme.
Numa das mais belas cenas do filme, a música de Rihana acompanha as raparigas
enquanto dançam num quarto de hotel que pagaram com dinheiro roubado. A cena
começa abruptamente num grande plano de Lady, como se estivéssemos, de repente,
num videoclip, mas à medida que nos
afastamos vamos vendo quão maravilhosamente comum o momento pode ser, uma
festa-de-pijama glorificada. Marieme começa por olhar o grupo separada da sua
dança mas depressa as acompanha, juntando-se ao grupo. Fazendo parte dessa
irmandade e tendo propósito e lugar.
Nem todos os momentos
do filme transparecem o génio da cena do quarto de hotel, mas o sentido de
delicada observação de Marieme é omnipresente. Poucas vezes se vê uma sinergia
tão potente entre uma personagem e um realizador. O filme é, formalmente, pouco
original e simples, mas tem uma certa eficiência e clareza que lhe conferem uma
certa elegância.
As imagens têm um
papel importantíssimo no filme, os figurinos e caracterização ajudam-nos a ver
os modos como a protagonista vai criando a sua identidade, mudando a sua
imagem. Primeiro para se assemelhar às outras raparigas, mas, mais tarde no
filme, para se dessexualizar quando está a viver numa casa com dois homens. O
modo como as personagens femininas se veste parece sempre balançar-se entre uma
criança a brincar com roupas de adultos e um adulto a criar fachadas como
armaduras para enfrentar o mundo. Durante algumas das cenas de maior violência
do filme, o arrancar de uma peça de roupa a uma rapariga torna-se um troféu de
guerra, e um corte de cabelo torna-se uma humilhação pública.
Também a própria
iluminação parece oscilar entre o naturalismo geral do filme e uma beleza
interessantemente simples encontrada no mundo da protagonista. Um quarto de
hotel iluminado de azul, ou um beijo escondido nas sombras a ser
intermitentemente iluminado por uma luz automática, são ambos momentos de uma
beleza subtil e não ostentosa.
A acompanhar o
magnificamente intimista trabalho da realizadora, temos um elenco formidável,
sendo que a atriz principal é particularmente louvável. A sua expressão é
limitada, os seus olhos tendem a fugir ao olhar dos seus companheiros de cena,
há uma constante insegurança e confusão interna no seu trabalho por muito
assertiva que Marieme possa parecer. O sentido de irmandade e camaradagem entre
as raparigas do gangue é particularmente sublime.
O filme é fantástico,
disso não tenho dúvidas, mas não sei se lhe chamaria ambicioso, pelo menos no que diz respeito à sua forma. Há algo de
inequivocamente limitado na sua visão, algo de específico que é ao mesmo tempo
uma bênção e uma maldição. A clareza e direção firme da realização são
louváveis, conseguindo apesar disto obter momentos emocionalmente fortes, sem
nunca cair no melodrama ou dramatismo forçado, mas há uma certa falta de
criatividade e originalidade que não me deixa completamente celebrar o filme.
De qualquer modo, o seu olhar não moralista, direto, simpatético e gentilmente
humano sobre a vida de uma jovem a tentar descobrir o seu lugar no mundo fazem
do filme uma experiência que talvez não seja essencial e imperdível mas que é
certamente interessante e portadora de uma delicada beleza.
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