Muitos filmes ao
longo da história do cinema, especialmente a partir da rebelde década de 50,
têm utilizado adolescentes como protagonistas, engendrando-se nas suas emoções
exasperantes e juventude, mas na maioria dos casos que vemos ao longo do
cinema, essa adolescência é vista por uma perspetiva definidamente adulta. Quer
seja nostalgia açucarada, quer seja reflexões melancólicas do passado, o que
for, é raro vermos um filme sobre adolescentes em que o filme em si parece
pulsar com a juventude dos seus sujeitos. Com o seu primeiro filme, Xavier
Dolan, ofereceu-nos uma obra em que isto acontece, um filme verdadeiramente
preso a uma perspetiva jovem, imatura, irrascível, e muitas vezes irritante e
histérica.
J’ai tué ma mère foi escrito quando Dolan tinha supostamente apenas
16 anos e foi filmado quando o realizador tinha apenas 19. Esta não é,
certamente, a obra de um realizador adulto e com um estilo cinemático
amadurecido. O guião é, alegadamente, uma parcial autobiografia de Dolan,
focando-se na relação entre Hubert (o próprio Xavier Dolan) e sua mãe, Chantale
(Anne Dorval), pegando em tudo o que se pode ver de dramatismo e histeria nos
seguintes filmes de Dolan e subindo o seu volume ao máximo.
O filme mostra-nos imediatamente os dois em conflito
passivo-agressivo durante o pequeno-almoço em sua casa (a casa da mãe de
Dolan). Vemos como Hubert parece olhar com desdém tudo o que a mãe faz, como
come, como age e como se veste em roupas exageradas e muitas vezes ridículas,
cheias de brilhantes, padrões animais, pelo, cortes provocadores, etc. Nada do
que a mãe faz parece estar certo, sendo que em contrapartida Chantale parece
também, tal como seu filho, estar em constante perigo de explodir a qualquer
instante, acabando por deixar o filho no meio da rua depois de uma discussão no
carro a caminho da escola, uma ação que se repete no filme. Ela acaba por
colocar o filho num colégio interno, levando a sua relação a um cisma até aí
inalcançado. Mesmo assim, ao longo do filme um fantasma de um passado feliz, em
que o divórcio dos pais ainda não tinha ocorrido e Hubert era uma criança, vai
assombrando o filme, manifestando-se no final.
Hubert e Chantale não
são protagonistas fáceis de observar. Ambos são criaturas de um imenso
dramatismo, sendo isto particularmente aparente em Hubert, que deverá ser o
mais insuportável de todos os protagonistas de Dolan. Egoísta, egocêntrico,
manipulador, pretensioso, cruel, mesquinho, emotivo, histérico, imaturo e
jovem, Hubert é uma constante tempestade personificada, um agente de caos em
constante conflito com outra criatura caótica. O filme é visto do seu olhar na
sua generalidade, imbuindo cada momento com o olhar de Hubert, iniciando-se até
com uma espécie de confessionário em grande plano monocromático e cortando para
um plano apertado da boca de Chantale, a comer um pão com queijo creme,
capturado do modo mais repelente possível. A suposta intimidade do monólogo
direto para a câmara, comparado e contrastado com a imaturidade do seu
ponto-de-vista em relação à sua mãe.
A mise-en-scéne é sempre, de certo modo,
uma manifestação do olhar de Hubert, sendo tão injusto e cruel como o seu
protagonista, mas não escondendo ou glorificando essa mesma crueldade. A
injustiça na representação formal da figura materna é visível desde o início do
filme, começando logo a explorar os lados mais negativos do protagonista. Dolan
pode-se estar a filmar a si próprio numa representação de si próprio, mas não é
por isso que nos oferece Hubert como uma figura idealizada ou glorificada.
Seria mais correto até dizer que o filme só exacerba quão intolerável o jovem
pode ser.
As fantasias usuais
de Dolan marcam a sua presença, aqui mais simplistas que nunca. Numa cena, a
meio de uma discussão, Hubert imagina-se a partir loiça em câmara lenta, noutra
cena imagina a mãe num caixão coberto de flores, ainda noutra observamos a mãe
vestida de noiva a fugir de um filho que a persegue por entre um bosque. Também
o seu uso de música é, como usual em Dolan, absolutamente exuberante e energético.
Acompanhe-se este tipo de realização, com uma coleção de
interpretações que parecem competir para ver quem consegue gritar mais alto, e
temos um filme que vibra com a imaturidade do protagonista e do realizador.
Manifesta-se também o pretensiosismo de Hubert no modo como citações ou poemas
da autoria do jovem vão aparecendo em texto imposto na imagem ao longo do
filme, assim como os confessionários que parecem encontrar o meio entre um vlog postado no youtube e um filme de
Godard.
No entanto, para
além de toda essa imaturidade estilística, que para mim apenas beneficia o
filme final, Dolan também mostra uma estranha maturidade no seu primeiro filme.
Ele filma com uma mão segura, usando a simetria e o uso do grande plano como
modo de sempre juntar ou forçosamente separar as figuras em cena.
Também o seu retrato
da figura materna é menos simplista e monstruoso do que poderia parecer no
início. Numa das cenas mais impactantes do filme, Hubert e a mãe, discutem em
frente ao autocarro que o levará para o colégio interno. Ele, furioso e
desesperado, insulta-a, grita-lhe e num momento final, pergunta-lhe o que é que
ela faria se ele morresse naquele dia. Chantale não responde, mas Dolan não
desvia a câmara dela, para que, momentos depois do filho se ter afastado,
possamos ouvir a sua resposta, Morreria no dia seguinte.
Algo que, apesar de
tudo, nunca parece posto em causa, é o facto que a mãe e o filho se amam, a
natureza de tal laço é que é explorada no filme, mostrando ódios expostos como
carne viva. A mãe, apesar de momentos como esse que descrevi, nunca é a figura
sofredora e martirizada que Anne Dorval viria a interpretar em Mommy. Aqui temos alguém que quando quer
consegue ser tão cruel e horrenda como o seu filho, como variadas cenas
mostram. É fácil, por breves momentos, simpatizar com Hubert, a mãe entra-lhe
pela escola adentro aos gritos, quando ele demora demasiado tempo a escolher
filmes num clube de vídeo, entrando ela a gritar histericamente com ele, e
deixando-o sozinho, para depois o apanhar na rua, mais tarde, e de novo o deixar
na rua, à noite, sem chave de casa. O modo como o colégio interno é usado pela
personagem, cria um jogo de poder desconfortável entre os dois protagonistas,
culminando numa discussão depois de Hubert descobrir que vai ficar mais um ano
neste.
Nessa cena, Hubert
aparece-nos, talvez no seu estado mais vulnerável, como se todas as portas se
tivessem fechado, mais do que adolescente petulante, ele parece uma criança em
pânico. Quando começa a mostrar a sua usual agressividade, a mãe atira-lhe à
cara a sua homossexualidade, algo que ele lhe tinha escondido, mostrando-se
impassível aos seus pedidos e gritos e parecendo até manipular as suas palavras
de modo a magoá-lo o máximo possível.
Os dois, passam o
filme nessa luta constante, nesse jogo de poder emocional um sobre o outro. Mas
no final, depois de tudo o que acontece, parece haver uma certa serenidade.
Depois de Hubert
fugir do colégio, no seguimento de ser espancado num dos momentos mais
melodramáticos do filme, vemo-lo no carro com Antonin, numa cena semelhante às
variadas vezes que o vimos no carro com a mãe. A câmara está estática quase que
copiando Kiarostami na sua observação fixa dos dois intervenientes em diálogo.
Aí Antonin acusa Hubert do seu egoísmo, do modo como o usa como criado, como
motorista, como prostituto. No entanto, depois das suas acusações, confessa que
o ama. Há algo de ilógico neste diálogo, neste seguimento linguístico, mas no
final, o filme parece abraçar essa irracionalidade no que diz respeito às
emoções humanas, quase que exausto depois de todo o conflito que foi observado.
Quando Chantale
alcança o filho, na antiga casa que agora pertence ao pai de Hubert, os dois
sentam-se em silêncio nas rochas junto à água. Os dois olham para a frente e
não um para o outro. Não falam, apenas recordam. E nós, a audiência, com eles
recordamos, e observamos o seu passado. Depois de uma hora e meia de crueldade
e sofrimento, vemos os dois felizes, quando Hubert era uma criança, filmados no
estilo de vídeos caseiros. Uma inocência tão formal como emocional. O filme
termina numa nota de simplicidade infantil.
Com o seu primeiro
filme, Dolan criou algo que está longe da perfeição ou mesmo da simples
característica de ser agradável. O seu estilo é difícil, é irritante como as
suas personagens, mas, mais do que muitos na história do cinema, a visão de
adolescente de Dolan, vibra com a intensidade da juventude febril. A sua
imaturidade explode em filme, criando algo desagradável, mas fascinante, algo
glorioso na sua euforia e feio na sua fúria. É talvez o menos ambicioso dos
filmes do realizador, mas é também o seu mais pessoal e sem dúvida o seu mais
visceral. Um magnífico melodrama adolescente, demasiado rude para ser belo, mas
pulsante com uma energia que poucos realizadores demonstram.
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