Ontem foi o centenário do nascimento de Ingrid
Bergman e devido a isso gostaria de celebrar o seu trabalho, se bem que com um
dia de atraso. Decidi escrever então sobre o que eu considero o filme em que
ofereceu a sua mais milagrosa prestação.
Höstsonaten foi o último filme de Ingrid
Bergman, essa lenda do cinema que passou do estrelato no seu país natal da
Suécia a uma figura essencial na história do cinema de Hollywood. Neste filme,
a atriz trabalhou com a outra grande lenda do cinema sueco, Ingmar Bergman.
Esta foi a única colaboração destes dois monumentos cinemáticos e com a sua
intensidade fulminante e mestria opressiva, há que admitir que apesar de apenas
existir um filme conjunto dos dois, é uma das obras-primas na filmografia de
ambos estes astros da história da sétima arte.
O filme é uma das
obras mais intensamente emocionalmente insuportáveis na filmografia de Bergman,
lembrando Viskningar och rop na sua
implacável crueldade e foco na história de angústias e ressentimentos
acumulados numa família de mulheres. Aqui, Charlotte (Ingrid Bergman), uma
consagrada pianista, visita a sua filha Eva (Liv Ullmann), após a morte do
companheiro que tinha vivido com ela nos passados 13 anos da sua vida. Eva vive
com o seu marido, Viktor (Halvar Björk), isolada numa paróquia bem longe dos
palcos internacionais conhecidos da mãe, assim como cuida da sua irmã, Helena (Lena
Nyman), uma figura doente e frágil que no filme parece um símbolo pulsante da
mortalidade humana. Observamos a chegada da matriarca, a interação entre os
habitantes da casa, e finalmente somos testemunhas de uma noite agonizante de
acusações de Eva para com sua mãe.
O filme, no entanto,
longe dos infernos emocionais e psíquicos em que se emaranha no seu desenvolvimento,
inicia-se e encerra-se com cenas bastante semelhantes na sua teatralidade e
abjeta frieza. Aquando do início ouvimos Viktor descrever em pormenor a sua
mulher, ele assegura-nos, olhando diretamente para a câmara, que a compreende e
percebe totalmente. No entanto, a sua presença no resto do filme, é a se uma
figura fugaz e passageira, como que um fantasma que assombra a casa na sua
falta de importância. É difícil visualizar tal ligação entre marido e mulher e
Bergman, esse mestre do terror existencialista, e parece-nos que neste mundo
tal entendimento é uma impossibilidade. A câmara é particularmente perspicaz e
precisa, mostrando o marido de costas para a figura desfocada da mulher. Tal
entendimento entre humanos, tal compreensão entre indivíduos parece ser uma
mera ilusão, uma intelectualização forçada da condição de existir com outros
que não nós. A impossibilidade é tão clara que a própria imagem parece troçar
do discurso.
Tal jogo visual é
comum em Bergman e aqui é particularmente eficaz. Há uma simplicidade
enganadora no filme, que está superficialmente longe dos ostentosos triunfos
visuais e formais de Persona ou Fanny och Alexander. Desde as roupas das
figuras à cor do céu e das folhas das árvores o filme é mergulhado numa
confortável atmosfera outonal. As cores são quentes e convidativas, muitas
vezes as figuras parecem vestir-se coordenadas com o cenário, criando uma
beleza omnipresente, uma harmonia opressiva na sua precisão. No entanto, tal
atmosfera decididamente outonal traz consigo conotações impossíveis de ignorar.
O outono e suas paisagens de árvores despidas é uma estação muitas vezes
associada com a mortalidade, como se a beleza do filme escondesse quão
moribundas as figuras do filme estão. A morte, um espectro presente em cada
movimento de Charlotte, cuja proximidade do fim parece fazer dela uma figura
particularmente resistente a participar nos jogos de ressentimentos da filha.
Também na sua escolha de atriz em fim de carreira, o realizador parece ter
encontrado algo de celestialmente belo e inequivocamente moribundo em
simultâneo.
Numa outra cena do filme, quando a sua filha
prevê que a Charlotte irá descer para jantar envergando trajes negros e
interpretando o papel da viúva chorosa, a figura que emerge não é a da viúva
mas a de Ingrid Bergman, estrela de cinema e presença luminosa. Ela desliza
pelo espaço envergando um vestido que queima a imagem com a intensidade da sua
cor vermelha e a sua postura é uma de segurança e jovialidade opressiva. A
imagem da estrela é usada pelo filme brilhantemente, mostrando Ingmar Bergman
num jogo quase nunca visto no seu cinema. Apesar de trabalhar muitas vezes com
atores tornados célebres ou pelo menos conhecidos, o realizador raramente
utilizava a persona da estrela nos seus filmes, mas aqui a presença de Ingrid e
sua carga e impacto como uma lenda de Hollywood e do cinema internacional,
cheia de controvérsias no seu passado, mostra-se inegavelmente inseparável da
exploração do realizador sobre a personagem dentro do filme.
Voltando a essa
previsão errónea da indumentária da mãe, Eva, ao longo do filme, volta a fazer
previsões ou a presumir coisas que não se registam. A sua visão do mundo
cuidadosamente desenvolvida, intelectualizada e friamente assimilada parece
sofrer de uma qualidade inequivocamente humana. Como ser humano, ela prova-se
incapaz de olhar e entender o ser humano à sua frente. Mãe e filha, marido e
mulher, um jogo de figuras sozinhas no mundo a tentar perceber a sua posição
nele e a sua relação com as outras figuras solitárias. No seu momento de
expressão assegurada, o clímax da noite de acusações que instiga sobre a sua
mãe, Eva parece não ouvir os gritos da irmã desesperada, como que ao ganhar a
voz para confrontar a mãe, ela tivesse ficado completamente surda e isolada ao resto
da existência e necessidade humana que a envolve. O egoísmo da realização e
exploração pessoal tornados antagónicos da empatia e básica solidariedade para
com o próximo.
Essa discussão, que
consome grande parte do filme, é um dos momentos mais inesquecíveis de toda
carreira do mestre sueco. Anos de história pessoal são trazidos ao de cima.
Eva, como que uma filósofa amargurada assimilou todo o seu sofrimento em
argumentos intelectualmente opressivos e tudo descarrega na sua mãe. Charlotte,
face à sua filha parece uma rainha gelada tornada vítima indefesa. Eva é
maioritariamente estática nesta noite de horrores, enquanto Charlotte se vai
movendo pelo espaço, até desabar derrotada. A empatia é uma sombra distante e
Bergman parece criar uma ode perversa ao poder humano de infligir dor noutros
humanos.
Ambas as atrizes são
verdadeiras forças da natureza. Bergman é um poço infindável de elegância e
frieza jovial nos seus primeiros momentos, mostrando uma leveza cruel nas suas
atitudes e um constante julgamento silencioso da sua filha. O momento em que
Bergman mantém a sua câmara na atriz enquanto Charlotte ouve a sua filha tocar
piano de modo pueril, é de uma crueldade subtil e absoluta. A desilusão, gozo,
desapontamento e a máscara da felicidade e gentileza forçada que transparecem
na expressão de Ingrid Bergman são um verdadeiro testamento ao seu magistral
trabalho. Quando a vemos sucumbir às acusações implacáveis da sua filha as
máscaras e superioridades da figura maternal vão-se gradualmente dissipando,
deixando no final uma figura emocionalmente estilhaçada, uma sombra de uma
lenda, uma estrela caída e horrivelmente extinta da sua luz.
Ullmann é igualmente
impressionante, criando uma figura aparentemente inofensiva que da sua dor e
angústia palpável emerge momentaneamente como uma figura vampírica, uma
agressora violenta e imparável no seu ataque. A criança que em tempos foi
parece assombrar o trabalho da atriz, cujas primeiras altercações com a mãe
parecem transpirar de um respeito infantil pela sua figura maternal que vemos
desaparecer e revelar o ressentimento absoluto que a consome. Há uma
superioridade visceral no seu ataque, algo talvez originário do facto de que
Eva nunca viu o seu filho crescer, tendo este morrido em criança. A tragédia e
amargura que a consomem parecem despontar como discursos cuidadosamente
escritos e preparados, ou como filosofias pessoais curadas e aperfeiçoadas ao
longo de anos de solidão. Eva, como uma intelectual, filosofa, pensadora sobre
a crueldade e condição humana com uma particular fixação na sua infância e relação
com os pais, parece emergir como uma representação do próprio Bergman.
Eu diria, aliás, que
ambas as mulheres centrais ao filme, parecem agir como realizadoras da sua
visão sobre si mesmas. Cenas como o monólogo de Charlotte enquanto sozinha no
quarto ou as acusações de encenar a sua tristeza por parte da filha, são bons
indicadores disto. No entanto, eu diria que são os flashbacks que realmente conferem essa impressão à audiência.
Imagens rígidas e belas na sua estaticidade teatral em que vemos visualizadas
as histórias pessoais das duas protagonistas. Em Charlotte ela é uma figura
sofredora que se impõe, por exemplo, como um ponto colorido num quarto de
hospital branco, a morte do seu companheiro deixando de ser sobre o morto e sim
sobre a martirização idealizada de Charlotte.
A precisão e frieza
desses tableaux é algo que se estende
ao resto do filme. Há uma delicadeza e elegância no filme que parece
movimentar-se com o ritmo estudado de uma sonata. A técnica de Bergman tão
aperfeiçoada e magistral na sua eficácia perfeita como um músico prodigioso em
pico de carreira. Aqui os músicos da sonata são os quatro humanos enclausurados
na casa em que o filme decorre, tocando a melodia do sofrimento humano composta
por Bergman num dos seus mais belos filmes. Ver Höstsonaten é olhar o ser
humano pelos olhos de Bergman e chorar. É olhar um ecrã e ver nele nós mesmos,
a nossa solidão existencial, e a possibilidade inesgotável que temos para a
crueldade.
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