Mr. Holmes, o mais recente filme de Bill
Condon, tenta reinterpretar e mostrar uma nova faceta da tão filmada figura de
Sherlock Holmes. Sob a direção de Condon e a interpretação de Ian McKellen, o
célebre detetive é apresentado à audiência como um homem de noventa e três anos
a caminhar para o esquecimento da senilidade, enquanto se debruça com os
arrependimentos do seu passado, nomeadamente o seu último caso. Dedicando-se,
aquando da ação principal do filme em 1947, com as suas abelhas que cria e
pouco mais, Holmes começa no início do filme a tarefa de recontar a realidade
desse seu caso, sem a pátina de ficção glorificadora que ele acusa o já
falecido John Watson de ter empregado aquando da criação da série de livros,
que, nesta interpretação da figura, resultaram na sua fama internacional.
Acompanhando a
esvanecente figura do detetive reformado, estão a sua governanta (Laura Linney)
e seu filho (Milo Parker). O jovem rapaz de nome Roger, trava uma amizade com o
dono da casa onde a mãe trabalha e ambos habitam, olhando-o quase como um ídolo
ao mesmo tempo que como um igual, sendo que a sua relação com a própria mãe é-nos
apresentada como conflituosa e infetada com um desequilíbrio fatalista entre a
inteligência e ambição da criança, com o realismo triste da figura maternal.
Ao mesmo tempo que
vamos observando o velho detetive lutar com a perda da sua memória, vamos tendo
flashbacks tanto para o caso sobre o
qual ele tenta escrever como para uma viagem recente ao Japão, onde Holmes terá
tentado encontrar uma planta com poderes medicinais na esperança de adiar a
aproximação da senilidade que ameaça durante todo o filme consumir a mente e a
existência do velho e genial detetive.
Não penso que seja
preciso aprofundar muito acerca da natureza dos flashbacks, sendo que estes vão aparecendo em forma quase que
incompleta e errática pelo filme, nunca se assemelhando a cenas completas e
mais a lembranças de cenas passadas. O modo como são estruturados e filmados é
francamente banal e desinteressante, mas o seu aparecimento no filme é deveras
fascinante dependendo do olhar com que observamos este mecanismo narrativo.
Enquanto Bill Condon nada mais poderia ter feito para retirar qualquer pinga de
interesse ou dinamismo a estas recordações, o modo como são escritos estes
excertos narrativos, estas narrativas secundárias, conferem algo de
interessante ao filme, condensando a estrutura do filme à estrutura da mente do
seu protagonista. As cenas nunca são particularmente desenvolvidas, o seu
impacto é minúsculo comparado com o potencial que aparentam ter, e mais fazem
para interromper a energia da narrativa principal que para facilitar a leitura
do filme, mas, talvez inadvertidamente, o modo como estes momentos parecem
existir na sua banalidade desinteressante, confere-lhes mais poder.
Talvez poder não seja
o termo correto, mas o seu impacto torna-se mais do que o de uma simples
ferramenta textual. O foco dramático que o protagonista lhes coloca é apenas
exacerbado pela sua potencial banalidade, tornando o verdadeiro conflito
principal deste filme muito mais evidente. O filme não é uma história de como o
génio que foi Holmes resolveu o seu último caso, mas sim uma exploração da
relação de Holmes com os seus maiores adversários, a sua mortalidade e o peso
do seu próprio mito.
Nem Condon, nem
McKellen, são principiantes no que diz respeito a abordar tais temas, sendo que
em Gods and Monsters (o melhor filme
da carreira de Condon), a equipa de realizador e ator chegou a algo verdadeiramente
tocante, filmando o desespero de um mito nos seus últimos dias de um mito
esquecido de Hollywood. Mas não é que em Holmes haja muito de James Whales, o
protagonista do filme anterior, pois a figura no centro deste mais recente
esforço mostra muito mais o peso físico dos anos que a figura de Whales alguma
vez o fez. Enquanto em Gods and Monsters,
McKellen representava alguém cuja existência já não fazia sentido para si
mesmo, aqui vemos uma figura bastante diferente, cuja existência é amaldiçoada
pelos crimes do passado, não de modo autodestrutivo, mas como fonte de reflexão
e como vertiginosa luta contra a vinda inevitável da morte. O trabalho de
McKellen é indispensável em ambos os filmes, sendo que em Holmes, vemos um dos seus mais belos trabalhos, tanto no homem que
parece se ir desvanecendo ao longo do filme, como na figura mais jovem no pico
do seu charme que vemos nos flashbacks
para o caso passado.
O trabalho de Condon
em comparação com o seu anterior esforço em temas semelhantes, é bastante
superior, como já disse, tornando a experiência de Mr. Holmes algo amarga para quem já viu o modo como Condon consegue
abordar este tipo de narrativa. Uma cena em que vemos Holmes a observar a sua
versão ficcionada num cinema é particularmente triste. Revela-se aqui uma
recriação desajeitada e desapontante desse tipo de filme quando posta em
comparação com as recriações e reinterpretações gloriosas em Gods and Monsters. Condon cria aqui mais
um filme dito middlebrow, de
prestígio, pelo menos em forma. Mas nem o seu trabalho e aparente desinteresse
conseguem evitar alguns dos melhores momentos de Mr. Holmes.
Uma cena
indispensável no filme é uma recordação de uma conversa com a mulher no centro
do caso misterioso, é um dos melhores exemplos da contribuição de Mckellen ao
filme. Aqui, ao invés da maquilhagem de envelhecimento e de roupas largas e
deselegantes, vemos McKellen em todo o seu esplendor Eduardino, envergando
negro e impondo-se sobre o próprio frame na sua majestade. Uma figura
carismática e charmosa, uma sombra de um tempo meio esquecido, mas
magnificamente apresentado pelo ator. Ao vermos esta criatura de manipulações
fáceis e elegância inequívoca é difícil não sentir o choque na observação do
mesmo homem com o peso de mais trinta anos nos seus ombros, aproximando-se do
fim da sua vida. Mas talvez seja mesmo o modo como McKellen parece sempre
encontrar uma certa acidez na figura de Holmes que vai impedindo o filme de
cair nos impulsos sacarinos do seu realizador. Sim, talvez este último detalhe
seja o seu maior contributo.
Não tenho grande
conhecimento sobre a figura literária que é Sherlock Holmes, pelo que não me
posso manifestar grandemente em relação à reinterpretação deste filme, mas
aventuro-me a chamar a atenção para o melancólico modo como o filme o retrata.
Apesar do trabalho lamentável de Condon com o seu abismal controlo sobre o
ritmo da obra, existe uma delicadeza na aproximação feita à figura principal,
criando uma fissura entre um mito e uma realidade humana. Um mito é aqui
eterno, sempre jovem e brilhante, capaz de influenciar a vida do próprio
Holmes, moldando o seu comportamento, criando em si uma figura imortal em
imagem mas mortal em corpo e mente. Holmes é uma figura isolada e solitária,
que nos momentos mais belos do filme, parece ver a solidão humana manifesta na
tentativa contínua de pessoas se agarrarem a outras pessoas. Essa ligação é
aqui muitas vezes baseada na ficção, e a ficção manifesta-se como uma fonte
imperfeita e brusca de empatia humana. Uma visão triste e solitária tanto da
vida em geral como dos últimos dias de um individuo.
O final, os momentos
entre Roger e Holmes, a resolução do enredo japonês, etc. são todos componentes
do filme que poderiam ter caído no mais descarado dos sentimentalismos baratos,
mas a presença contínua da lembrança que poucos anos, senão meses ou mesmo
dias, restam ao protagonista torna esses elementos mais fáceis de se
apresentarem pelo filme sem cair na manipulação descarada. A alegria
inspiradora é cortada pela melancolia, mas ao mesmo tempo ganha um certo
impacto por essa mesma melancolia. A empatia criada com Holmes, para mim, foi
inquestionável, mas penso que o texto deselegante de Jeffrey Hatcher e o
trabalho magnífico de McKellen, estejam mais perto de serem as causas disso do
que a infeliz prestação de Condon ou os elementos formais do filme.
Este é um filme onde
a ambição é praticamente inexistente, a não ser nalgumas inadequadas referências
visuais a Hitchcock, sendo que poucos riscos foram tomados, tendo por
consequência a inexistência de grandes desastres na obra final. É um filme
simples, com momentos de delicadeza tocante que são constantemente acompanhados
por momentos ou elementos pueris ou desajeitados como o trabalho de Laura
Linney, uma atriz que normalmente admiro, ou um momento de dramatismo
incrivelmente forçado que culmina na destruição de um ninho de vespas. Acho bem
acrescentar o omnipresente simbolismo das abelhas e das vespas nessa lista de
problemas do filme.
Consequentemente a
tudo isto, aqui vemos um filme fácil de apreciar, fácil de ver e fácil de nos
conquistar, quer seja pelas reflexões que levanta sobre a mortalidade do
protagonista, quer seja pelo trabalho de alguns membros do elenco, nomeadamente
o já mencionado McKellen. Também há que referir Milo Parker numa interpretação
simples e sem grandes afetações ou dramatismos, algo adequado, vá-se dizer, a
um filme tão modesto, ligeiramente banal mas inesperadamente delicado como Mr. Holmes se vai revelando.
Sem comentários:
Enviar um comentário