sexta-feira, 7 de agosto de 2015

CSILLAGOSOK, KATONÁK (1967) de Miklós Jancsó



 Em 1967, Miklós Jancsó, um dos grandes autores do cinema húngaro, estreou um filme que lhe havia sido encomendado para celebrar os cinquenta anos da Revolução de Outubro. Para tal celebração, seria de esperar que o realizador húngaro tivesse criado uma visão heroica dos revolucionários bolcheviques, uma glorificação dos revolucionários de 1917, um filme de propaganda. O que Jancsó criou está bem longe de ser qualquer uma dessas possibilidades.

 Ao contrário do que seria de esperar, por exemplo, o filme não retrata a revolução bolchevique de 1917, mas sim o conflito entre o exército branco e o exército vermelho, apoiado por húngaros, durante a guerra civil russa que se seguiu à revolução de 1917. O filme, para ser específico, decorre em 1919, e não se focando em nenhuma figura em particular, vai observando os movimentos de ambas as fações, enfatizando a colaboração húngara com o exército vermelho.

 Depois desta introdução não será surpreendente a informação de que o filme foi incrivelmente mal recebido pelas forças soviéticas. Depois de uma tentativa de reedição do filme, na qual se tentou alcançar algo mais próximo a uma narrativa heroica, a obra foi banida na União Soviética. No entanto, a reação na Hungria e no resto do mundo ocidental foi bem distinta, tendo este sido um dos primeiros filmes húngaros a deixar uma forte impressão no mercado do cinema ocidental, dando uma relevância anteriormente inexistente ao nome do seu genial realizador.

 Devido a esta reação institucional, e também devido a certas interpretações do filme, esta é uma obra muitas vezes classificada como um filme antiguerra, uma classificação que não digo ser completamente errónea, mas não me parece ser a mais acertada. No cinema antiguerra existe normalmente um apelo humanístico feito à audiência, um salientar do sofrimento humano implícito à guerra. Muitas vezes, esses filmes, ditos antiguerra, exploram a visceralidade do conflito bélico, repugnando e chocando a audiência. Mas, mais do que o choque, o cinema antiguerra, pelo menos o cinema narrativo, está muito preso ao uso da personagem, ao uso da exploração do indivíduo como modo de aproximação do espetador. Isto é visível em obras tão magníficas como All Quiet on the Western Front de Lewis Milestone ou Idi i Smotri de Elem Klimov, mas está bastante distante da abordagem de Jancsó nesta obra. Eu diria mesmo que com Csillagosok, Katonák, o realizador criou uma visão formalmente antagónica à desses outros filmes que referi.

 Jancsó, com este filme, mais do que se manifestar singularmente contra a guerra, parece criar uma obra de cinema contra a narrativa dramática. Falo da narrativa do herói, da narrativa do santo, do mártir, das narrativas com que o cinema aborda a guerra. Não existem esse tipo de arquétipos nesta obra, um filme que parece ativamente despertar o desejo de tais arquétipos com a sua abordagem formal, e que sistematicamente rejeita tais elementos narrativos.

 Uma das escolhas formais mais inescapáveis na mise-en-scène de Jancsó é o uso de planos sequência com pouca recorrência à montagem, ao longo de todo o filme. Planos em que o movimento é uma constante, tanto por parte da câmara como no que diz respeito ao movimento dos corpos humanos que se movem pela composição precisa de Jancsó. Eu diria mesmo que este é um filme sobre movimento, o movimento como manifestação da existência humana em conflitos bélicos.

 A câmara raramente se aproxima dos seus atores, sendo que, com algumas notáveis exceções, os grandes planos de faces humanas são praticamente inexistentes. As faces humanas são poderosas imagens no cinema e, na sua distanciação metódica, Jancsó parece estar perfeitamente ciente de tal facto. Sem a presença do indivíduo, da personagem, apenas conseguimos ver massas humanas em movimento constante. O movimento do poder militar parece ser reduzido a isso mesmo, movimento.   

 Esta não é, então, uma obra sobre indivíduos. Será talvez possível dizer que esta não é uma obra sobre exércitos ou política, mas sim uma abstração do conflito bélico em imagens corpos e massas humanas deslocando-se pelo espaço. Mesmo a violência que ocorre no filme é desprovida da sua máxima visceralidade, tanto pela distância como pela inexistência da cor. O olhar de Jancsó com a sua movimentação metódica e cuidadosamente coreografada, poderia por muitos ser acusada de desumanidade ou frieza, mas, a partir do distanciamento ousado aqui empregue, Jancsó consegue encontrar algo que poucos filmes de guerra conseguem. Na carnificina e na crueldade humana, no sofrimento constante, Jancsó consegue encontrar e visualizar a loucura fútil de tais comportamentos humanos, A busca humana pelo poder sobre o outro ser humano, nunca foi de modo tão eficaz mostrado em cinema, pelo menos eu nunca vi tal coisa.

 Durante o filme, antes de pessoas serem executadas por cada um dos exércitos, é pedido a essas mesmas pessoas que se dispam. O filme fica assim recheado de visões de conjuntos de corpos despidos. Sem os seus uniformes, os membros das massas humanas em conflito, passam de exércitos organizados a massas indistinguíveis. Estes corpos desnudos habitam as paisagens magistralmente filmadas do filme onde a imagem de um mundo natural se parece tornar uma extensão dos corpos como num devastador momento de uma mulher despida dentro das águas de um rio. O soldado é assim reduzido ao ser humano. Um humanismo inesperado, inesquecível e incrivelmente ousado, a redução da guerra a paisagens vivas, o comportamento humano tornado movimento.

 O filme termina com uma imagem formalmente inesperada. A câmara aproxima-se de um dos homens que vamos acompanhando ao longo do filme. Não o conhecemos como conheceríamos a uma personagem num filme narrativo convencional, mas quando, de modo incrivelmente chocante, o ator olha diretamente para a objetiva, Jancsó cria aqui um momento de reconhecimento básico. A audiência é assim olhada pelo soldado no filme, a humanidade olha-se a si própria e descobre-se no olhar.

 Com este olhar termina um dos mais inovadores, mais perigosamente originais filmes de guerra já criados na história do cinema. Imperdível e inesquecível, esta é a obra-prima da carreira de Jancsó e um dos momentos essenciais na história do cinema.


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