Em 1967, Miklós
Jancsó, um dos grandes autores do cinema húngaro, estreou um filme que lhe
havia sido encomendado para celebrar os cinquenta anos da Revolução de Outubro.
Para tal celebração, seria de esperar que o realizador húngaro tivesse criado
uma visão heroica dos revolucionários bolcheviques, uma glorificação dos
revolucionários de 1917, um filme de propaganda. O que Jancsó criou está bem
longe de ser qualquer uma dessas possibilidades.
Ao contrário do que
seria de esperar, por exemplo, o filme não retrata a revolução bolchevique de
1917, mas sim o conflito entre o exército branco e o exército vermelho, apoiado
por húngaros, durante a guerra civil russa que se seguiu à revolução de 1917. O
filme, para ser específico, decorre em 1919, e não se focando em nenhuma figura
em particular, vai observando os movimentos de ambas as fações, enfatizando a
colaboração húngara com o exército vermelho.
Depois desta
introdução não será surpreendente a informação de que o filme foi incrivelmente
mal recebido pelas forças soviéticas. Depois de uma tentativa de reedição do
filme, na qual se tentou alcançar algo mais próximo a uma narrativa heroica, a
obra foi banida na União Soviética. No entanto, a reação na Hungria e no resto
do mundo ocidental foi bem distinta, tendo este sido um dos primeiros filmes
húngaros a deixar uma forte impressão no mercado do cinema ocidental, dando uma
relevância anteriormente inexistente ao nome do seu genial realizador.
Devido a esta reação
institucional, e também devido a certas interpretações do filme, esta é uma
obra muitas vezes classificada como um filme antiguerra, uma classificação que
não digo ser completamente errónea, mas não me parece ser a mais acertada. No
cinema antiguerra existe normalmente um apelo humanístico feito à audiência, um
salientar do sofrimento humano implícito à guerra. Muitas vezes, esses filmes,
ditos antiguerra, exploram a visceralidade do conflito bélico, repugnando e
chocando a audiência. Mas, mais do que o choque, o cinema antiguerra, pelo
menos o cinema narrativo, está muito preso ao uso da personagem, ao uso da
exploração do indivíduo como modo de aproximação do espetador. Isto é visível
em obras tão magníficas como All Quiet on
the Western Front de Lewis Milestone ou Idi
i Smotri de Elem Klimov, mas está bastante distante da abordagem de Jancsó
nesta obra. Eu diria mesmo que com Csillagosok,
Katonák, o realizador criou uma visão formalmente antagónica à desses
outros filmes que referi.
Jancsó, com este
filme, mais do que se manifestar singularmente contra a guerra, parece criar
uma obra de cinema contra a narrativa dramática. Falo da narrativa do herói, da
narrativa do santo, do mártir, das narrativas com que o cinema aborda a guerra.
Não existem esse tipo de arquétipos nesta obra, um filme que parece ativamente
despertar o desejo de tais arquétipos com a sua abordagem formal, e que
sistematicamente rejeita tais elementos narrativos.
Uma das escolhas
formais mais inescapáveis na mise-en-scène de Jancsó é o uso de planos
sequência com pouca recorrência à montagem, ao longo de todo o filme. Planos em
que o movimento é uma constante, tanto por parte da câmara como no que diz
respeito ao movimento dos corpos humanos que se movem pela composição precisa
de Jancsó. Eu diria mesmo que este é um filme sobre movimento, o movimento como
manifestação da existência humana em conflitos bélicos.
A câmara raramente se
aproxima dos seus atores, sendo que, com algumas notáveis exceções, os grandes
planos de faces humanas são praticamente inexistentes. As faces humanas são
poderosas imagens no cinema e, na sua distanciação metódica, Jancsó parece
estar perfeitamente ciente de tal facto. Sem a presença do indivíduo, da
personagem, apenas conseguimos ver massas humanas em movimento constante. O
movimento do poder militar parece ser reduzido a isso mesmo, movimento.
Esta não é, então,
uma obra sobre indivíduos. Será talvez possível dizer que esta não é uma obra
sobre exércitos ou política, mas sim uma abstração do conflito bélico em
imagens corpos e massas humanas deslocando-se pelo espaço. Mesmo a violência
que ocorre no filme é desprovida da sua máxima visceralidade, tanto pela
distância como pela inexistência da cor. O olhar de Jancsó com a sua
movimentação metódica e cuidadosamente coreografada, poderia por muitos ser
acusada de desumanidade ou frieza, mas, a partir do distanciamento ousado aqui
empregue, Jancsó consegue encontrar algo que poucos filmes de guerra conseguem.
Na carnificina e na crueldade humana, no sofrimento constante, Jancsó consegue
encontrar e visualizar a loucura fútil de tais comportamentos humanos, A busca
humana pelo poder sobre o outro ser humano, nunca foi de modo tão eficaz
mostrado em cinema, pelo menos eu nunca vi tal coisa.
Durante o filme,
antes de pessoas serem executadas por cada um dos exércitos, é pedido a essas
mesmas pessoas que se dispam. O filme fica assim recheado de visões de
conjuntos de corpos despidos. Sem os seus uniformes, os membros das massas
humanas em conflito, passam de exércitos organizados a massas indistinguíveis.
Estes corpos desnudos habitam as paisagens magistralmente filmadas do filme
onde a imagem de um mundo natural se parece tornar uma extensão dos corpos como
num devastador momento de uma mulher despida dentro das águas de um rio. O
soldado é assim reduzido ao ser humano. Um humanismo inesperado, inesquecível e
incrivelmente ousado, a redução da guerra a paisagens vivas, o comportamento
humano tornado movimento.
O filme termina com
uma imagem formalmente inesperada. A câmara aproxima-se de um dos homens que
vamos acompanhando ao longo do filme. Não o conhecemos como conheceríamos a uma
personagem num filme narrativo convencional, mas quando, de modo incrivelmente
chocante, o ator olha diretamente para a objetiva, Jancsó cria aqui um momento
de reconhecimento básico. A audiência é assim olhada pelo soldado no filme, a
humanidade olha-se a si própria e descobre-se no olhar.
Com este olhar
termina um dos mais inovadores, mais perigosamente originais filmes de guerra
já criados na história do cinema. Imperdível e inesquecível, esta é a
obra-prima da carreira de Jancsó e um dos momentos essenciais na história do
cinema.
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