Talvez o melhor
exemplo da hubris de Dolan, o seu
terceiro filme marcou a primeira vez que o jovem autor criava um filme em que não
protagonizava. Esta escolha é crucial para o filme, pois se olhamos os seus
dois filmes anteriores como histórias de, em parte, autocritica e autorreflexão
sobre a figura de Dolan, este filme embarca numa missão completamente
diferente. Ao contrário das suas histórias de juventude superficial e fútil,
este filme olha para um romance entre uma mulher, Fred (Suzanne Clément), e
Laurence (Melvil Poupald), uma mulher transsexual, namorado de Fred enquanto
homem, sendo que observamos a sua transformação neste filme.
O filme, mais do que
um relato da transição de Laurence, foca-se na relação dos seus dois
protagonistas. Fred é realmente o centro do filme de Dolan, e isto é
especialmente notório no breve epílogo que encerra o que é o mais longo dos
filmes de Dolan. Observamos o primeiro encontro entre os dois amantes um
momento romântico cheio de esperança, mas tornado doloroso pelo nosso
conhecimento do que está para vir na vida dos dois.
Então vemos aqui
Dolan a trabalhar sobre a tragédia romântica de um modo que parece pegar no estilo
que vinha a desenvolver nos seus dois últimos filmes e exagerá-lo até aos
excessos gloriosos deste filme. Se podíamos acusar o realizador de fazer
videoclips dentro dos seus filmes, Laurence é quase um musical feito de
videoclips colados uns aos outros, enchendo o filme de um barroquismo visual e
sonoro que Dolan ainda não voltou a abordar.
Mas, tal como nos
seus primeiros filmes, este estilo extremamente notório e quase abrasivo,
parece resultar de uma extensão da psique das personagens à estrutura do filme.
Estas são personagens histéricas, gritando pelo seu amor e por uma vida melhor,
são invariavelmente dramáticas, quase ridículas não fosse a corrente de
sofrimento que informa a sua presença no filme. Os momentos musicais fazem
sentido quando em coexistência com as criações e Fred e Laurence, e em vez de
ofuscar a história romântica no seu âmago, estas ousadas decisões estilísticas
de Dolan apenas reforçam o romance neste épico de um amor falhado.
Sim, épico, pois aqui
Dolan cria quase que uma odisseia de uma relação amorosa em conflito. Mais do
que simplesmente um melodrama romântico, o filme assemelha-se em estilo a uma
ópera cinemática.
Nesta obra, temos o
único filme possível de se chamar de época na oeuvre de Dolan. Certamente que é uma época recente, o início dos
anos 90, mas o modo como o filme é temporalmente definido pelos figurinos,
penteados e cenografia é tão meticuloso e vistoso como em qualquer filme de
James Ivory. Os figurinos e o trabalho de caracterização é especialmente
essencial para a estética do filme, trabalhando o exagero de modo fantástico e
dando ao filme o aspeto de um editorial de moda. Num filme, onde as roupas de
Laurence têm uma potência temática difícil de evitar, a mise-en-scène parece
depender invariavelmente do trabalho de figurinos.
Mas não é só na
figura das personagens que se encontra neste filme a genialidade visual de
Dolan. A fotografia do filme, num maravilhoso formato de 4:3, é um trabalho de
movimento e cor inebriante. Isto é bem notório nas sequências mais marcantes do
filme como um baile em que Fred entra quase que flutuando por entre os
convidados, uma sequência em que lenços coloridos caem do céu em câmara lenta
sobre os dois amantes, ou mesmo um dos momentos finais em que o vento se
levanta criando uma tempestade de folhas outonais durante a separação final
entre o casal, enquanto a câmara se move como que transportada pelo dramatismo
inerente ao momento, etc...
Este tipo de
descrição parece apontar para um filme cheio de momentos inesquecíveis nos seus
prazeres estéticos, mas há que apontar que a experiência de todo o filme
consegue, para mim, ter ainda mais impacto que as suas partes separadas. Isto
deve-se em grande parte ao trabalho dos dois atores no centro do filme,
especialmente à gloriosa Suzanne Clément, neste momento uma regular do cinema
de Dolan.
Em Fred Clement e
Dolan criam a que é, talvez, a mais fascinante e completa criação do realizador
canadiano. Interpretada num registo estilizado e quase histérico, ou um registo
latino nas palavras de Dolan, Fred parece explodir para fora do ecrã. Laurence
pode ser quem mais muda exteriormente ao longo do filme, mas é a tempestade que
é Fred que se parece materializar no estilo operático do filme. O seu génio
manifesta-se, por exemplo, no modo como Clément consegue equilibrar momentos de
fúria desenfreada, de gritos enraivecidos e discussões acesas, com uma
delicadeza alienante ao resto do filme como num momento em que olha
melancolicamente um tijolo pintado de rosa na casa que partilha com o marido e
os filhos. Ela é o centro do filme, o seu coração pulsante e é realmente quem
consegue manter toda a hubris
estilística unida num objeto final coerente.
Neste filme, Dolan
toma mais riscos do que alguma vez tomou na sua carreira. O produto final já
não parece manifestar a imaturidade superficial e furiosa dos seus dois
primeiros trabalhos, mas também ainda não está na maturidade estilística que o
realizador alcançou com Mommy. Temas
que se encontram no resto do seu trabalho continuam aqui bem presentes, como se
pode ver na relação de Laurence com a mãe, um seguimento da fixação maternal
que parece correr por toda a obra do autor.
Aqui tudo o que
define o cinema de Dolan parece existir do modo mais excessivo possível. Um
filme barroco no seu estilo, mas íntimo na sua exploração e uma paixão quase
obsessiva. Uma paixão que parece ser apenas possível de visualizar a partir da
ópera de visuais e sons orgiásticos que aqui encontramos. O excesso absoluto
como veículo para a intimidade. A superfície como extensão do indivíduo. Talvez
não seja o mais bem conseguido filme de Dolan, nem seja o mais importante filme
sobre a vida de um transsexual, mas para quem aprecia o cinema romântico ou o
cinema de Dolan, esta é uma obra impossivelmente essencial.
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