“(…)C'est un peu de cette naïveté que je vous demande et, pour nous
porter chance à tous, laissez-moi vous dire quatre mots magiques, véritable
«sésame ouvre-toi» de l'enfance:
Il était une fois...”
- La Belle et la Bête de Jean Cocteau
Quando podemos
observar no panorama do cinema contemporâneo, uma imensidão de filmes que
reinventam contos de fadas e histórias infantis clássicas e encontram algo
supostamente mais negro, complexo e moderno, é, talvez, interessante pensar
neste apelo à imaginação e inocência infantil feito em 1946 por Jean Cocteau à
audiência do seu mais belo e simples filme, La
Belle et la Bête. Mais do que reinventar uma narrativa conhecida por outra
perspetiva como em Maleficent e Wicked, ou acrescentar um suposto
“realismo” a uma história intemporal como em Snow White and the Huntsman, ou criar uma versão irónica de uma
história de princesas e magia como Mirror
Mirror, a versão de Kenneth Branagh de Cinderella parece seguir esse conselho
de Cocteau ao mesmo tempo que mergulha num registo ingenuamente tradicional no
seu recontar da história clássica.
A narrativa, como a
encontramos no filme, não sofreu grandes reinvenções como outras adaptações
passadas (Ever After), e baseia-se
maioritariamente nos usuais aspetos da história da Gata Borralheira (Lily
James). Um encontro prévio com o príncipe (Richard Madden) antes do baile, e
uma certa pontada de humor sardónico na figura da fada-madrinha (Helena Bonham
Carter) são os principais elementos que mostram alguma originalidade por parte
desta produção no campo textual. Segue-se aqui um tradicionalismo clássico, que
mesmo assim, quase parece uma inovação quando comparado aos seus companheiros
acima referidos. Num tempo de ironia e em que a magia ingénua dos
contos-de-fada infantis parece não ter lugar, um filme que de tal modo abraça a
sua infantilidade com uma revigorante sinceridade, consegue parecer mais
subversivo que a suposta subversão que esses outros filme parecem querer
alcançar. Ambas as abordagens podem ser acusadas de simplistas e superficiais,
mas quando um tipo de abordagem se torna norma, é sempre interessante observar
a alternativa, mesmo que superficial e simplista.
O interesse aqui não
existe na expectativa de uma nova perspetiva sobre material já conhecido, mas
sim no conforto de ouvir uma história velha recontada com a mesma simplicidade
da infância. Tudo parece trabalhar para esta conjuntura, desde a realização
eficiente mas levemente banal, ao glorioso mundo visual e musical, sem esquecer
o elenco e o seu aparente conforto com os arquétipos adocicados do filme.
Branagh, oferece à
audiência uma visão opulenta, quase que dando vida a uma ilustração de um livro
de infância ou tornando reais as imagens de um filme de animação. O trabalho de
cenografia e figurinos é particularmente impressionante, sendo que o filme é
uma explosão de glória imagética da autoria de Dante Ferretti e Sally Powell,
como poucas vezes os vimos fazer. Aqui, com todo o dinheiro que uma companhia
como a Disney consegue disponibilizar, vemos todo o mundo do conto clássico
emergir numa abundância de cor, detalhe e brilho, que parece sempre esticar os
limites entre a harmonia visual e a podridão estética exagerada.
O génio dos figurinos
de Sandy Powell é de particular louvor, encontrando uma estética bastante
reminiscente da animação da Disney em personagens como a madrasta (Cate
Blanchett) cujos figurinos têm todos praticamente a mesma silhueta reminiscente
dos anos 40, apesar das cores e materiais diversos, criando a impressão de uma
figura animada com um modelo específico e algumas variações. O modo como se
inspira em pormenores visuais do século XVIII e XIX também lembra o trabalho
dos animadores da Cinderella de 1950. As suas criações, especialmente na cena
do baile, são um exagero imenso e cor e detalhe, apesar da relativa
simplicidade do vestido da protagonista, mas, apesar de tudo, parecem encontrar
um certo equilíbrio nesse mesmo excesso.
A acompanhar estes
elementos visuais esmagadores temos uma fotografia bastante simplista mas
sólida, cheia de cores fortes e luz solarenga e acolhedora, assim como uma bela
banda-sonora de Patrick Doyle, frequente colaborador de Branagh. Talvez o único
elemento técnico que me deixa grandes dúvidas seja mesmo o uso de efeitos
visuais, especialmente no caso dos ratos digitais, que parecem sempre
demonstrar essa bizarra mistura entre naturalismo visual cortado com um
sentimento permanente de que algo está errado com o que estamos a ver. Um
grupinho de aberrações peludas que vão passeando pelo filme com a sua
desconfortável presença.
No que diz respeito ao
elenco, James e Madden são eficientes e sólidos, mais ideias de bondade que
pessoas, ambos apresentam o charme e inocência necessárias mas pouco mais. Em papéis
secundários, Derek Jacobi e Stellan Skarsgård são agradáveis presenças,
evitando o melodrama ao meso tempo que incorporam papeis bastante simplistas, o
monarca bondoso e o vilão pragmático. Bonham Carter é uma delícia, como uma
fada-madrinha desastrada coberta de cristais brilhantes. Certamente este é um
registo já um pouco esperado no que diz respeito à atriz, mas, pelo menos sob o
olhar de um fã como eu, continua a funcionar como uma leve brisa de humor que
corta o tom geral do filme. Mas se a fada-madrinha parece emergir de um filme
mais humorístico e sardónico, a verdadeira joia no centro do filme é uma
perfeita continuação do estilo do filme em si. Cate Blanchett é brilhante no
papel da vilã principal do filme. Uma Joan Crawford moderna num conto de fadas,
exagerada e dramaticamente elegante nos seus movimentos e dicção, a atriz nunca
torna a personagem demasiado complexa. Oferece, no entanto, momentos de uma
humanidade feroz que indicam alguém a viver na permanente comparação com uma
falecida mulher e filha inocente, como um ser humano injustamente julgado em
comparação a santas. O lado humano e doloroso que inclui na simples vilã criam
algo mais perigoso e ameaçador que uma simples caricatura, sem se destacar em
demasia do registo fantasioso da produção. É um dos melhores trabalhos da
carreira da atriz, cuja inerente teatralidade é aqui brilhantemente
aproveitada.
O filme é uma simples
delícia. Não é complexo ou ambicioso, mas é eficiente na concretização de uma
história infantil e ingenuamente encantadora. A sua moral pode ser um pouco
conformista e conservadora para a nossa perspetiva atual, mas admito ser um
pouco seduzido por uma perspetiva classicista que pensava nunca mais vir a
observar em produções deste género. Não é, nem por sombras, um grande filme,
mas é uma boa sobremesa sem grande valor nutricional, cheia de prazeres visuais
e uma doçura e sinceridade surpreendentes.
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