É difícil escrever
nem que seja uma palavra sobre um filme como Roma, Città Aperta de Roberto Rossellini, simplesmente porque este
é um filme sobre o qual já tudo foi escrito. Como um dos momentos essenciais na
história do cinema, é difícil ver este filme e olhá-lo como algo que não uma
das obras essenciais do cinema como uma arte.
Feito imediatamente
após o final da 2ª Guerra Mundial, nos escombros de uma Roma em ruínas, o filme
pegou no Neorrealismo iniciado por Luchino Visconti dois anos antes com Ossessione, e tornou-o um dos mais
importantes movimentos na história do cinema. O realismo cinemático a partir
deste filme mudou completamente e também foi assim que se deu início a um dos
períodos mais fascinantes da história do meio, o pós segunda Guerra Mundial. O
mundo tinha visto horrores até aí não experienciados pelos cineastas que a
partir daqui inundaram as salas de cinema com alguns dos filmes mais inovadores
de sempre, reescrevendo tudo o que sabíamos possível de alcançar com esta arte.
O cinema ganhou uma relevância social e política que apenas tinha anteriormente
vislumbrado de modo superficial em comparação com esta nova leva de filmes. E
Itália esteve no centro desta revolução do cinema, e na sua génese temos este
filme, a supra suma criação de muitos dos mais importantes autores do cinema
italiano.
Existe uma infinidade
de informação sobre a criação do filme, sendo que até livros já foram escritos
inteiramente sobre as filmagens do filme. Várias versões existem até do modo
como o projeto se iniciou, sendo que supostamente o filme terá começado com as
intenções de ser um documentário sobre Don Morosini, um padre tornado herói da
resistência italiana e no filme transformado na personagem de Don Petro Pellegrini
(Aldo Fabrizi). Depressa o filme ter-se-á desviado do documentário para se
tornar o que hoje podemos observar. O filme almeja mais a ser um retrato da
resistência italiana ao controle fascista durante os anos de guerra, que um
retrato de um herói singular.
Filmado numa Roma em
ruínas, em muitos casos em edifícios reais ao invés de em décors de estúdio, o
filme é um olhar visceral sobre a Itália destruída pela guerra. Por razões
práticas o filme tem uma rudeza que apesar de continuar um desenvolvimento
estético de filmes italianos anteriores, parece chegar aqui a uma certa
apoteose de realismo cinemático. Na sua maioria, a iluminação é rude, com
lâmpadas despidas e expostas no cenário, os filtros glamorosos do cinema
fascista e do cinema romântico de Hollywood não se registam, sendo que quando o
olhar polido desses cinemas se pode registar, é durante a filmagem de
personagens envoltas no luxo fascista. A linguagem realista e romântica em
conflito direto no próprio filme. A formalidade plástica como comentário social
e político.
Tal como Visconti
tinha feito antes, e muitos realizadores italianos iriam fazer no futuro, Rossellini
usou, com a exceção de alguns casos específicos, maioritariamente não-atores.
As pessoas de Roma que viveram o regime fascista eram assim retratadas por elas
próprias neste filme. O artifício do ator profissional era substituído pela
rudeza do não-ator, pela pressuposta realidade que a sua mera presença confere
ao filme.
O próprio tempo
parecia alterar-se com este filme, deixando movimentos e ações ocorrerem no seu
tempo real e não enfatizando o tempo ideal para a estrutura dramática. Há quem
defenda que o neorrealismo é principalmente um movimento que alterou a perceção
temporal no cinema, encontrando um tempo realista, mais do que encontrando uma
estética realista. Talvez obras futuras mostrem melhor este aspeto do movimento,
mas aqui em variadas sequências acompanhamos a magnífica Anna Magnani, aqui
grávida, solteira, fortemente religiosa, a andar pelo seu apartamento, pelo edifício
onde habita, num registo temporal antes estranho para o cinema. Uma ação é prolongada
e errática no seu ritmo, a estrutura dramática é quebrada como modo de se obter
algo mais cru e próximo de uma suposta realidade no meio artificial do cinema.
Mas não era só na sua
formalidade que o filme demonstrava as suas ideias revolucionárias. Olhemos
para o guião, parcialmente escrito por Federico Fellini, para ver os traços de
um novo tipo de cinema. Se em Ossessione,
Visconti olhava a podridão de uma Itália na miséria, aqui vemos o sofrimento e a
martirização de um povo face à injustiça caída sobre as suas vidas. Se há algo
de que acusar o filme, talvez seja o modo como invariavelmente cria heróis e mártires,
mas tais críticas são bastante fúteis quando comparadas com a glória e a raiva
capturadas aqui em celuloide.
Tenho de confessar
que o neorrealismo não foi nunca um dos meus movimentos favoritos na história
do cinema. Compreendi a sua importância, histórica, mas vendo o estado do
cinema atual em que uma espécie de realismo banal e desinteressante parece ser
a norma do cinema mundial, parece-me sempre que tudo isto teve a sua origem
aqui na Itália do pós-guerra. No entanto, com o passar dos anos a importância
histórica deste realismo começou a transformar-se em algo mais na minha
mentalidade pessoal. Se a história do cinema é marcada pelo movimento criativo
da inovação, como é possível não olhar para o neorrealismo como um dos pontos
altos na história da arte? Talvez os filmes mais famosos do movimento até nem
sejam aqueles que para mim representam as grandes possibilidades do estilo.
Visconti para mim será sempre superior a De Sica e mesmo a Rossellini. Mas
todas estas indagações pessoais não alteram o impacto impossível de negar deste
filme.
Mesmo fora do seu
absolutamente inescapável contexto histórico e artístico, será possível olhar a
sequência em que Magnani corre desenfreadamente na direção do carro que leva
prisioneiro o seu noivo, acabando por ser alvejada e cair na rua poeirenta,
morta, uma mártire, e não sentir o grito furioso de Rossellini? Será possível assistir
à cena final da execução de Pellegrini e não sentir o ultraje e ao mesmo tempo
a esperança que o filme parece querer incutir na sua audiência? Este é um marco
na história do cinema mundial, e é difícil olhar para a obra final e não
perceber o seu impacto, não entender que temos diante de nós algo realmente
especial, algo, talvez, revolucionário, algo maravilhoso para qualquer amante
de cinema.
Sem comentários:
Enviar um comentário