Em 1973 uma das mais
singulares vozes da história do cinema emergiu com o filme Badlands. Falo, pois claro, do seu realizador, produtor e
argumentista, Terrence Malick, que, para mim, é o melhor e mais fascinante
realizador americano ainda em atividade. Um visionário e criador de alguns dos
mais imersivos e espirituais filmes do cinema, este autor contemporâneo
apareceu aqui com a sua primeira longa-metragem. Com um estilo já magistralmente
dominado, e uma voz que parece mais próxima da filosofia e do lirismo literário
que do usual produto de Hollywood, Malick apresentou aqui uma das mais
excitantes estreias de um autor no mundo do cinema.
O filme em questão, o
primeiro de uma série do que eu considero perfeitas obras-primas
cinematográficas, usa como base uma história de origens verídicas. Entre
Dezembro de 1957 e Janeiro de 1958, nos estados do Nebraska e Wyoming nos EUA,
Charles Starkweather e a sua namorada, Caril Anne Fugate, assassinaram onze
pessoas, entre elas o pai de Caril, antes de ambos serem apanhados e
condenados. No caso de Starkweather, este acabou por receber a pena capital, ao
contrário de Fugate que 17 anos depois, foi libertada.
O cinema americano,
em 1973, já tinha anteriormente visto filmes com narrativas semelhantes, seja o
experimentalismo classicista de Gun Crazy
ou a violência revolucionária de Bonnie
and Clyde, mas o filme deste licenciado em filosofia tem uma abordagem
completamente diferente de tudo o que tinha sido antes visto na transposição
para filme deste tipo de narrativa americana.
Pois sim, esta é uma
narrativa invariavelmente americana, e Malick parece usar a história do casal
como uma base para o seu filme, do mesmo modo que realizadores como Fritz Lang
usaram os mitos europeus ou a ópera Wagneriana como base para o seu trabalho. Badlands advém do mito americano, o do outlaw, a do anti-herói criminoso. E não
é só a base da narrativa que parece incorporar em si uma certa mitologia
americana, mas também as paisagens que preenchem o filme com a sua beleza e
presença esmagadora. A paisagem, especialmente o deserto, tornada ambiente
mitológico e onírico.
O modo como Malick
filma a paisagem, em qualquer um dos seus filmes, consegue ser infinitamente
mais relevante que o modo como ele estrutura os filmes, ou mesmo como dirige os
seus atores. Aqui a paisagem ainda não adquiriu bem a beleza pitoresca e quase
acima da natureza que vemos em Days of
Heaven ou The Tree of Life, mas a
sua presença é tão enfatizada como nessas obras posteriores.
Estando o filme mais
ou menos estruturado em quatro fases (os subúrbios, a liberdade onírica da
natureza, os subúrbios de novo, e a fuga pelo deserto), no contraste entre os
visuais destas fases encontra-se grande parte do jogo visual do filme. Na
primeira e terceira, o ambiente de interiores suburbanos é constante, enchendo
o frame de detalhes visuais, quase
que ruidosos na sua presença. Padrões em papel de parede, ferramentas presas
nas paredes, etc. A câmara quase que reprimida quando comparados os modos de
filmar o interior habitacional do exterior natural. Na segunda e quarta fase da
estrutura, Malick liberta qualquer restrição da sua câmara, do seu olhar, afastando-se
e capturando a paisagem na sua dimensão esmagadora face ao elemento humano.
O horizonte do
deserto parece impor-se na composição de Malick, as figuras humanas aqui
acrescentos desconcertantes. O azul do céu e o castanho e dourado da terra
formam uma pintura viva, uma presença tão forte como o casal de outlaws. Mais do que a paisagem existir
como extensão da figura humana do filme, os humanos parecem existir como que
obstáculos à magnificência natural, a sua violência e primitivismo deliberado,
uma extensão da paisagem que os envolve. A floresta também envolve e contrasta
com o deserto, se bem que de modo menos forte, com as suas folhagens e ramos
que enchem o plano e obscurecem por vezes a totalidade dos corpos humanos.
Sissy Spaceck é quase uma ninfa artificial neste mundo natural, enquanto
Michael Sheen emerge como um guerreiro de arma na mão, uma manifestação
desajeitadamente humana da violência e crueldade que em Malick parecem ser
parte integral da Natureza.
Mencionados agora os
nomes dos dois atores que protagonizam a história talvez fosse benéfico falar
um pouco das personagens de Kit e Holly, assim renomeados e diferenciados dos
seus correspondentes verídicos. Mas mais figuras ou cifras que personagens, os
protagonistas do filme são imagens que flutuam sobre a sua própria realidade,
acima do mundo que habitam. Na distanciação da sua realidade, o casal parece
apenas existir como extensão do olhar do filme, mais do que como o sujeito do
olhar do filme.
A exploração do
indivíduo heroico é assim dizimada pela abordagem de Malick. O Clyde Warren
Beatty uma miragem distante face à abordagem de Sheen. Nas mãos deste
realizador e seus atores, estas figuras são esvaziadas da sua humanidade.
Imagens apáticas e inexpressivas, vácuos sob a forma de humanos. Dois
sonâmbulos, que percorrem a narrativa do filme, apáticos à extensão dos seus
atos ou à realidade em que se inserem. Os heróis de outrora são aqui despidos
de tais glorificações, mas Malick também não parece exibir um julgamento moral
ou ético sobre os atos dos seus protagonistas. Nem Malick, nem os seus atores,
há que dizer.
Na sua abordagem à
violência do filme, Malick olha distantemente o casal. As suas motivações são
opacas, a sua psique uma impossibilidade. O retrato psicológico, sendo não
existente, e o olhar moralístico do filme sendo negado pela abordagem do
realizador, os atos violentos do filme parecem simplesmente acontecer. Um
seguimento de acontecimentos observados e criados pelos seus protagonistas
sonâmbulos com os seus olhares distantes e vagos.
Há um onirismo
bastante presente na obra de Malick e que aqui se faz sentir mais notoriamente
que em qualquer outra das suas obras. Os seus protagonistas que existem como
que flutuando acima do seu mundo, parecem, na sua apatia e no seu vazio, quase
que sonâmbulos a sonhar as suas próprias existências. Mais do que tornar
concreta a narrativa, o voz-off de Spaceck, no seu tom quase monocórdico e
distante, confere ao filme a atmosfera de uma memória sonhada. Até a última
imagem do filme parece advir disto mesmo. Sob o olhar de Holly vemos o céu
dourado pelo sol, e preenchido por nuvens. Olhamos o mundo de cima, de tal
posição que tudo parece desaparecer por detrás de um manto de névoa e luz, como
se num sonho afastado do mundo real e concreto.
Por muitos, o
trabalho dos dois atores, poderia ser considerado uma mostra de inexperiência
ou mesmo incompetência, mas penso ser necessário olhar o filme como uma
totalidade antes de se querer dissecar as partes individuais do filme (como eu
estou, talvez erroneamente a tentar fazer). Todo o onirismo e distanciamento
existencial acima referido necessitam e advêm, em parte considerável, do modo
vazio como Spaceck e Sheen interpretam estes papéis, mais arquétipos que
humanos. O estilo de atuação aqui promovida pela visão de Malick parece mais
próximo do trabalho de Bresson, Kubrick, ou mesmo do futuro trabalho de Todd
Haynes, do que o naturalismo bruto e imediato que emergia como uma parte
integra do Novo Cinema de Hollywood e seus principais autores.
Até agora referi o
uso de paisagem e o uso de atores, tendo brevemente referido a estrutura
textual e narrativa do filme, mas penso ser essencial referir aqui o trabalho
de Malick sobre o som e montagem desta sua primeira longa-metragem.
No que diz respeito à
montagem no cinema de Malick, filmes posteriores a este iriam cristalizar
definitivamente a sua abordagem. Apesar disso, em Badlands, o fluir quase lírico das imagens e o uso constante,
essencialmente nas fases do filme na floresta e no deserto, de imagens
dispersas da Natureza como ramos ou água a correr, já se fazem sentir. A
montagem é quase que uma manifestação da memória humana aqui, um sonho preso a
uma certa realidade. Não se trata de simbolismos, ou ligações de significados
de imagens como em Eisenstein, mas algo que vai para além disso. O seguimento
de imagens e sons parece, por vezes, desafiar a lógica narrativa e causal das
imagens do filme. Mais do que qualquer outro realizador desde Jean Renoir,
Malick parece ter convertido o Impressionismo numa linguagem cinemática. Em Renoir
as imagens e o movimento ocupavam-se principalmente desse dito impressionismo,
em Malick isto é mais presente na montagem e no som. Os seus filmes são
imersivos para a audiência, quase que a afundando numa experiência
existencialista, e isto é principalmente obtido por esses aspetos aqui
referidos. Badlands não representa o apogeu destes aspetos da obra do
realizador, mas representa o início do que está para vir.
Algo que, no entanto,
parece emergir completamente formado e cristalizado nesta primeira longa-metragem
é o uso de música no cinema de Malick. Aqui, a ênfase em música clássica é
esmagadoramente estranho quando emparelhado com a imagética contemporânea e
intensamente americana. Se os seus protagonistas parecem querer transmutar-se
em primitivos inocentes quando na segunda fase da narrativa se escapam para
viverem entre a Natureza, a música que acompanha a sua viagem cria um contraste
abrasivo e desconcertante. A música de Erik Satie e Carl Orff transpiram de uma
complexidade erudita, que nada tem a ver com a inocência vazia almejada pelo
comportamento aparente das figuras do filme. Mais do que simplificar e
intensificar a perceção linear do filme, a música de Badlands, complica a sua mesma perceção. A discordância cria a
reflexão, cria o distanciamento e ao mesmo tempo, de modo bastante paradoxal,
parece criar uma atmosfera ainda mais onírica e estranhamente imersiva.
Perdemo-nos nas visões sonoras de Malick tal como Holly e Kit de parecem perder
no seu olhar.
O cinema de Malick é
algo extremamente denso e complicado, ao mesmo tempo que é uma das mais belas
obras do cinema mundial. Tenho medo de que a sua densidade me tenha tornado
confuso e repetitivo, mas tal falta de meios para se exprimir por palavras um
filme, parece ser apropriado a um filme como Badlands. Mais do que um filme, Badlands
cria em si uma experiência quase espiritual. Um sonho existencialista, um
pesadelo apático. O cinema de Malick chegaria a píncaros mais impressionantes
que este seu filme, mas para uma estreia, Badlands
é uma explosão cinemática, um grito de inovação e visão que anuncia a chegada
de um novo mestre da arte.
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