quinta-feira, 27 de agosto de 2015

PHOENIX (2014) de Christian Petzold



 O último filme de Christian Petzold parece aparecer como que transplantado de uma época passada. O filme é um film noir de ímpetos e ambições classicistas, situado na Alemanha a seguir à segunda Guerra Mundial e com Nina Hoss a regressar como protagonista de Petzold, continuando a sua frutífera relação profissional.

 Hoss é aqui Nelly Lenz, uma antiga cantora de cabarets e sobrevivente do Holocausto que regressa a Berlim após ter sofrido uma reconstrução facial. Nem ela mesma se consegue reconhecer na sua nova face, sendo que quando descobre o seu marido, Johnny (Ronald Zehrfeld), ele não a reconhece apesar de ver nela uma parecença com a sua mulher. É esta fala de reconhecimento que despoleta o enredo do filme, indiscutivelmente inspirado pelas heranças noir de outrora, como um Vertigo nas ruínas de Berlim. Johnny decide usar Nelly, cuja identidade ele desconhece, para reclamar a herança da mulher, transformando a estranha na imagem da sua supostamente falecida mulher. O esquema vai-se tornando cada vez mais obsessivamente convoluto, à medida que surgem dúvidas sobre o papel de Johnny na detenção de Nelly pelos Nazis.

 Com estes jogos de dúvidas, mistérios e personas falseadas, o filme vai tornando o romance central num quieto e silencioso thriller psicológico, com Nelly no seu pulsante centro. Na periferia do casal, temos ainda Lene (Nina Kunzendorf), uma amiga judia e rica de Lenny que a ajuda no seu tempo de necessidade. Seguindo a tradição noir, a amiga nutre uma obsessão romântica pela sua protegida, querendo afastá-la do espectro do marido e fugir com ela para Israel. O filme parece destinado à inevitável tragédia mas, num gesto de soberba reticência, a obra termina com o reconhecimento, uma troca de olhares cheia de informação não vocalizada, uma mostra de elegante ambiguidade e ambição estrutural.

 Pela minha descrição já deverão ter-se apercebido da minha afeição pelo texto, baseado no romance Le Retour des cendres de Hubert Monteilhet, cujo toque ora de noir ora de pulp fiction resulta numa criação deliciosamente anacrónica. O filme parece emergir, como já disse, de uma época passada, sendo que a sua recusa de conclusão é um dos poucos elementos que me parecem fugir à usual negrura e niilismo das conclusões desses filmes noir que tanto refiro. Para além de tudo isto, há que ainda mencionar o modo como o guião, por muito convoluto e exuberantemente dramático que possa ser, tem em si uma certa elegância e é surpreendentemente direto na sua abordagem do enredo, criando uma obra tão requintadamente lúgubre como clara.

 Mas para além do seu enredo, há algo de perfeitamente fascinante nas explorações do filme. Nelly é ensinada não só a representar a sua imagem passada, mas também a imagem da vítima do Holocausto. Há algo de perversamente curioso no modo como Johnny cria uma idealização quase romântica de uma vítima de um dos maiores crimes da Humanidade. Se o filme fosse um pouco mais ambicioso seria possível torná-lo em algo reminiscente do trabalho de Fassbinder, uma reflexão sobre a natureza da Alemanha como uma Nação. Dos escombros de Berlim emerge esta história, uma história de vitimização, ficção e negação. A Alemanha de Johnny encontra-se numa desculpabilização sintomática, uma reinterpretação do passado como se um encenador da realidade ele se tratasse. Uma Nação em negação dos seus crimes passados. É pena, que apesar de tudo isto, o filme nunca chegue a realmente aproveitar estas possibilidades ideológicas, deixando-se ficar relativamente preso aos prazeres mais sanguíneos do seu suculento enredo de mistério, o que não é, para ser sincero, algo decididamente problemático.

 Mas, tirando esse texto, há pouco no filme que aproveite a rica herança estilística desse cinema passado, o que não seria razão de queixa não fosse o desenxabido e francamente desinteressante tratamento de Petzold a este material tão suculento e cheio de possibilidade. Ele é direto e claro, mas sem a exuberância dramática do enredo e também sem uma austeridade ou ponto de vista minimamente interessante. O filme é realizado como um simples e comum filme de prestígio europeu e isso é horrivelmente desapontante quando conseguimos tão claramente ver a possibilidade de grandeza que se encontrão escondidos nas sombras da obra final.

 Os cenários e figurinos mantêm-se numa recriação de época que consegue indicar alguma da sofisticação estilística que o filme parece reclamar para a sua história, mas para além disso há pouco que elogiar na concretização técnica do filme. A fotografia é competente e agradável ao olhar sem se aventurar por qualquer sofisticação visual. O mesmo se pode dizer da banda-sonora que, para um filme que tanta importância coloca no passado de Nelly como cantora, é tristemente medíocre, havendo sempre um espectável piano a sublinhar os momentos mais emotivos do filme.

 Mas uma fraca realização não impede o filme de ter um certo impacto. A acompanhar o delicioso enredo temos um elenco geralmente forte. Hoss, no papel central, é particularmente impressionante, aplicando a clareza e quietude de Petzold sem cair na banalidade do seu realizador. Nelly é um constante poço de ansiedades e temores, uma mina sempre em perigo de explodir ou de implodir sobre si própria. Tal como Kim Novak aproveitou tal papel em Vertigo, Hoss mostra-se maravilhosa nos seus jogos de identidade e mentira.

 É um drama de prestígio simples e direto. É difícil chamar-lhe um mau filme, mas, talvez pior que ser mau, o filme é uma desilusão. A promessa de um filme verdadeiramente milagroso infecta cada momento do filme, não esquecendo, no entanto, a sua história deliciosa ou a fascinante e misteriosa protagonista.


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